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Abriu-se espaço para descobrir

7. Experiências em perspectiva poética: a análise dos dados

7.2. Poema sobre a experiência: o que os núcleos de significação têm a contar

7.2.4. Abriu-se espaço para descobrir

Sentados de pernas cruzadas, ouvimos a história de cada um ali. Cada um de um jeitinho único, bordado por lembranças, sentimentos, amores e vivências. Abriu-se espaço para descobrir um pouco da personalidade e dos momentos que foram essenciais na construção da identidade da pessoa. (Raphaela, 30/03/2015)

Abrir espaço para descobrir pede outra relação. Outra relação entre o tempo de aula e os objetivos programáticos; outra relação entre professor e aluno; outra relação, inclusive, entre as pessoas e o espaço físico da sala de aula, já tão marcado pelo modelo tradicional de carteiras enfileiradas. Considero não ser à toa que encontro, na narrativa de Raphaela, a referência a estarem sentados de pernas cruzadas.

É importante notar que outra relação não é o mesmo que ausência de relação, de formato e de estrutura. Devemos evitar uma leitura espontaneísta dessa experiência, reconhecendo que a mediação do professor se faz intencionalmente presente na organização do ambiente de aprendizagem tanto quanto na seleção dos conteúdos. Uma vez que a dinâmica das relações também é afetada pela disposição dos corpos no espaço, o êxito de uma

proposta de atividade vivencial pede intencionalidade nas escolhas. Assim, espaço aberto não é o mesmo que espaço vago, pois está carregado de propósito.

De fato, recordo de termos passado a maior parte do tempo no arranjo de classe mais comum, com as carteiras em fila; formávamos círculos ou afastávamos as cadeiras para sentar no chão em momentos específicos. Um deles foi para abrir o espaço aos autorretratos, a que o registro de Raphaela faz referência. Essa atividade, no entanto, abriu espaço para importantes descobertas, que a aluna Jade nos conta a partir de suas percepções:

Percebi que, embora o autorretrato tenha como principal objetivo fazer com que os colegas de sala se conheçam, assume também um papel individual importante: o autoconhecimento. A maneira como cada um constrói sua identidade e explora os recursos oferecidos revela sua personalidade e desperta sentimentos individuais intensos. (Jade, 30/03/2015)

Ao ler este trecho, localizo quatro achados que a estudante encontrou nesse espaço aberto. Os dois primeiros saltam aos olhos: conhecer o outro e a si mesmo. Os dois últimos estão inscritos com sutileza em suas palavras. Por um lado, a ideia de que nosso conhecimento sobre o outro não é direto, mas mediado por sua identidade construída; por outro, a noção de que as escolhas estéticas que cada um faz para tecer essa representação de si (a maneira como cada um explora os recursos oferecidos) é também significadora, isto é, comunica significados e sentidos que se somam à mensagem de que é portadora.

Em um poema, a aluna Mayara expressa a necessidade que sentia de descobertas muito semelhantes, proporcionadas por esse espaço:

Eu queria crescer.

Para isso era necessário descobrir.

Descobrir sobre o outro, descobrir um pouco mais sobre mim. Então naquela roda eu deixei-me esvaziar... e depois me enchi. (Mayara, 06/04/2015)

Deixar-se esvaziar e depois se encher. Doar e receber, como também disse Giovanna (em 7.2.3). Indícios de uma polinização significativa, ansiada e sofregamente consumada. E qual o motivo de tamanha avidez pela partilha de experiências? Tal oportunidade estaria em falta no cotidiano? É o que aponta Juliana1 em seu registro poético:

Na tarde desta segunda-feira, paramos para ouvir, e ouvir diferentes vozes falando sobre a vida, como vivem ou sobrevivem, o que gostam e

desgostam. Percebo que fizemos algo que vem se perdendo na correria dos dias. Estamos perdendo a nós mesmos e ao outro, todos os dias. Mas por que? (Juliana1, 06/04/2015)

Assim como Benjamin (1936/2012a) chama a atenção para o declínio da narrativa, Juliana1 lamenta que parar para ouvir seja algo que esteja se perdendo na correria dos dias. É que a narrativa pede abrir espaço, que, por sua vez, pede parar. Esse trecho me chamou a atenção para o ritmo da formação. Se a descoberta demanda espaço não ocupado para poder acontecer, dificilmente irá florejar em um cronograma abarrotado, que ambiciona a retenção, por parte dos alunos, de quantidades colossais de conhecimento sistematizado, e planeja o preenchimento de cada fresta de tempo com conteúdo disciplinar. Como escreve Larrosa com grande sensibilidade:

(...) A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, p. 24).

Uma vez aberto o espaço nos tempos que correm, muita coisa aconteceu às alunas, como mostrarei no decorrer dos núcleos seguintes.

7.2.5. Ouvir e contar nossas histórias

Cinco minutos para acabar a aula e ninguém queria ir embora. Ouvir e contar nossas histórias nunca pareceu tão legal. (Raphaela, 30/03/2015)

O encantamento com a possibilidade de partilhar histórias, em meio às atividades propostas na disciplina, foi bastante pronunciado nos registros poéticos. Este núcleo de significação se formou a partir desse deslumbramento manifesto, e para responder à indagação de por que ouvir e contar as próprias histórias pareceu tão legal.

Aos poucos, fomos nos sentindo mais unidos, sem medo de contar as histórias de nossas vidas, e a emoção tomou conta de boa parte dos alunos na sala. (Julia2, 06/04/2015)

Talvez a admiração se devesse ao sentimento de estar mais unidos – de fato, a construção de relações foi uma temática recorrente, e foi uma das experiências formativas mais apontadas pelas alunas. Talvez, porém, a perplexidade maior estivesse no que Julia2 acrescenta: sem medo de contar as histórias de nossas vidas. Mayara, em seu registro, deixa escapar:

Percebi os desabafos fugindo do peito. (Mayara, 06/04/2015)

Fugindo, porque estavam presos. O que parece espantar, nesse caso, é não ver os sentimentos e cogitações íntimas em sua condição habitual de supressão. Os indícios dessa surpresa aparecem em dizeres nem sempre diretos:

Quando minha colega Liz corajosamente se dispôs a cantar “Felicidade”, de Marcelo Jeneci, fui inundada de sentimentos bons, seja pela sua voz calma e acompanhada pelo coro de nossa classe, como pelo que a letra em si é capaz de falar por si só. (Giovanna, 27/04/2015)

Corajosamente, aqui, revela a tensão não dita. A princípio, poderia passar como uma característica do tipo de apresentação: um registro poético pouco convencional, que dependia de performance artística ao vivo. No entanto, outros indícios vão se juntando a esses e mostrando que coração não é tão simples quanto pensa56; falar sobre si é tarefa das mais complexas.

Ouvir os meus amigos contando de suas vidas me fez querer contar da minha, e a cada mão levantada, pensava em erguer o meu dedinho. Mas não o fiz, talvez por vergonha e por achar que a minha história não teria tanto impacto igual a dos outros. Quem sabe um dia eu tenha coragem e conte minha história para aquela turma. (Julia2, 06/04/2015)

Esse trecho é uma pequena preciosidade. Encarrega-se de explicar, em sua simplicidade, um ponto chave dessa dinâmica de polinização: o de que uma narrativa puxa outra, e o querer contar da minha vida tende a acontecer de forma fluente quando ouvimos nossos amigos contando das suas. Ao mesmo tempo, ajuda a compreender por que isso nem sempre ocorre; revela a contradição inerente no movimento de partilha, em que coexistem a vontade de se revelar e a resistência em fazê-lo. A mesma Julia2, que falou anteriormente sobre uma turma sem medo de contar as histórias de suas vidas, traz, com muita delicadeza, a imagem do dedinho que hesita em erguer-se em meio às mãos levantadas. Quanto medo existe no sem medo?

O que a aluna nos conta é como uma brecha por onde é possível entrever a vastidão do não dito. Se muitas histórias se fizeram conhecidas, quantas não foram as que permaneceram guardadas entre os dedinhos não erguidos? Do mesmo modo, se muitos sentidos constituídos pelas alunas estão materializados nos registros poéticos que podemos ler, quantos não terão passado em segredo, nos recônditos da consciência?

É possível conhecer a dimensão do que não se conhece? Creio que a pergunta contém a própria resposta, e percebo que é preciso redobrada atenção para não perder de vista tal limitação. Diante da profusão de relatos entusiásticos sobre a união da turma e a partilha de experiências, tenho igual interesse pelo silêncio. Entretanto, compreendê-lo dá mais trabalho, pois não se canta aquilo que vai na contramão do encanto. É preciso garimpar.

No relato trazido acima, Julia2 confessa a vergonha e oferece o primeiro brilhante: achar que sua história não teria tanto impacto igual a dos outros. Esse parece ser o outro lado da emoção que tomava conta a cada história contada: a valoração conferida ao impacto da narrativa indicia um possível critério para os silêncios. Não é, porém, o único, nem o mais importante. A aluna Juliana1 utiliza o registro poético para fazer uma reflexão sobre o assunto:

Penso que falar de nós mesmos, da forma como ocorreu na atividade de autorretrato, implica diretamente falar de como sentimos, de nossos sentimentos. Não sei ao certo o porquê é tão difícil (e como foi difícil), mas ficou evidente na atividade, que muitos, senão a maioria, me incluo nestes, sente dificuldades (vergonha, medo, angústia, não sei nomear) de falar de si mesmos, quando o assunto envolve seus sentimentos. Neste registro poético, faço uma tentativa de entender esta situação, que tanto me intrigou na aula. (Juliana1, 06/04/2015)

Para a aluna, a dificuldade em falar sobre os próprios sentimentos não era apenas sua; para ela, a atividade deixou evidente que era, quiçá, a situação de muitos, senão a maioria. A coragem de Liz para cantar e tocar uma canção na classe foi a mesma de Gabriela ao partilhar com a turma, em 25 de maio, angústias muito íntimas que vinha enfrentando na vida particular – e, talvez por essa razão, tal relato foi o que ficou para algumas de suas colegas:

(...) e o [registro poético] que mais me marcou foi o da colega Gabriela, que nos mostrou um pouquinho mais do seu íntimo, sendo muito corajosa por contar de maneira tão doce e divertida sobre sua vida (Gabrielle, 25/05/2015).

(...) tivemos a oportunidade de ouvir também a Gabriela, que abriu as portas de sua vida para a conhecermos um pouco mais. A cada palavra que ela lia,

era uma infinidade de emoções que me enchiam... não que eu me identifiquei com as histórias, mas ela simplesmente nos mostrou parte de sua vida muito diferente, um tanto quanto inesperada, enfim, adorei ouvi-la falar! (Débora, 25/05/2015)

Se mostrou um pouquinho ou abriu as portas de sua vida, isso talvez dependa do referencial subjetivo de cada uma sobre o quanto da vida cabe partilhar. Talvez seja apenas uma escolha diferente de palavras. De qualquer modo, chama-me a atenção, também, outro indício: o contraponto levantado por Débora – não que eu me identifiquei com as histórias –, pois suscita duas importantes considerações.

Em primeiro lugar, é relevante para considerarmos que polinizações importantes ocorrem não apenas na convergência das formas de pensar e sentir, mas sobretudo, talvez, nos estranhamentos. A narrativa do outro sobre partes da vida muito diferentes, um tanto quanto inesperadas, pode promover reflexões significativas sobre a própria experiência que narrativas homogêneas não provocariam.

Em segundo lugar, a questão é: o quanto é possível efetivamente comunicar uma experiência própria ao outro? Para Larrosa,

Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. (LARROSA, 2002, p. 27)

O saber da experiência, para o autor, é pessoal, particular e subjetivo, e deste modo “ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que essa experiência seja de algum modo revivida e tornada própria” (idem, p. 27). Pela perspectiva vigotskiana, no entanto, a comunicação de uma experiência é possível desde que possa ser realizada pela mediação de categorias de pensamento partilhadas pelos interlocutores – isto é, palavras e seu significado. Como já discutido em 5.1, porém, o pensamento generalizante expresso pelas palavras apresentará um inevitável limite para comunicar fielmente o sentido que as vivências tiveram para quem as vivenciou.

Além disso, as experiências próprias, pela via inversa, podem refratar – e geralmente o fazem – a forma como se recebe a narrativa do outro. É o que me saltou à vista, ao ler o registro de Sereno:

No início da aula, quando começaram as leituras dos registros poéticos da aula passada, despertou-me a vontade de fazer uma espécie de registro poético de uma experiência incrível que vivi no último final de semana. (...) Voltei dessa viagem com a sensibilidade extremamente aflorada, tentando me entregar aos sentidos e viver mais intensamente. Perceber aquilo que anteriormente não era percebido e valorizando a vivência de cada ser humano.

Por isso queria demonstrar minha gratidão pelo depoimento da Gabriela, que me trouxe uma sensação incrivelmente diferente (no melhor sentido da palavra) (...). (Sereno, 25/05/2015)

O próprio aluno Sereno reconhece que a forma como se apropriou do relato de Gabriela foi mediada por uma experiência incrível – ou refratada por sua vivência, como consideraria Vigotski (5.2.3).

Ouvir e contar nossas histórias é um núcleo de significação que expõe a complexidade e as contradições envolvidas na partilha de narrativas. Não visa fetichizá-la como fórmula mágica para a formação de vínculos entre as alunas e destas para com a disciplina e com a pedagogia. Certamente não é suficiente para explicá-la por inteiro, nem para desvendar todos os fatores que criam condições para que ela aconteça. Todavia, acredito que oferece valiosas pistas. Uma síntese possível está expressa na conclusão do registro poético de Juliana1:

Às vezes, desde cedo somos ensinadas a esconder o que sentimos, a guardar para nós. Os sentimentos são deixados no pensamento e sequer refletimos sobre eles. Não que seja totalmente ruim a privacidade de nossos sentimentos, mas é bom compartilhar: alivia, dessobrecarrega, enaltece, aproxima, humaniza – enfim, compartilhar une. (Juliana1, 06/04/2015)

Não que ouvir e contar nossas histórias seja sempre preferível à privacidade de nossos sentimentos. Porém, sem polinização dificilmente haveria unidade possível. Deflagrar- se-ia, como denuncia Benjamin (5.2.2), a barbárie resultante da pobreza de experiências coletivas: indivíduos isolados que não se referenciam, perdendo os vínculos com o patrimônio cultural constituído pela humanidade.

As proposições de Vigotski (5.2.3), por sua vez, evidenciam que nenhuma vivência pode ocorrer “no vácuo”, isto é, independente do arranjo de condições materiais, significações culturais e outros sociais, localizados no espaço e situados no tempo histórico. Assim, a polinização é colocada como condição para a constituição dos sujeitos. É nesse sentido que Vigotski adota uma perspectiva coletiva da experiência – ela é feita sempre na

relação com outros. As implicações psicológicas, todavia, são individuais: as vivências têm um papel chave no desenvolvimento das funções psíquicas superiores – a própria maneira do indivíduo pensar.

Diferentemente do que afirmam Benjamin e Larrosa, para Vigotski a vivência/experiência não está em decadência; sendo algo próprio do próprio processo de constituição psicológica humana, muda de feições ao longo da história cultural, sem que possa, contudo, deixar de acontecer.

7.2.6. ...e me transportava

Sentada de pernas cruzadas, eu escutava as leituras e me transportava para a pré-escola. “Turma da lua e das estrelas” era o nome que havíamos escolhido para a nossa turma naquele ano (...). A escrita doce e ilustrações do livro me guiaram até as lembranças da minha antiga escola, situações que vivi junto à turma da lua e das estrelas, na formação do sentimento de união dentro de nós. (Raphaela, 30/03/2015)

Uma marca bastante presente nos registros poéticos é a referência a memórias pessoais evocadas pela leitura de crônicas, livros infantis e registros poéticos; despertadas pela realização de uma atividade ou por uma explicação da professora; revividas pela audiência de vídeos e pela escuta de narrativas. Memórias da escola, de professores, de amigos, da família e da infância. Memórias cuja força transportava as alunas a outros tempos e espaços.

As memórias da escola têm um grande potencial formativo para futuros professores. Pela mesma razão que expresso no início do memorial desta pesquisa: antes das professoras, existiram as alunas. E a importância constitutiva da própria experiência estudantil como referencial é algo que já tem sido reconhecido há bastante tempo, como aponta Renata Cunha57:

As pesquisas sobre formação de professores (Cunha, 1988; Pimentel, 1993; André, 1993) mostram que a principal influência no comportamento do professor é sua própria história como aluno e que, para além das teorias pedagógicas que ele aprende, o que marca seu comportamento são as práticas de seus antigos professores. (CUNHA, 1997, p. 81, in CUNHA, 2007, p. 99)

57 A coincidência de sobrenomes pode causar confusão: neste trecho, Renata Cunha (2007) cita trabalhos de

Se em muitos momentos as memórias da escola despontavam naturalmente no fluxo das atividades, como no relato de Raphaela, em outros eram intencionalmente provocadas:

Após isso, fizemos uma atividade sobre a dimensão afetiva no universo escolar, onde todos nós respondemos perguntas das coisas que lembrávamos dos nossos tempos de escola. E foi muito divertido lembrar da maioria das coisas. (Mariana, 11/05/2015)

A concepção de docência que direcionou essa disciplina de pedagogia, assim como discutido na seção 5.3, fundamenta-se no princípio histórico-cultural de que formação é uma atividade de relação. O vínculo entre o sujeito e o saber não é direto, mas mediado pelo outro; a dimensão afetiva é inerente ao universo escolar porque é um aspecto constitutivo de toda relação. Neste momento, para compreender o elo entre as vivências escolares e a discussão da afetividade, considero que seja importante uma reflexão teórica sobre o papel das memórias nos processos de aprendizagem.

A Psicologia Histórico-Cultural aponta que a condição humana que conhecemos hoje extrapola em muito as possibilidades exclusivamente biológicas (inatas) de ação física e psíquica. Na dimensão física, o humano não conta apenas com os recursos do próprio corpo, mas também com uma infinidade de instrumentos que medeiam sua ação no mundo – ferramentas, produtos, veículos, etc., resultado de milênios de cultura, produção e tecnologia. De modo análogo, nossa inteligência se estende e multiplica graças às possibilidades de representação: criamos e usamos signos como instrumentos mentais para agir psicologicamente sobre a realidade, atribuindo-lhe significados e operando abstratamente (VYGOTSKI, 1931/1995).

É importante reiterar, portanto, que o conceito de memória, aqui, não é o de armazenamento de informações, à maneira dos computadores – pois, com pesar, reconheço que ainda é uma leitura comum da palavra “memória”, mesmo no contexto da educação. A partir dos princípios histórico-culturais elencados anteriormente, a memória pode ser entendida como um tecido que, feito a partir da vivência de relações sociais, configura um patrimônio único de signos, imagens e representações de que o sujeito dispõe para utilizar como ferramentas psicológicas. A memória, assim, não é um departamento à parte do pensamento; não é um depósito de dados a ser periodicamente consultado, e tampouco está isolada da emoção e da imaginação. Constitui o próprio modus operandi psicológico do sujeito. Não sendo possível operar mentalmente sobre algo sem a mediação de signos, a

ausência completa de experiências constitutivas num determinado campo, trazidas ao presente no tecido da memória, seria, consequentemente, um obstáculo para que alguém pudesse elaborar reflexões sobre o mesmo.

Como a maior parte das alunas da EP107 era recém-saída do ensino médio, ainda não podia contar com a própria experiência na prática docente como referência para balizarem seu entendimento sobre os temas discutidos no curso de pedagogia. Com base em quais representações da realidade escolar poderiam fazer as reflexões propostas na disciplina? As memórias de estudante são, assim, um dos mais potentes recursos disponíveis, como exemplificado por Cunha:

Considerando que a experiência como alunas era constitutiva para referenciar a representação de professor, aluno, aprendizagem, estudo, algumas dúvidas colocavam-se: O que será que as alunas viveram na escola