• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2: O RETORNO A SÃO PAULO: DO MUSEU PAULISTA À

2.1. Da Maria Antônia ao Butantã: a aposentadoria de Sérgio Buarque de

Institucionalizado através da nomeação assinada por Maria José Villaça Vessoni, reitora da USP, no dia 3 de dezembro de 1958, e pelo então governador do estado, Jânio Quadros, em 18 de dezembro do corrente, tendo o nome divulgado no "Diário Oficial” de 20 de dezembro, Sérgio Buarque deixou, após treze anos de docência, duas importante contribuições: a coordenação do projeto editorial da "História Geral da Civilização Brasileira"-HGCB, criado nos mesmos moldes das coleções "História Geral das Civilizações (1960-1972), dirigida por Maurice Crouzet e "História Geral das Ciências", de René Taton e a efetivação do Instituto de Estudos Brasileiros-IEB, em 1962. Ambas as iniciativas podemos inserir dentro do seu projeto

253 Ibidem, p. 244.

mais amplo de divulgação do conhecimento histórico e que englobava, de um lado, um público consumidor de história e, de outro, a formação de quadros docentes para atuar no ensino básico e de pesquisadores.255

Em relação à primeira contribuição, pode-se afirmar que talvez tenha sido um dos últimos esforços de síntese da história do Brasil, além de ter contribuído para a consolidação da pesquisa histórica no país, seja na forma como a obra foi estruturada, na aparição ampla e diversificada dos colaboradores, seja no conteúdo dessas próprias contribuições. A coleção, lançada ao longo dos 1960, contou com dois momentos distintos: um primeiro, sob direção de Sérgio Buarque de Holanda que se estendeu até 1972, quando o autor publica sozinho o volume “Do Império à República" e um segundo, sob coordenação de Boris Fausto que vai até 1984, totalizando 11 volumes.

A sua primeira fase foi concomitante ao surgimento dos programas de pós-graduação e a proliferação de novas universidades públicas, contando com a atuação sistemática de instituições de fomento à pesquisa na área de humanidades. No mesmo período da elaboração da HGCB, Sérgio Buarque ampliou ainda mais o seu campo de estudos, lançando vistas à compreensão dos desdobramentos do processo de emancipação e formação do estado brasileiro, continuado pelas pesquisas que orientou na pós-graduação da USP, tais como “O fardo do homem branco", de Maria Odila Leite da Silva Dias, "Ibicaba, uma experiência pioneira", de José Sebastião Witter, "Escravidão negra em São Paulo", de Suely Robles Reis de Queiroz e "A lavoura canavieira em São Paulo", de Maria Teresa Petrone.256

Há duas versões para o envolvimento de Sérgio Buarque de Holanda com a coleção. A primeira nos mostra que ela se deu a partir do convite de Jean- Paul Monteil, então diretor da Difusão Europeia do Livro, no ano seguinte a defesa de "Visão do Paraíso", quando o historiador já era catedrático. Contudo, essa hipótese foi contestada por dois historiadores em um artigo onde comparam a

255 SANCHES, op.cit., p. 244; NICODEMO, op.cit., pp. 125-126.

256 Sobre a História Geral da Civilização Brasileira ver os seguintes trabalhos: FURTADO, André

Carlos. As edições do cânone. Da fase Buarqueana na Coleção História Geral da Civilização Brasileira. 2014. Mestrado em História, Programa de Pós-Graduação em História, UFF, Niterói; VENÂNCIO, Gilselle Martins; FURTADO, André Carlos. Brasiliana e História Geral da Civilização Brasileira: escrita da história, disputas editoriais e processos de especialização acadêmica (1956- 1972). In: Tempo de Argumento. Florianópolis, volume 5, nº 9, a. 2013; NICODEMO, Thiago Lima. A herança colonial: Sérgio Buarque de Holanda e a História Geral da Civilização Brasileira. I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial. 2004. Rio de Janeiro. Anais.

"Coleção Brasiliana"257, dirigida por Américo Jacobina Lacombe, com a coleção

dirigida por Sérgio Buarque. A pesquisa no arquivo privado de Lacombe levou ambos a encontrarem uma carta datada de 28 de outubro de 1957, endereçada a ele por Rubem Lima, então diretor de produção da Companhia Editora Nacional, na qual referia-se a uma "nova coleção" de que ele tinha ouvido falar e, ao que tudo indicava, seria aquela dirigida por Sérgio Buarque. Segundo o documento:

Aproveito a oportunidade para perguntar-lhe se teve ou tem conhecimento de uma História da Civilização Brasileira a ser editada pela Difusão Europeia do Livro, sob orientação de Sérgio Buarque de Holanda. Vi com o Dr. Aroldo de Azevedo uma carta circular da editora, dando o plano geral da obra e a relação dos colaboradores. Ao que parece trata-se trabalho relativamente sucinto (…) e de remuneração desvantajosa para os autores ($ 225,00 por página datilografada e cessão definitiva de direitos autorais). Em todo o caso gostaria que o senhor nos informasse se teve oportunidade de ler essa carta-circular e nos desse sua opinião a respeito. Talvez fosse interessante tratarmos de divulgar imediatamente o plano e relação de colaboradores da Grande História do Brasil que o senhor está preparando.258

Para além de compreender as contingências do debate intelectual em curso na sociedade brasileira da época ou atentar para a "obscuridade que envolve a história dos livros", o artigo nos induz a pensar sobre a importância da reescrita da história. Sem acesso à fonte citada, Nicodemo foi traído por uma interpretação parcial dessa fase da vida de Sérgio Buarque. Contudo, concluem os autores, como a missiva de Lima a Lacombe data de 28 de outubro de 1957 e o concurso para o provimento da cátedra da USP ocorreu em novembro de 1958, se o convite de Monteil a Buarque se concretizou apenas no ano seguinte à sua defesa de tese, como expressa a primeira versão, este contato editorial já estava estabelecido antes da aprovação do autor de "Visão do Paraíso" no concurso. Assim, ele não poderia se

257 A Brasiliana foi criada em 1931 pela Companhia Editora Nacional, então propriedade de Octalles

Marcondes Ferreira, estendendo-se até 1993. Ela se constituiu, segundo Gustavo Sorá, num importante espaço de difusão da produção intelectual sobre o Brasil. O conjunto de livros organizou- se em duas fases: uma primeira, dirigida por Fernando Azevedo e uma segunda, a partir de 1956, dirigida por Américo J. Lacombe. Maiores detalhes ver: SORÁ, Gustavo. Brasilianas: José Olympio e a gênese do mercado editorial brasileiro. São Paulo: Ed.USP/ Com-Arte, 2010.

258 Arquivo Américo Jacobina Lacombe. Fundação Casa de Rui Barbosa. Pasta Correspondência.

Direção da Brasiliana. Apud: VENÂNCIO, Gilselle Martins; FURTADO, André Carlos. Brasiliana e História Geral da Civilização Brasileira: escrita da história, disputas editoriais e processos de especialização acadêmica (1956-1972). In: Tempo de Argumento. Florianópolis, volume 5, nº 9, a. 2013. p. 19.

dar no ano seguinte à defesa, ou seja, em 1959, mas no mínimo, um ano antes, em 1957.259

Grosso modo, a série de livros objetivava dar acesso a um público leigo e a estudantes as recentes pesquisas e análises que se produziam nas universidades sobre a história do Brasil, seguindo os princípios das duas outras que lhe serviram de modelo: o da heterogeneidade das áreas dos quais viriam os colaboradores e o da liberdade de pontos de vista e divergência de interpretação entre os autores responsáveis, o que garantiria a grandiosidade do conjunto e a pluralidade de abordagem dos temas.

O assistente de Sérgio Buarque na empreitada foi o colega de departamento, professor Pedro Moacyr Campos, experiente nessa seara por ter traduzido do francês a coleção "História Geral das Civilizações". Para Thiago Nicodemo, isso indicaria qual papel na concepção inicial da coleção que teria um professor de História Antiga e Medieval como assistente de direção de um texto de História do Brasil. Em outras palavras, Campos garantiria a legitimidade e a sensação de continuidade entre o conjunto francês e o brasileiro quanto ao respeito e às diretrizes gerais, o que explicaria o uso do termo “civilização" na coleção brasileira.260

A segunda marca deixada por Sérgio Buarque na Universidade de São Paulo se deu por meio de seu envolvimento direto com a criação do Instituto de Estudos Brasileiros-IEB, em 1962, cuja pedra fundamental foi a compra da brasiliana de Yan de Almeida Prado, contabilizada com cerca de 10 mil volumes e através da qual se organizou um conselho de administração composto por representantes das áreas de: História da Civilização Brasileira, Geografia do Brasil, Literatura Brasileira, Antropologia e Etnologia do Brasil, História Econômica Geral e do Brasil, Economia IV, História da Arquitetura do Brasil e pouco depois, Língua Indígenas. Acerca do IEB há consenso em afirmar que ele foi idealizado nos moldes dos "area studies center", no sentido da busca pela integração de disciplinas em torno do mesmo objeto - no caso específico, a realidade brasileira. Assim, a organização desse Instituto fazia parte de uma experiência de colaboração internacional que Sérgio

259 Idem, p. 20. Nota 26.

260 NICODEMO, Thiago Lima. A herança colonial: Sérgio Buarque de Holanda e a História Geral da

Civilização Brasileira. I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial, 2004. Rio de Janeiro. Anais. p. 5.

Buarque adquirira pelo menos desde o início da década de 1940, quando foi pela primeira vez aos Estados Unidos.261

A criação do IEB se insere em um projeto político institucional de estreitamento entre as unidades que compunham a USP, pensado a partir de um espaço físico comum. Os atores políticos diretamente envolvidos na aceleração da construção do campus universitário foram o governador do estado, Carvalho Pinto, o reitor da USP, Ulhoa Cintra, e o industrial Cicillo Matarazzo, que já havia inclusive intermediado, com o governador, o financiamento do estado na compra para o IEB, da coleção de cerca de 800 documentos de Dom Luís Antônio de Souza Botelho Mourão e Morgado de Mateus, pertencentes ao Conde de Mongualde.262

Outra preocupação de Sérgio Buarque ao participar da criação do IEB foi a de abrir espaços, além do magistério, para que jovens universitários, sobretudo os do curso de história, dispusessem de uma formação voltada também à pesquisa acadêmica, tanto que o IEB ao longo dos anos adquiriu acervos como os de Mário de Andrade, Fernando Azevedo, Caio Prado Júnior, entre outros, favorecendo, assim, um conjunto amplo de pesquisas voltadas à realidade do país nos mais diferentes campos.

Após 13 anos de atividades ininterruptas na USP, entre aulas, orientações, publicações e a continuação de suas pesquisas, Sérgio Buarque se aposenta em 1969, obtendo mais tempo livre para se dedicar a novas pesquisas, a escrita de alguns prefácios e sobretudo às suas viagens. Em 1973, por exemplo, foi à Grécia, Turquia, Hungria, Áustria, Alemanha, Holanda, Inglaterra e França. No ano seguinte parte a Caracas a convite do governo venezuelano para a instalação da Biblioteca Ayacucho. Em 1976 retorna novamente à Europa. E em 1979 publica seu último livro, "Tentativas de Mitologia", cuja introdução é um testemunho autobiográfico de parte de sua trajetória intelectual.

Nessa época também concedeu diversas entrevistas, para falar não apenas de sua vida, como também da realidade do país. Uma delas, concedida à "Folha de S. Paulo" em 1977, ao lado de Tarso de Castro e Paulo Duarte, quase lhe rendeu o enquadramento na Lei de Segurança Nacional. Houve tempo ainda para

261 NICODEMO, Sérgio Buarque de Holanda…, op.cit., pp. 123-124; CALDEIRA, João Ricardo de

Castro. IEB: Origem e Significados. São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes/Imprensa Oficial do Estado. 2002.

participar da vida política, no Centro Brasil Democrático, fundado em 1978 e assinar o livro de fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Em 24 de abril de 1982 deixa a vida para entrar na memória.