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Capaz de nos fazer enxergar

7. Experiências em perspectiva poética: a análise dos dados

7.2. Poema sobre a experiência: o que os núcleos de significação têm a contar

7.2.7. Capaz de nos fazer enxergar

O registro da Ana Lu também me emocionou bastante. Uma animação muito bem construída e surpreendente, capaz de nos fazer enxergar a deficiência visual com outros olhos. (Jade, 27/04/2015)

Este é um núcleo de significação capaz de nos fazer enxergar como a mediação ocorria na própria disciplina EP107. O trecho acima, da aluna Jade, é um caso paradigmático do que presenciei nas aulas de segunda-feira à tarde e pude constatar analisando os registros poéticos. Trata-se do reconhecimento, por parte da estudante, de aprendizados que ocorreram durante a aula e não foram resultado da mediação “oficial”, representada pela docente

61 Livro escrito por Ruth Rocha e ilustrado por Mariana Massarani. Publicado pela editora Salamandra. 62 Livro escrito por Chico Buarque e ilustrado por Ziraldo. Publicado pela editora José Olympio.

responsável pela disciplina, mas vieram pelo registro poético de uma colega. Um indício da potência da mediação horizontal, entre pares, nos processos formativos. Sobre o registro mencionado, outra aluna comenta:

(...) vídeo chamado “Como uma garota cega enxerga o mundo”63, que me fez

perceber que, às vezes, só valorizamos a beleza das coisas quando não podemos mais enxergá-las, pois muitos de nós não percebem o quão privilegiado é por poder se deliciar com um pôr do sol, ou com a chuva que cai repentinamente à noite. (Mariana, 27/04/2015)

Eu também me encantei muito por essa animação, que simboliza, com leveza e poesia, a experiência de uma menina cega. O curta-metragem foi trazido para a aula pela aluna Ana Luísa como registro poético. Mais tarde, quando me debrucei sobre os registros como dados de pesquisa, me deparei com uma questão: por volta do meio do semestre, várias alunas começaram a apresentar vídeos e outros conteúdos da Internet como registros poéticos. A proposta dessa atividade, originalmente, era ser uma síntese daquilo que a aula representou para a aluna. De que modo um vídeo, produzido por outras pessoas, em outros tempos, outros lugares e com outros propósitos poderia representar o ocorrido nas nossas aulas de Introdução à Pedagogia?

Da forma como foi proposto na EP107, o registro poético não precisava, necessariamente, relatar partes da aula ou descrever o que fora aprendido. Dava abertura suficiente para que a aluna escolhesse uma forma de representar aquilo que ficou; assim, era possível que alguém considerasse um vídeo de terceiros melhor para fazer enxergar a sensação deixada pela aula do que ela própria poderia fazer por meio de uma produção autoral.

No entanto, o propósito da atividade, como já foi descrito, também era desenvolver a capacidade de elaborar sínteses e de expressar-se utilizando recursos estéticos. A proposta dependia, por premissa, de autoria. Talvez isso não tenha ficado claro para as alunas; talvez tenha sido percebido por nós, formadores, somente mais tarde. Refletindo sobre nossa própria mediação, acredito que uma intervenção, no decurso da disciplina, discutindo a questão da autoria nos registros como elemento fundamental da síntese, teria sido benéfica para auxiliar as alunas a compreenderem melhor o propósito do registro

63 Trata-se do curta metragem “Out of Sight” (Duração: 5’27’’), trabalho de

graduação de três estudantes da National Taiwan University of Arts. Disponível em <http://bit.ly/oosevaty>, ou pelo código QR ao lado. Acesso em 06 de dezembro de 2016.

poético. Em contrapartida, os diversos conteúdos externos trazidos contribuíram ricamente para a formação das alunas, mediando importantes reflexões, como mostram os indícios apresentados sobre o curta-metragem de Ana Luísa e outros do gênero. No capítulo 8, sobre as lições aprendidas na pesquisa, faço um balanço das considerações sobre registros poéticos não autorais.

De modo geral, participações de colegas na aula são frequentemente mencionadas como algo capaz de fazer enxergar:

Devaneios à parte, adoro as colocações da minha amiga Juliana, sempre relacionando nossos temas às questões políticas e sociais, e enriquecendo o debate. (Simone, 04/05/2015)

Mediação de cunho crítico-reflexivo. Aqui, ligada a questões políticas e sociais, como a que Simone encontra em sua amiga Juliana; acolá, atravessada por ca(u)sos pessoais, como a própria Simone narra:

Brincadeira de menina ou de menino?? E agora??? É agora!! Minha casa é formada por pessoas malucas e eu sou uma delas. Minha mãe era uma moleca e me ensinou que não existe coisas de meninos ou meninas, só me proibia de falar palavra feia, como o Alberto. Já o meu pai, na hora de trocar o pneu ou carregar as caixas de verdura da quitanda (negócio de família), me criou feito menino, mas se era pra andar de calcinha e sentar de perna aberta, aí já viu, né, eu tinha que ser menina. Acho que é por que eu não tinha pipi igual a Ceci64. Não falei!! Casa de maluco!! Mas foi assim que eu me tornei

forte e independente, graças a esses dois malucos e outros mais que inundaram minha vida de maluquices. (Simone, 04/05/2015)

Na semana seguinte, apareceu o registro de Mariana, contando:

Lembro-me também de ter me sentido muito acolhida com a leitura do registro poético da Simone, que demonstrou que somos uma família em construção. (Mariana, 11/05/2015)

O que salta aos olhos é o encadeamento: a narrativa que puxa a outra, a mediação que medeia a outra. A história do livro “Ceci Tem Pipi?”, trazido por uma aluna, é tema da reflexão de outra; a reflexão, compartilhada, é o lugar aconchegante e acolhedor de uma terceira. Todos esses acontecimentos correndo paralelamente ao que estava efetivamente

64 Referência ao livro “Ceci Tem Pipi?”, de Thierry Lenain e Delphine Durand (publicado no Brasil pela

Companhia das Letrinhas), lido em sala de aula por uma das alunas na atividade com livros infantis. Uma história divertida sobre a descoberta de diferenças e semelhanças entre meninos e meninas.

programado pela “mediação oficial” da professora. Isso não indica, todavia, que a disciplina, para ser capaz de fazer enxergar, prescinda da mediação “oficial”; mostra, pelo contrário, que a construção dessa possibilidade de polinização se deveu justamente ao ambiente intencionalmente organizado para isso:

Finalizo este registro grata pelo espaço aberto, e por toda equipe, como um todo, que juntos estão sempre prontos para nos ajudar, com sorrisos à mostra e atenciosos de uma forma que eu jamais havia visto. É elogiável, pois mostra o quanto amam o que fazem, e que dia após dia deixam marquinhas permanentes em nossos nós. (Giovanna, 13/04/2015)

A aluna agradece a “equipe” – como a própria Ana chamava o grupo formado por ela, suas monitoras (PED e PAD) e outras orientandas65 que acompanhavam a EP107 – por abrir espaço para descobrir (e revelar). Olha para as marquinhas permanentes deixadas – o resultado da mediação – e vê o cuidado envolvido.

O trecho do registro poético abaixo, do aluno Carlos, chama a atenção para a articulação entre o conteúdo teórico, tema do próximo núcleo de significação (7.2.8), e a dimensão afetiva da mediação da professora:

Por isso que voltei para a academia 66, pois vim buscar ajuda teórica.

Quando as suas aulas começaram eu senti a energia positiva que você irradiava, mas, no começo, eu não conseguia decifrá-la. Com o passar das aulas, comecei a compreender as suas práticas pedagógicas e acreditar em alguns sentimentos que, geralmente, não fazem parte do universo masculino. Contudo foi na comemoração do seu aniversário, em nossa sala de aula67,

que compreendi o caminho que devo seguir... O professor também tem que ensinar a ser carinhoso, acolhedor, enfim, você me ensinou a “sair do armário” do conservadorismo indiferente e me apresentar como um ser amoroso enquanto educador.

Parabéns pelo seu trabalho e muito obrigado por me mostrar outro significado da palavra diferente. Agora tentarei ser diferente e permitir-me-ei demonstrar o meu afeto e utilizar este como ferramenta de resistência, isso porque agora eu possuo um referencial confiável. (Carlos, 27/04/2015)

O relato de Carlos, que veio buscar ajuda teórica, traz um indício comum nos registros poéticos e também percebido por mim, na observação das aulas: há um

65 Eu incluso, e subordinado à escolha pela flexão de gênero da maioria. 66 O aluno Carlos estava cursando a segunda graduação.

67 No dia 27 de abril de 2015, as alunas trouxeram comes e bebes para a aula e prepararam uma comemoração

estranhamento inicial, uma dificuldade para decifrar as propostas formativas que não estão baseadas na aula expositiva tradicional – na qual o conteúdo teórico está mais explícito. Explicitar os fundamentos teóricos que embasavam aquele tipo de mediação – algo que depende da clareza que os formadores têm sobre os princípios que os direcionam – foi importante para que o aluno começasse a compreender as práticas pedagógicas e se sentisse, mais tarde, na posse de um referencial confiável.

Um desses princípios orientadores está claramente expresso por John Elliott (2001), quando avalia criticamente a concepção que denomina educação baseada em resultados. Esta caracteriza-se, de modo geral, pela padronização dos objetivos de aprendizagem para todos os alunos e orienta-se por formas de controlar tecnicamente a produção dos resultados, visando aumentar a eficiência, segundo critérios mensuráveis, no atingimento dos objetivos definidos. Defendendo uma perspectiva ética de educação, pautada não somente na eficiência dos meios, mas na coerência que mantêm com os propósitos educativos, o autor cita o argumento de Richard Peters de que a educação não deve ser considerada um processo neutro e instrumental para alcançar um fim externo a ele.

Atribuir uma definição econômica para a finalidade da educação, como “dar emprego aos estudantes” e “aumentar a produtividade da comunidade”, é um exemplo do que é colocar o processo educativo em função da produção de bens externos a ele. Igualar a educação à apropriação de um currículo também o é. Um processo exclusivamente direcionado a finalidades extrínsecas – isto é, entendido como o caminho para aprender um certo conjunto de conteúdos ou dominar determinadas habilidades, por exemplo – é treinamento, e não educação. Esta última envolve, necessariamente, uma mudança na forma como a pessoa vê o mundo em relação a si mesma – um propósito intrínseco à educação, que não pode ser dissociado dos procedimentos e estratégias adotados no processo educativo (ELLIOTT, 2001).