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Contraste entre o mundo branco e preto e o mundo colorido

7. Experiências em perspectiva poética: a análise dos dados

7.2. Poema sobre a experiência: o que os núcleos de significação têm a contar

7.2.2. Contraste entre o mundo branco e preto e o mundo colorido

Para terminar, achei interessante esse contraste entre o mundo “branco e preto” e o mundo “colorido” que aparece com a chegada dos personagens que brincam e modificam a criança. Acho que, entre outras coisas, conseguimos lembrar às pessoas que, apesar do tempo passar e das responsabilidades chegarem e/ou aumentarem, nunca devemos permitir ser invadidos pelas “cores tristes”, ou seja, pelo lado triste da vida. (Mayara, 29/03/2015)

No registro poético em que comenta o vídeo A menina que não sabia sorrir, a aluna Mayara, uma de suas autoras, apresenta algumas interpretações possíveis para a transição das cenas em preto e branco para as coloridas. Uma delas é a de que se trata de uma criança que sofre bullying e encontra alegria e esperança no universo da leitura:

(...) acabamos por criar um pequeno vídeo que retrata a história de uma criança aborrecida devido ao “bullying” que sofria no ambiente escolar, e então, ao abrir um livro, se depara com um mundo alegre e diferente. (Mayara, 29/03/2015)

A conexão entre o problema vivido pela criança e o suporte encontrado nos livros remete à atividade, desenvolvida desde a primeira aula da EP107, na qual as alunas eram convidadas a apresentar um livro infantil de histórias e, a partir dele, uma proposta de trabalho pedagógico.

A referência à atividade com os livros infantis, tendo surgido em um dos principais elementos simbólicos desse registro poético (a transição das cores), indicia a importância dessa estratégia formativa. No entanto, não esgota a interpretação: outras alunas que assistiram ao vídeo em sala comentaram-no em seus registros poéticos, atribuindo-lhe novos sentidos. Outra leitura, dentre muitas possíveis, é a que significa as cenas a partir da necessidade de encontrarmos acolhimento e aceitação ao estar em um ambiente novo. A aluna Julia2, em um de seus registros, menciona:

[registro] em forma de vídeo, que foi muito legal, contando a história de uma menina que não falava e os amigos a ajudaram a socializar” (Julia2,

24/03/2015).

Algo que a aluna Ana Paula relata da própria experiência:

Antes de ingressar na UNICAMP, eu me sentia um peixe fora d’agua. Meus amigos nunca me entendiam, eu era vista como a estranha da turma, porque

não bebia, não fumava, não ficava com ninguém, ou seja, não me encaixava. Sempre me perguntava se eu era a estranha do ninho mesmo, se eu teria que mudar meu jeito de ser ou tentar me encaixar para ser feliz e, sinceramente, isso não me agradava nem um pouco. Porém, ao entrar aqui, me senti igual o camaleão53, um artista que recebia seu devido valor por ser diferente. Aqui

(tanto na sala de aula, como na UNICAMP em si) eu encontrei pessoas parecidas comigo, que, digamos, estão na mesma “frequência”, e pude entender que eu não precisava mudar meu jeito de ser. Que aqui eu encontraria minha segunda casa. (Ana Paula, 13/04/2015)

Conectar-se às pessoas, fazer amizades, ser aceito: como isso efetivamente transforma o ambiente em que estamos. O ambiente, fisicamente, permanece o mesmo; contudo, outrora silenciosa e cinza, a paisagem torna-se colorida e musical para o indivíduo quando muda a qualidade de suas relações com o outro. Veresov (2005) enfatiza que as relações sociais que Vigotski considera fundantes das funções psicológicas não são quaisquer relações sociais, mas aquelas que configuram uma colisão, uma contradição – um contraste – entre duas pessoas. Um evento dramático, na acepção do teatro e das artes, em cujo vocabulário Vigotski bebia fortemente: uma experiência fortemente matizada por emoções. Isso parece ser uma chave para compreender o sentido constitutivo com que o contraste aparece nas narrativas dos registros poéticos.

Assim, é possível ler no vídeo, de certo modo, a própria situação daquelas alunas do primeiro semestre, recém-chegadas na universidade, diante da necessidade de se relacionar com as novas colegas e colorir aquela paisagem com vínculos significativos. Essa temática, que acabou atravessando a disciplina toda, apareceu com muita força em diversos registros poéticos e formou um núcleo de significação próprio – Naquele lugar, aconchegante e acolhedor –, que será explorado em detalhes, mais adiante (7.2.3).

Combinada à temática do acolhimento, uma terceira leitura possível traz, ainda, o contraste entre o mundo branco e preto do ensino academicista e o mundo colorido de uma proposta de ensino permeada pela afetividade e pela dimensão prática. O trecho a seguir, do registro poético da aluna Juliana2, pode ser analisado mediado pelo núcleo de significação Contraste...:

Ao entrar na sala de aula, me deparo com uma pessoa muito simpática e entusiasmada, conhecida como Ana Aragão, dizendo-nos que seria a professora. Nessa hora me senti acolhida, e num ambiente prazeroso para se

53 Referência à animação em curta-metragem “Art of Survival”, do diretor Cassidy Curtis

(Duração: 2’52’’), apresentada em sala pela Prof.ª Ana Aragão. Disponível em <http://bit.ly/artofsurv>, ou pelo código QR ao lado. Acesso em 28 de novembro de 2016.

aprender, devido ao cuidado que ela passara e a leveza com a qual lecionava. Eu estava preocupada, pois todas as [demais] aulas estavam sendo até então extremamente teóricas e algumas quase incompreensíveis. Aquilo estava me deixando desanimada e preocupada se conseguiria realmente chegar ao final do semestre. No entanto, ao me deparar com a apresentação da disciplina, começou a se confirmar que estava no lugar certo. Estava realmente impressionada de como aquele plano de curso veio para me alegrar e tornar as coisas mais “práticas”: iríamos ter conhecimento de como lidar em sala de aula, como portar-se com alunos e seus pais, e até mesmo ter contato com planejamentos; e para mim, o mais importante de tudo isso: poder se expressar por meio destes registros. (Juliana2, 23/03/2015)

O vídeo da “menina que não sabia sorrir” pode ilustrar o contraste vivenciado por Juliana2. Uma experiência dramática. A aluna aponta, como aspecto favorável ao aprendizado, o prazer proporcionado pelo cuidado e pela leveza da professora. Indica, como conteúdos de seu interesse, estratégias para atuar em sala de aula, planejar e portar-se diante de alunos e pais; contrasta a alegria dessa dimensão mais prática com o desânimo em relação ao predomínio da dimensão teórica. Mesmo que, ao final, a disciplina não pudesse responder a todas as suas dúvidas, sinalizava por onde poderia começar a buscar soluções. Tornar as coisas mais práticas, por ser também uma temática recorrente, é um núcleo de significação que será apresentado e desdobrado adiante (7.2.10). Por outro lado, ainda que a ausência da dimensão prática seja motivo de frustração, isso não significa que a dimensão teórica não possa ser motivo de prazer, como discuto em outro núcleo (7.2.8).

A ideia de contraste entre o mundo branco e preto e o mundo colorido apresenta, a princípio, uma dicotomia. Uma oposição entre dois mundos, aparentemente absolutos, com valorações bem definidas – como mostram os exemplos trazidos até o momento. Porém, nesta pesquisa, este núcleo será lido por uma perspectiva dialética: mundo branco e preto e mundo colorido, em permanente interação, fazem parte de uma mesma unidade de contrários. Constituem-se mutuamente, pois um mundo se revela a partir do contraste com o outro. Não são mundos acabados em si, mas etapas que se alternam no processo de formação inicial das professoras, como os pés que revezam de posição durante a caminhada. O contraste não ocorre sempre no mesmo sentido, pois o mundo branco e preto também sucede o colorido em alguns momentos, como mostra o registro de Raphaela a seguir:

situação da educação e dos professores no Paraná , ligando uma notícia à outra, a luta dos professores e a tendência dos caminhos que vêm pela frente. Me dei conta da imensidão de desafios que nós teremos de enfrentar como professores. Me assustei sim, não por ser algo inesperado, afinal, quando se pensa em educação no Brasil, logo se pensa em desafio, mas por cair na real de que isso nunca esteve tão perto de nós. Me vi em um paradoxo entre o mundo que faço na minha cabeça e o mundo que piso com os meus pés. Isso doeu muito e deixou um pingo molhado na minha folha. (Raphaela, 11/05/2015).

O paradoxo entre o mundo que faço na minha cabeça e o mundo que piso com os meus pés poderia muito bem ser um nome alternativo para este núcleo de significação. Afinal, nele também cabem as contradições: a inquietude, despertada pela dimensão crítica da formação, em contraste com o encantamento da proposta afetiva e estética – pois o olhar poético não é a negação da luta, mas uma das expressões mais elevadas de resistência. A aluna Raphaela continua seu registro:

Logo depois, ouvi o registro poético da Fabi55, que traduziu aquilo que eu

estava pensando, mas de forma doce e acolhedora, algo como um abraço... outro pingo molhado espalhou-se em minha folha: mas dessa vez não foi de dor, foi talvez um pingo de esperança. (Raphaela, 11/05/2015).

Estes são alguns dos (muitos) contrastes presentes nos registros que ofereceram indícios sobre os elementos formativos da disciplina e da prática dos registros poéticos em si. Olhemos agora, mais detidamente, o que a leitura dos registros apontou sobre a construção da disciplina como um lugar acolhedor.