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Capítulo 3: UMA MEMÓRIA PARA AS NOVAS GERAÇÕES

3.1. Morre o “Homem Cordial"

Na manhã do dia 24 de abril Sérgio Buarque havia acordado, descido as escadas e tomado seu café como de costume. Naquela época, se encontrava acometido por uma forte pneumonia, agravada por um câncer nos brônquios, possivelmente resultante dos cigarros que fumara durante toda a vida. Além do uísque, gostava muito dos cigarros. Não os abandonou em momento algum. Gostava dos franceses, mas na falta deles os nacionais o saciavam. O próprio médico que o cuidava admitiu que proibí-lo de fumar seria inútil. O escritor não se considerava supersticioso, embora não usasse marrom ou fumasse o 13º cigarro do maço.

Dias antes, Sérgio havia almoçado com alguns amigos. Não imaginava que seria a última vez que realizara tão simples e prazeroso ato. À mesa reuniram- se o então líder sindical Luiz Inácio “Lula" da Silva, o deputado estadual Eduardo Suplicy, Frei Beto e um de seus filhos, o compositor Chico Buarque, responsável pelo encontro. Conversaram sobre política, possivelmente sobre o protagonismo do recém-fundado “Partido dos Trabalhadores”- PT nas eleições que estavam por vir, sobre a Guerra das Malvinas, que havia iniciado recentemente, e outros assuntos. Em meio às elocubrações sobre os destinos pátrios, eis que surge em tom maior a voz de Sérgio, sempre "avesso às formalidades”, a cantarolar “Sassaricando”, conhecida marchinha carnavalesca, com um toque pessoal de sua irreverência: a cantarolou em latim!

O historiador encontrava-se disposto naquela manhã de sábado e mesmo com a saúde debilitada trabalhava em seus escritos, ao que parece, três ou quatro livros já iniciados. Após tomar o café, Sérgio retornou ao quarto e em seguida informou ao seu enfermeiro que queria se dirigir até o escritório. No curto trajeto o historiador subitamente cai para trás. Seu coração parou de bater por volta das nove

e trinta. A imprensa não demoraria mais do que 24 horas para informar que havia desaparecido o “homem cordial”, rótulo que carregou desde as polêmicas que envolveram o seu livro de estreia.

Morreu em trânsito entre o quarto de dormir e o escritório, local da agitação intelectual. Contrariando a lógica de funerais festivos, muito em voga na capital da República a partir da virada do século XIX para o XX, tais como ocorreram com literatos e homens públicos, a exemplo de Machado de Assis, em 1908, Afonso Pena e Euclides da Cunha, em 1909, Joaquim Nabuco, em 1910, o Barão do Rio Branco, em 1912, Pinheiro Machado, em 1915, Oswaldo Cruz, em 1917, Rodrigues Alves, também em 1917 e Rui Barbosa, em 1923, Sérgio Buarque preferiu algo bem mais simples. Avesso, portanto, àqueles mortos que “haviam construído a nação com seus dotes inatos e únicos, de modo que o Brasil era visto como um grande artifício dessas vontades individuais, como um produto desses homens com qualidades acima do normal”. Qualidades que os tornavam capazes de materializar valores, ideias ou instituições a serem lembradas e comemoradas.320

Os velórios eram de suma importância para os membros da elite política e literária, devendo haver identidade entre o morto e o local onde ocorria, exigindo-se dos organizadores cuidadosas escolhas, já que em muitos casos poder e letras andavam atados. Machado de Assis e Euclides da Cunha, por exemplo, foram velados na "Academia Brasileira de Letras"-ABL, o Barão do Rio Branco no Palácio do Itamaraty, enquanto Rui Barbosa na Biblioteca Nacional. Todos caracterizados por luxuosa decoração, repleta de veludo negro, flores, altares, dosséis e guardas de honra. O objetivo, segundo alguns estudos, "era demonstrar a especificidade da vida e das obras do finado por meio das instituições com as quais ele se relacionara. Na ocasião dos funerais, esses espaços serviam como uma espécie de palco para a

performance pública das elites”, que não se ressentiam em momento algum em

deixar de fora a população.321

320 GONTIJO, Rebeca. O Velho Vaqueano. Capistrano de Abreu (1853-1927): memória,

historiografia e escrita de si. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. pp. 32-33. Em especial a discussão do primeiro capítulo, “Morre o historiador da pátria”, no qual a autora apresenta o intelectual como símbolo da “brasilidade” a partir do velório e dos necrológios lidos e publicados a respeito de sua personagem.

321 Idem; GONÇALVES, João Felipe. Enterrando Rui Barbosa, Estudos Históricos - Dossiê Heróis

Os velórios também eram uma ocasião propícia para discursos, responsáveis pela dimensão mais cognitiva da cerimônia fúnebre. Por meio de panegíricos, buscava-se a individualização e a imortalidade do finado. No caso dos ilustres aqui citados, é notória a associação de seus nomes à nação, o que permite considerar seus funerais como verdadeiros “rituais cívicos”.322

O historiador português Fernando Catroga estudou muito bem o que chamou de “culto cívico dos mortos”. Para ele é importante perceber que no trabalho de elaboração póstuma, o que se “re-presentifica" é a imagem purificada do evocado e o que se confirma é a vida do vivo. Daí a origem de uma prosopopeia memorial e o seu cariz de exemplum: idealiza-se a personalidade do defunto, mascaram-se os seus defeitos e exaltam-se as suas qualidades, edificando-se um modelo em que se combinam formas de pensar arquetípicas e estereotipadas. A competência dos “grandes homens" desaparecidos tende, assim, a ganhar o estatuto de “panteonização” e este é posto a serviço das práticas identitárias dos grupos (família, associações, gerações, Nação, etc.).323

De acordo com Catroga, então, recordar os finados possibilita a instituição e o reconhecimento de identidade, bem como o delineamento de esperanças escatológicas (transcendentes e terrenas), oferecendo-se ao evocador uma história com "um passado e um futuro” num encadeamento contínuo de gerações. Desse modo, apesar de o rito implicar a repetição, “recordar e, sobretudo comemorar, será sempre teatralizar uma prática de reescrita da(s) história(s); será, em síntese, praticar coletivamente uma recordação que veicula mensagem para um tempo fictício tecido pelo diálogo entre o presente-passado e o presente-futuro”.324

Os Buarque de Holanda dispensaram qualquer tipo de pompa. Afinal, era desejo de Sérgio que em seu velório não o rodeassem com flores, velas e nem que tocassem música, muito menos que o fotografassem ou que fizessem imagens suas

322 Ibidem, p. 151.

323 CATROGA, Fernando. O céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos mortos.

Coimbra: Minerva, 1999. p. 31. Esse livro descreve o processo que conduziu à revolução romântica dos cemitérios em Portugal e à transformação da necrópole num espaço público e efetivo, onde se passou a dramatizar e a delir a tensão entre a finitude humana e os sonhos (utópicos e ucrónicos) de sua superação. Também, mostra como é que, deste jogo simulador da vida e dissimulador da prova ontológica da morte –o cadáver–, nasceu a cenografia simbolicamente adequada ao crescimento do papel de uma instância julgadora que, em combinação ou em alternativa com a escatalogia judaico- cristã, se foi impondo, cada vez mais, como um novo além: a memória dos vivos. Daí, a atenção do autor à função sociabilitária e cívica das liturgias de recordação, assim como ao estudo das relações entre o(s) poder(es) e o culto dos mortos.

para a televisão. Sabia que seu filho causava furor por onde passava e na sua cerimônia não seria diferente. Preferiu a cremação e dela esvair-se no tempo e no espaço como pó a ficar imóvel preso em uma caixa de madeira esperando o tempo fazer o resto.

O historiador não era religioso e alegava que a fé da esposa equilibrava as contas com o mundo desconhecido. Tinha pavor da morte e detestava cemitérios, talvez por isso, a cremação fosse para ele o meio mais eficaz para se recalcar o medo dos mortos, pois os antigos acreditavam que ela impedia o regresso do duplo, isto é, o retorno da alma do defunto, eliminava as impurezas, protegia o cadáver do ataque das feras, libertava o finado do domínio dos espíritos malignos, proporcionava calor no mundo inferior, evitava o nojo da putrefação do corpo e comunicava um significado salvífico evidente: o fogo purificava e iluminava o defunto no caminho até o outro mundo, indicando que tal como o fumo, assim o espírito se elevaria à morada dos bem-aventurados.325

Desejo respeitado. Durante o simples velório, ocorrido em sua residência da rua Buri, estiveram presentes apenas os familiares e alguns amigos muito próximos, como Frei Beto, Antonio Candido, Darcy Ribeiro, Paulo Vanzolini, Aziz Ab’Saber, Aurélio Buarque, Mário Schemberg, Soares Amora, Perseu Abramo, entre outros. Apenas no dia seguinte é que os jornais das principais capitais do país estampavam manchetes sobre a morte de Sérgio. “O mundo intelectual reage diante da notícia inesperada” publicava “O Estado de S. Paulo”, enquanto a “Folha” anunciava “Sérgio até o fim, sem pompas”. No Rio de Janeiro, “O Globo” trazia “Morre Sérgio Buarque de Holanda” e o "Jornal do Brasil” informava que “Historiador é cremado na Vila Alpina”. Fora do eixo Rio-São Paulo, o curitibano “A Gazeta do Povo” destacava que “Vítima de câncer, morre aos 80 anos o historiador Sérgio B. de Hollanda” e o gaúcho “Correio do Povo”, de Porto Alegre, insistia em uma das mais assinaladas características do falecido, “Um homem sem pose”.326

325 Ibidem, p. 268.

326 Respectivamente, O Estado de S. Paulo, 25 de abril de 1982; Folha de S. Paulo, 26 de abril de

1982, Ilustrada, p. 19; O Globo, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1982; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de abril de 1982; A Gazeta do Povo, Curitiba, 25 de abril de 1982 e Correio do Povo, Porto Alegre, 27 de abril de 1982. Vale mencionar que o jornal paranaense cometeu um erro em sua manchete, já que Sérgio Buarque, falecido no dia 24 de abril, apenas completaria 80 anos no dia 11 de julho.

O cortejo fúnebre partiu às 10 da manhã da casa da família direto para o Cemitério da Vila Alpina, onde o escritor seria cremado. Chegando lá, além dos parentes e amigos, muitos curiosos aglomeraram-se em frente à Capela, não para solidarizarem-se em momento tão difícil, antes para ver se conseguiam avistar seu filho ilustre. Dentre os curiosos, talvez muitos nem soubessem quem foi o defunto e nem qual teria sido a sua contribuição para a cultura do país. Na capela, a missa foi rezada por Frei Beto, que leu um trecho do Evangelho segundo São Mateus e falou sobre a importância da obra de Sérgio Buarque. Eis o que pode ter dito:

Sérgio Buarque de Holanda parte e permanece presente ali onde ele nos ensinou a admirá-lo e a apreendê-lo: em nossos corações. Sabemos, pela fé, que agora ele está no Senhor, porque toda a sua vida foi o esforço constante para vivenciar isto em que se resume a religião: o amor feito causa de justiça e de liberdade. Para um homem anticonvencional como este querido amigo e pai, façamos esta oração anticonvencional. Nessa despedida, fica tudo aquilo que ele representou e representa: sua firmeza, sua fidelidade, sua coragem, sua permanente juventude. Uma árvore, diz o evangelho, se conhece por seus frutos. As sementes plantadas por Sérgio germinaram no talento de seus filhos e no valor de sua obra. Enquanto tantos insistem em olhar os fatos históricos pelos olhos do opressor, da historiografia oficial, Sérgio nos ensinou a ler a história pela ótica dos oprimidos, dos pequenos e dos humildes. Dele, guardamos agora uma lembrança feliz: a fina ironia, sua vontade de contar e de recontar casos, a capacidade de acolher as pessoas com os olhos e com o coração, o dom de ser amigo de infância após cinco minutos de conversa. Fardas e fardões nunca o preocuparam. Este trabalhador da cultura viveu entre seus livros e amigos. Agora, a seu pedido, seu corpo será cremado, suas cinzas tornar- se-ão sementes de vida nova. Sérgio será comunhão e nós encontraremos sempre na brisa que sopra, na beleza das flores, no sol que brilha pela manhã.327

Nas palavras mencionadas, dois pontos merecem destaque. O primeiro diz respeito às características de Sérgio, retratado como uma figura “anticonvencional”, de “fina ironia”, acolhedor, de amizade fácil e completamente avesso às honrarias. Ditas em momento especial e delicado, essas adjetivações formam, com tantas outras, um conjunto de características relacionadas à personagem, definidoras de seu espírito e que são encontradas facilmente em muitos textos que esboçam sua biografia.

Arquitetada por um grupo de renomados intelectuais próximos do homenageado e de sua família, ecoada a partir de lugares socioeconômicos de

327 Reprodução aproximada das palavras proferidas por Frei Betto na despedida de Sérgio Buarque

de Holanda, por ocasião de seu sepultamento. São Paulo, 25 de abril de 1982. Arquivo Central Unicamp/Siarq. Fundo Sérgio Buarque de Holanda. Série Homenagens Póstumas, Hp 1.

produção de conhecimento (universidades, imprensa, arquivo e biblioteca), com regras científicas específicas, a versão hegemônica da vida de Sérgio que restou à posteridade foi sendo transmitida e sustentada “monotonamente" por outros intérpretes de sua obra até praticamente os dias de hoje, como visto, por exemplo, em eventos celebrativos legitimadores dessa memória.328

O segundo refere-se a uma leitura equivocada ou até mesmo inocente da dinâmica historiográfica brasileira. Afinal, Sérgio Buarque de Holanda até onde o compreendemos, jamais insinuou fazer uma “história dos oprimidos”, muito menos pela “sua ótica”. Antes, buscava a experiência do tempo, com suas mudanças e movimentos, atentando-se a debates e autores até então pouco mencionados, a exemplo do historiador americano Frederick J. Turner, fundamental para a sua definição de “fronteira” desenvolvida em “Caminhos e Fronteiras” (1956), coletânea de estudos que tratou das relações entre colonizadores portugueses e indígenas, sobre a geografia no processo de expansão paulista ou ainda das estruturas de vida e cultura material, revelando uma colônia em movimento, diferente, portanto, das grandes lavouras extáticas do nordeste açucareiro e escravocrata.

328 A ideia de uma versão oficial passada à posteridade deve muito às discussões em torno da ideia

de "memória do vencedor”, trazidas aqui para um contexto de construção de personagem, diferente, portanto, da demarcação temporal de um fato político, como propuseram Carlos Alberto Vesentini e Edgar de Decca nas críticas à ideia de “revolução de 1930”. Ver a respeito: VESENTINI, Carlos Alberto; DECCA, Edgar S. A revolução do vencedor. In: Contraponto, ano 1, n. 1, novembro de 1976. pp. 60-71; LENHARO, Alcir. Carlos Alberto Vesentini, historiador. Revista História, São Paulo, n. 122, pp. 117-127, jan/jun, 1990; VESENTINI, Carlos Alberto. A teia do fato. Uma proposta de estudo sobre a Memória Histórica. São Paulo: HUCITEC; História Social USP, 1997; DECCA, Edgar S. de. O silêncio dos vencidos: memória, história e revolução. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. Exemplo de culto à memória de Sérgio Buarque foi realizado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP-IEB, entre os dias 13 e 16 de setembro de 2011. O Seminário “Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda”, contou com a presença de nomes como Antonio Candido, Laura de Mello e Souza, Richard Graham, Antônio Arnoni Prado, Pedro Meira Monteiro, entre outros. Na ocasião os participantes foram saudados com uma exposição sobre a trajetória intelectual de Sérgio, elaborada a partir de documentação do seu arquivo privado. No ano seguinte foi publicada obra homônima, Atualidade de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: EdUSP; IEB, 2012, organizada por Stelio Marras. Embora eu me refira a textos e eventos póstumos, é importante registrar que quando era vivo, alguns amigos lhe renderam homenagens. Uma análise daqueles textos indicam total semelhança com estes que estou apresentando, a exemplo de “Singularidade e multiplicidade de Sérgio”, anotado por Rodrigo Melle Franco Andrade, “O cinquentenário do mestre”, de Octávio Tarquínio de Souza ou “Sérgio, anticafajeste", de Manuel Bandeira. Quando nos referimos à universidade como lugar de produção de conhecimento é no sentido atribuído por Michel de Certeau, ou seja, um local privilegiado, no qual a história é escrita, reescrita ou não escrita, visto que esse mesmo lugar possibilita e interdita o que é possível pensar, investigar, escrever e divulgar, contribuindo para a fabricação do conhecimento e a definição das regras que o presidem. CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: ______. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. Por fim, a transmissão de sua memória também se concretizou com a publicação de livros póstumos, livros celebrativos, montagem de biblioteca e arquivo pessoal, tópicos que serão desmembrados ao longo do capítulo.

Podemos citar também o crítico alemão Ernst Robert Curtius, sistematicamente apropriado por Sérgio Buarque em seus estudos sobre literatura colonial, barroco e arcádia, no período em que viveu em Roma entre 1953 e 1954 e cuja referência é claramente notada em “Visão do Paraíso” (1959). Obra na qual Sérgio estudou os mitos edênicos que acompanharam as narrativas dos descobrimentos e da colonização da América, deixando claras as diferentes visões de mundo que tinham espanhóis e portugueses no que se refere aos seus imaginários sobre o Novo Mundo. No entanto, mesmo considerado por muitos como o seu melhor livro, “Visão do Paraíso” teve ressonância limitada na época de sua publicação, sendo esmiuçado em seu devido valor a partir da década de 1980, quando os estudos historiográficos no Brasil passavam por uma maior dinamização.329

Nesse sentido, o discurso de Frei Beto se torna anacrônico, uma vez que reduz a obra de Sérgio, que teve fases distintas, a uma conjuntura de efervescência política atravessada pelo país a partir dos anos finais da década de 1970, quando encontramos na pauta do dia a repercussão da Lei de Anistia, a ascensão dos “novos movimentos sociais”, o “novo sindicalismo”, a fundação do Partido dos Trabalhadores-PT, as grandes greves de massa e o caso conciliatório do regime civil-militar em vigor; em suma, o restabelecimento vindouro de uma nova ordem democrática. Momento propício, portanto, para que as lembranças aferidas a Sérgio Buarque tenham incluído em seu leque de singularidades o perfil de esquerda e combativo do historiador, mais tarde naturalmente dissolvido em consenso a partir de certa memória histórica.330 Nesse sentido, não custa lembrar que na ocasião do

329 TURNER, Frederick Jackson. The frontier in American history. New York: H. Holt, 1920;

CURTIUS, Ernst Robert. Europaische Literatur und lateinisches Mittelalter. Bern: Francke, 1948. Não por acaso, ambas as obras, em edições na língua original, faziam parte da Biblioteca que pertenceu a Sérgio Buarque, hoje disponível ao público na Biblioteca Central da Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP. A esse respeito ver também: WEGNER, Robert. A conquista do oeste: a Fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: EdUFMG, 2000; NICODEMO, Thiago L. Urdidura do vivido: Visão do Paraíso e a obra de Sérgio Buarque de Holanda nos anos 1950. São Paulo: EdUSP, 2008; ______. Alegoria Moderna. Critica Literária e História da Literatura na obra de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: FAP-UNIFESP, 2014.

330 Importante nesse sentido é o conceito de "enquadramento da memória”, proposto por Michael

Pollak. Essa noção diz respeito a um processo de afirmação de determinadas lembranças, que devem ser compartilhadas por um grupo a ponto de anular ou diminuir memórias concorrentes. É um trabalho de restrição das possibilidades de interpretar aquilo que é lembrado, configurando uma forma considerada socialmente legítima de recordação. Esse processo, todavia, não está imune a disputas e fissuras que um determinado presente pode provocar, mas essa noção permite observar a dinâmica da memória e do trabalho de geri-la, que transforma o que é lembrado ao mesmo tempo em que contribui para a transformação dos indivíduos que lembram. POLLAK, Michael. Memória,

seu enterro, o então deputado Eduardo Suplicy, que poucos dias antes havia almoçado com Sérgio, afirmava ao enviado do “Jornal da Tarde” que o amigo “foi um dos principais intelectuais do PT”.331

Se por um lado, Frei Beto tentava dar unidade à vida do amigo, por outro, alguns textos saídos na imprensa em sua homenagem apontam que sua biografia intelectual ainda carecia de maiores ajustes. Nesse sentido, "O Estado de S. Paulo” de 25 de abril de 1982 trazia um artigo assinado por Marcelo Ielo. No texto o autor elenca algumas das principais características de Sérgio Buarque, dentre elas, sua “aptidão para a leitura”, sua “índole brincalhona”, seu “viés modernista”, seu “espírito inquieto” e claro, sua "tendência para os estudos históricos” explícita desde a sua juventude. Tamanho brilhantismo teria levado, de "maneira natural”, Sérgio a escrever sua obra de estreia, já que foi “um verdadeiro batalhador para que os