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O registro poético na formação inicial de professores

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

RAUL CABRAL FRANÇA

O REGISTRO POÉTICO

NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

CAMPINAS

2017

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RAUL CABRAL FRANÇA

O REGISTRO POÉTICO

NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Educação, na área de concentração de Educação.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Maria Falcão de Aragão

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO RAUL CABRAL FRANÇA E ORIENTADA PELA PROF.(A) DR.(A) ANA MARIA FALCÃO DE ARAGÃO.

CAMPINAS 2017

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas Biblioteca da Faculdade de Educação

Rosemary Passos - CRB 8/5751

França, Raul Cabral,

F844r FraO registro poético na formação inicial de professores / Raul Cabral França. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

FraOrientador: Ana Maria Falcão de Aragão.

FraDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade

de Educação.

Fra1. Formação inicial do professor. 2. Curso de Pedagogia. 3. Experiências

pedagógicas. 4. Teoria Sócio-Histórico-Cultural. I. Aragão, Ana Maria Falcão de,1959-. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Poetic record on initial teacher education Palavras-chave em inglês:

Teacher education Education courses Educational experience Developmental psychology

Área de concentração: Educação Titulação: Mestre em Educação Banca examinadora:

Ana Maria Falcão de Aragão [Orientador] Luciana Haddad Ferreira

Maria Silvia Pinto de Moura Librandi da Rocha

Data de defesa: 23-02-2017

Programa de Pós-Graduação: Educação

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DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

O REGISTRO POÉTICO

NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

Autor: Raul Cabral França

COMISSÃO JULGADORA: Ana Maria Falcão de Aragão Luciana Haddad Ferreira Maria Silvia Pinto de Moura Librandi da Rocha

A Ata da Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

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À Sandra – meu outro mais importante, mãe, parceira e educadora da alma;

Ao Rogerio – amizade sincera, pa(i)drasto que me acolhe, incentiva e dá asas;

Ao Gione – companheiro, pai que, desde que eu era pequeno, me doa sua forma de olhar a vida com alegria, música e entusiasmo;

À Cida – que nunca é chamada de vó, porque nossa intimidade dispensa esses títulos, a gratidão pelo tanto que cuida de mim;

Ao Gabriel – irmão e amigo mais querido, com quem tenho a rara sensação de comunicação direta pelo pensamento;

À Prof.ª Ana Aragão – Ana, que me deu a oportunidade de ser seu aluno e orientando no Mestrado; hoje, olhando as pegadas dessa parceria em meu trabalho, já não consigo distinguir quais são minhas e quais são suas;

À Casa Transitória “Fabiano de Cristo” – e meus amigos que lá são voluntários, pelo porto seguro ao coração;

Aos meus professores – que me formaram, informaram, transformaram e inspiraram;

Aos colegas do GEPEC – porque os seus olhares trans-formam o meu;

Às alunas da pedagogia – futuras educadoras, com quem partilho o destino;

Aos funcionários da Faculdade de Educação – em especial aos da biblioteca e da secretaria, por aplainar caminhos em nossa trajetória de estudo e pesquisa;

Ao povo brasileiro – que, entre milhares de méritos, mantém a entidade CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior), à qual sou grato pelo apoio financeiro.

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turma de 49 estudantes de pedagogia de uma universidade pública paulista. Ao longo de um semestre, em uma disciplina introdutória oferecida ao primeiro ano, as alunas registraram semanalmente suas experiências com as propostas formativas vivenciadas em aula. As participantes foram convidadas a expressar suas reflexões em variados formatos – tais como prosa, verso, desenho, fotografia, vídeo, música ou mesmo intervenção em classe –, e incentivadas a assumir um olhar sensível, estético e simbólico, permeado de pessoalidade e afetividade. A atividade, por isso, tinha o nome de registro poético. No total, 580 registros poéticos foram produzidos durante a disciplina e, destes, 57 apresentados em classe, voluntariamente, por suas autoras, em momentos das aulas especialmente reservados para tal. As alunas foram convidadas a ceder seus registros para o estudo, e essas produções tornaram-se, então, dados para investigar quais foram as principais experiências formativas, as estratégias de ensino consideradas relevantes (para os sujeitos e para o pesquisador) e as contribuições que a prática do registro poético ofereceu à formação das futuras educadoras. A pesquisa foi concebida e orientada a partir do referencial oferecido pela Psicologia Histórico-Cultural. A análise dos dados é inspirada pela abordagem de pesquisa descrita como paradigma indiciário, e dirigida pela metodologia dos núcleos de significação. Deste modo, e dialogando também com interlocutores situados para além da psicologia educacional, o estudo encontra importantes olhares e fundamentos para conceituar, discutir e compreender os sentidos inscritos nas narrativas verbais e não verbais das estudantes. A fim de construir a contextualização necessária, o texto narra memórias do pesquisador sobre sua trajetória até chegar a este tema; dialoga com escritos das alunas para reconstituir um panorama sobre a disciplina e suas principais atividades; apresenta a origem do registro poético como conceito e proposta, remontando às pessoas e concepções que inspiraram essa prática. Oferece, ainda, como lições aprendidas, a síntese daquilo que a investigação permitiu compreender: os aspectos da disciplina que a constituíram como um espaço acolhedor, que abriu espaço para as estudantes descobrirem a si e às outras, por meio da partilha de narrativas e do contato com as memórias; e de que modo a mediação intencional da docente e de suas auxiliares promoveu tais experiências formativas. Aponta, por fim, limites, contradições e potencialidades do registro poético na formação inicial de professores.

Palavras-chave: formação inicial de professores; curso de pedagogia; experiências pedagógicas; Teoria Sócio-Histórico-Cultural.

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students from a São Paulo state university, in Brazil. Throughout a semester, in an introductory course of the first year, students have recorded their experiences with the educational activities had in class. The participants were invited to express their reflections in several formats – such as prose, poetry, drawing, photography, video, music or even classroom intervention –, and were encouraged to assume a sensitive eye, aesthetic and symbolic, pervaded with personhood and affectivity. For this reason, the activity was called poetic record. In total, 580 poetic records were produced during the course, and 57 of them were presented in class by their authors, voluntarily, at moments specially reserved for that. Students were invited to provide theirs records for study, and this production then became data to investigate which were the main education experiences, teaching strategies considered relevant and the contributions of the poetic record practice to these future educators’ education. The research’s conception and orientation is grounded on Cultural-Historic Psychology. Data analysis is inspired by the research approach described as evidential paradigm, and driven by the method of meaning cores. Thereby, and also on dialogue with interlocutors beyond educational psychology, this study finds out important ways of looking at and foundations to conceptualize, discuss and understand the senses inscribed in students’ verbal and non-verbal narratives. In order to build the necessary contextualization, this text narrates researcher’s memories on his path to this theme; it dialogues with students’ writings to reconstitute a panorama about the course and its main activities; and presents poetic record’s origin as a concept and a proposal, going back to people and conceptions that inspired this practice. It also offers, as lessons learned, the synthesis of what was made understandable by the investigation: aspects that constituted the course as a warm place, which opened room for students’ discovery of themselves and of others by sharing narratives and getting in touch with memories, and how the professor and her assistants have promoted such educative experiences. It points outs, finally, limits, contradictions and potentialities of poetic record on initial teacher education.

Keywords: teacher education; education courses; educational experience; developmental psychology.

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1. Sementes: apontamentos para início de percurso ... 10

1.1. Algumas reflexões sobre a produção de conhecimento ... 12

1.2. Alguns aspectos sobre este texto ... 15

2. De grão em grão, me farei polinizado: um memorial de formação ... 20

2.1. Sobre o menino e o interesse pela educação ... 23

2.2. Sobre a graduação e as experiências profissionais ... 26

2.3. Sobre o recém-formado e ainda sobre o interesse pela educação ... 34

2.4. Sobre o Mestrado e o grupo de pesquisa ... 36

3. O ecossistema de formação: uma introdução (à pedagogia) ... 41

3.1. Leitura que acolhe ... 42

3.2. Autorretrato ... 43

3.3. Livros infantis e propostas de trabalho pedagógico ... 46

3.4. Discussão teórica ... 47

3.5. Registro poético ... 48

3.6. Um projeto de pesquisa? ... 50

4. Raízes do registro poético: uma história sobre a proposta ... 52

5. Apresentando polinizadores: uma contextualização teórica ... 59

5.1. L. S. Vigotski e a Teoria Histórico-Cultural ... 59

5.2. Experiência ... 64

5.2.1. Jorge Larrosa ... 66

5.2.2. Walter Benjamin ... 67

5.2.3. Lev Vigotski ... 72

5.3. Formação inicial de professores ... 77

6. Chamando espécies pelo nome: uma discussão metodológica ... 84

6.1. Produção dos dados ... 84

6.2. Recorte adotado ... 86

6.3. Núcleos de Significação ... 87

6.4. Paradigma indiciário... 89

7. Experiências em perspectiva poética: a análise dos dados ... 92

7.1. A menina que não sabia sorrir: como olhar para um registro poético? ... 92

7.2. Poema sobre a experiência: o que os núcleos de significação têm a contar ... 99

7.2.1. Aquilo que ficou ... 101

7.2.2. Contraste entre o mundo branco e preto e o mundo colorido ... 103

7.2.3. Naquele lugar, aconchegante e acolhedor ... 106

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7.2.7. Capaz de nos fazer enxergar ... 122

7.2.8. Aquilo que sabemos e aquilo que pensamos saber ... 126

7.2.9. Aprendizados relevantes para minha vida pessoal ... 131

7.2.10. Tornar as coisas mais “práticas” ... 133

7.2.11. Cheia de impressões pessoais ... 135

7.2.12. Como é bom fazer arte! ... 137

8. Frutificar: reflexões sobre as lições aprendidas na polinização ... 142

8.1. Florescência: experiências formativas ... 145

8.2. Cultivo: estratégias relevantes ... 148

8.3. Adubação: contribuição dos registros poéticos para a formação inicial ... 154

8.4. Ninguém queria ir embora: pensamentos finais ... 159

Referências ... 165

Apêndices ... 171

Apêndice I: Conteúdo programado da disciplina EP107 ... 171

Apêndice II: Alunas-autoras dos registros poéticos participantes da pesquisa ... 172

Apêndice III: Dados adicionais sobre os registros poéticos produzidos e apresentados ... 173

Apêndice IV: Referências dos livros infantis e crônicas citadas ... 175

Apêndice V: Desenhos de Julia1 sobre a dança de Jade e Raphaela ... 177

Apêndice VI: Carta aos futuros professores ... 178

Apêndice VII: Continuação do registro poético de Amanda2 ... 178

Anexos ... 180

Anexo I: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ... 180

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Sementes: apontamentos para início de percurso

Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através de muito trabalho. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.

Clarice Lispector1

O registro poético, estudado nesta pesquisa, foi uma prática de ensino adotada pela Prof.ª Ana Maria Falcão de Aragão na disciplina Introdução à Pedagogia e Orientação do Trabalho Pedagógico, ministrada para o primeiro semestre do curso de pedagogia, na Faculdade de Educação da UNICAMP, em 2015. A proposta tratava-se de uma reflexão semanal sobre a aula, que poderia ser composta de múltiplas maneiras: os registros poderiam ser feitos, por exemplo, em forma de prosa, verso, desenho, fotografia, vídeo, música ou mesmo intervenção em classe. Propunha-se às alunas que expressassem uma síntese do que haviam vivenciado na aula, e para isso poderiam mesclar diferentes recursos expressivos, verbais ou não verbais, de modo criativo e à sua escolha.

Por que registro? Era necessário que esta produção se traduzisse em um registro, físico ou digital, que pudesse ser levado por cada aluna como marca do encontro. Sínteses expressas de forma imaterial – como intervenções artísticas e relatos orais – precisariam estar documentadas de alguma maneira, seja em um texto ou em uma videogravação.

Por que poético? Para que não adquirisse o caráter de relatório ou de resumo descritivo, mas revelasse olhares sensíveis sobre o vivido, a proposta abria a possibilidade de realizar uma produção autoral, com liberdade para a escolha de linguagem e formato, incentivando a expressão da subjetividade e a criação artística.

Por que na formação inicial de professores? Esta não é uma pesquisa sobre o registro poético em si, mas sobre educação e a formação inicial de professores. Em vez de tratar este tema por uma perspectiva globalizante, entretanto, propõe-se a produzir saberes a partir de uma experiência significativa e faz dela o seu objeto de estudo.

Considero o trabalho de redigir esta Dissertação por dois aspectos. Um é o de dar corpo à pesquisa que tenho realizado sobre a prática dos registros poéticos, conferindo cidadania a esses saberes sobre a formação inicial e permitindo que circulem para além dos

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limites daquele lugar e momento em que a experiência ocorreu. Outro é o da minha própria formação como educador e pesquisador da educação. Escrevendo, mobilizo uma assembleia de memórias, significados, conceitos e princípios, em debate sobre aquilo que foi, para melhor ajuizar sobre aquilo que é, e assim deliberar sobre algo daquilo que pode ser.

Não saberia responder, por hora, se um aspecto está subordinado ao outro, nem qual deles prevalece, se esse for o caso. O que sei é de alguns desejos que me tocam enquanto trabalho. O principal deles talvez seja, já que estou a escrever, que da leitura desse texto resulte para o leitor algo de proveitoso. Umberto Eco (2014) foi um interlocutor que me marcou logo no início da pós-graduação, advertindo com seu humor temperado de espirituosidade sobre a sina de muitos iniciantes na pesquisa: ao escolher o tema, se propõem a responder alguma grande questão da humanidade, logo na primeira tacada. Quero crer que esse não é o meu caso; sem prometer aos leitores a revelação de uma descoberta conclusiva ou de um novo paradigma científico no campo educacional, quero, ao menos, oferecer uma honesta narrativa da travessia que empreendi na pesquisa, pois ela me valeu muito a pena. O encontro e o diálogo com autores; a possibilidade de pensar a formação inicial de professores a partir de uma rica proposta de ensino; a revisitação das experiências – ao mesmo tempo coletivas e singulares – registradas pelas alunas e alunos; o trabalho atento e sensível de ler os sentidos escritos em palavra poética. Afinal, foi no decorrer desse percurso – e não apenas no momento de constatar resultados – que esta pesquisa produziu saberes.

O desassossego com que tive que lidar é o de querer desenvolver sempre um quê a mais da investigação e dos textos, flertando com a tentação de esticar para um pouco além os prazos da vida acadêmica. Não é sem motivo: a narrativa, por mais (e melhor) gestada que seja, nunca esgota a experiência. Foi importante para mim ter recebido, certa vez, um conselho do meu pai. Contou-me que, tendo sido aluno da Escola Panamericana de Artes, em São Paulo, estagiou em uma agência de criação onde aprendeu uma das coisas mais importantes sobre desenho: saber a hora de terminá-lo. Um certo número de traços é necessário para configurar a forma; uma certa quantidade de detalhes é importante para dar movimento e profundidade; o que vem além disso prejudica o que já estava bom.

Tomei emprestadas as palavras de Clarice, no início do capítulo, pois era preciso dizer que eu também só alcanço a simplicidade (e a leveza, e a clareza) através de muito trabalho. Ao desenvolver as ideias, empenhei bastante esforço para também amadurecer a prosa, a fim de que ganhasse mais alma, assertividade e expressão. Reconheço, no entanto, que ao dar o trabalho por concluído ele passa a ter, por certo, a marca de um tempo, de um

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entendimento, de uma fase do pesquisador. Não conseguirá me acompanhar, atualizado, por toda a minha trajetória de autoria; afinal, enquanto tiver perguntas e não tiver respostas, continuarei a escrever.

1.1. Algumas reflexões sobre a produção de conhecimento

Neste tempo, que alguns assinalam com o signo da pós-modernidade, mais do que em outros momentos históricos, talvez, a noção de verdade é desafiada. A complexa e crescente diversidade de leituras possíveis sobre o mundo parece se opor à viabilidade de uma certeza única sobre fatos, fenômenos e seus sentidos. Nessa arena contemporânea de significações em disputa, o conhecimento dito científico tem se colocado no posto de juiz; aquele socialmente mais aceito como imparcial, objetivo e confiável para ser o legítimo mediador de nossas relações com o mundo.

Nem o juiz, porém, escapa a objeções. Ocasionalmente, surgem controvérsias envolvendo a imparcialidade do conhecimento científico, suscitadas por episódios históricos. Apenas para citar um relativamente contemporâneo, do início do século XX: a disputa entre Clair Patterson e Robert Kehoe a respeito de o chumbo ser ou não tóxico2. Ambos os cientistas apresentaram argumentos metodológicos e dados empíricos para sustentar suas posições, que eram antagônicas; no contexto, havia interesses envolvidos: a questão de saúde pública conflitava frontalmente com o negócio da indústria petroleira, que adicionava chumbo ao combustível para elevar seu rendimento.

A convicção na plena objetividade da ciência também não é defensável, mesmo entre os que advogam que ela deve buscar ser o mais objetiva possível. Ernest Nagel (1961), um dos filósofos da ciência que sustentam essa necessidade, reconhece que não se deve considerar o método científico capaz de eliminar qualquer forma de viés pessoal, nem que seus resultados são uma verdade invariável. A possibilidade de uma objetividade absoluta esbarra no problema de que todos os modos disponíveis para conhecermos o mundo passam, de algum modo, por nossa experiência sensível, com todos os vieses que lhe são inerentes. Tal questão não é nova – tem sido discutida desde os filósofos da antiguidade.

Se a última característica que mencionei quando me referi ao conhecimento científico – a de ser confiável – for entendida como sinônimo de “ser infalível”, terei

2 Esse caso é narrado de forma bem ilustrada no sétimo episódio da série de documentário científico Cosmos: Uma Odisseia do Espaço-Tempo (2014).

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novamente que apresentar objeções. Porém, não aderirei a radicalismos; descartando a pretensão absurda de infalibilidade, faz sentido considerar esse tipo de conhecimento suficientemente confiável. É necessário apenas buscar definir um pouco melhor seus contornos.

Recorrendo mais uma vez às explicações de Nagel (1961), a palavra “ciência” é um rótulo para um empreendimento identificável e contínuo de investigação, e a palavra “científico” é outro para designar seus produtos intelectuais. Se pararmos a definição aqui (o autor, naturalmente, a desenvolve), temos um espaço bastante amplo para abarcar formas muito diversas pelas quais o humano tem construído conhecimento. Historicamente, porém, as definições mais difundidas de ciência têm se caracterizado não apenas como um empreendimento de investigação identificável e contínuo, mas rigoroso o suficiente para determinar quais conhecimentos são epistemicamente garantidos. “Garantido” é uma palavra exigente; o ideal de ciência marcado por ela se associa a uma severa normatividade.

Uma enumeração genérica dos caracteres desse ideal de ciência incluiria, por certo, a necessidade de partir de evidências factuais que sejam definíveis, controláveis, mensuráveis e categorizáveis. Somente assim é viável a busca por padrões que se repetem, configurando uma relação de dependência entre os fenômenos observáveis. E por meio da identificação de padrões, encontrar as leis subjacentes aos fenômenos; leis que os regem, e que permitem prevê-los. Por essa lógica, a validade de uma teoria científica seria testada pela sua capacidade de prever os fenômenos – pois isso é o que instrumentaria o homem para controlar a natureza e manipular suas propriedades de acordo com os fins a que se propõe.

À medida que essa abordagem foi se mostrando bem-sucedida nas ciências da natureza, outras disciplinas pretenderam adotá-la igualmente, na tentativa de também se legitimarem como científicas. As ciências humanas, porém, ficaram em uma encruzilhada, como retrata Carlo Ginzburg:

A orientação quantitativa e antiantropocêntrica das ciências da natureza a partir de Galileu colocou as ciências humanas num desagradável dilema: ou assumir um estatuto científico frágil para chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto científico forte para chegar a resultados de pouca relevância. (GINZBURG, 1979/2009, p. 178)

O objeto das ciências sociais e das humanidades parecia não se render docilmente ao escrutínio dos métodos quantitativos, que buscavam dissecá-lo em variáveis para obter leis

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generalizáveis sobre seu comportamento. Quando forçado a se encaixar nesses parâmetros, os resultados não se mostravam tão replicáveis ou universais quanto seria de desejar; qualitativamente diferentes dos fenômenos naturais, os fenômenos humanos demandavam outras formas de estudo.

A discussão sobre a especificidade das ciências humanas é bastante extensa; creio, porém, que tais considerações sejam suficientes para contextualizar, a partir de então, o que se entende nesta pesquisa por produzir conhecimento, a partir de uma perspectiva histórico-cultural. Não se trata da busca por resultados definitivos – provar ou refutar uma hipótese –, mas de produzir saberes relevantes para a compreensão e a práxis no campo educacional. Não saberes pretensamente universais, mas, ao contrário, marcados por um tempo, por uma cultura, por um grupo de sujeitos. Remontar à gênese sócio-histórica dos fenômenos é a maneira de escapar das explicações naturalizantes, reconhecendo que nosso próprio modo de pensar é mediado por significações constituídas histórica e culturalmente (AGUIAR; BOCK, 2016).

O papel do pesquisador nesse empreendimento não é o de colocar-se como um mero aplicador neutro da metodologia sobre os dados, precavendo-se de todas as maneiras possíveis para evitar que sua subjetividade interfira na análise. É preciso reconhecer, de antemão, que a subjetividade constitui o olhar: crenças, experiências e afetos do pesquisador invariavelmente permeiam todo o processo de interpretação e escolha. Em vez de sustentar um verniz de objetividade total que não condiz com as entranhas do processo, assumir o lugar de onde se fala é justamente uma opção que pode conferir à investigação maior transparência. O próximo capítulo busca atender a esse propósito.

Ora, então o que difere esta Dissertação, como trabalho de pesquisa, de um relato de experiência, de um romance, de uma autobiografia ou de uma ficção? A diferença diz respeito ao caráter sistematizado, intencional e racional de se investigar, e sobretudo à sua fundamentação teórica (ARAGÃO, 2012). Ainda assim, as lições aprendidas nesse percurso se apresentam como uma leitura possível, e não como verdade final. Ao confessar a pessoa do pesquisador que conduziu o processo e a concepção de ciência que o orientou, renuncio à pretensão de objetividade e neutralidade (entendidas como anulação da subjetividade). Ao expor os princípios e os procedimentos utilizados na investigação – compromissados com a não descaracterização do complexo fenômeno humano estudado – aspiro a que essas lições contem, sim, como saberes suficientemente confiáveis.

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1.2. Alguns aspectos sobre este texto

É importante, primeiro, situar o leitor sobre alguns aspectos desta Dissertação. Em alguns momentos da escrita, deparo-me com a necessidade de fazer referência ao conjunto de pessoas que fazem parte da turma de pedagogia que realizou a prática dos registros poéticos. Adianto alguns dados: das 49 pessoas matriculadas na disciplina, 45 eram mulheres e apenas 4 eram homens. Que as mulheres sejam maioria, não é algo surpreendente: historicamente, o predomínio feminino na carreira docente está ligado ao fato de a própria escolarização de nível médio da mulher ter se dado pela expansão dos cursos de formação para o magistério, com as Escolas Normais criadas no final do século XIX (GATTI, 2010). Ainda hoje, segundo dados do ENADE (2014), 93,2% dos estudantes de pedagogia são mulheres.

No caso de um coletivo qualquer de pessoas no qual esteja presente um único homem ou mais – caso da turma de pedagogia em questão –, manda a norma gramatical da língua portuguesa que se faça a flexão de gênero no masculino: os alunos, os estudantes. Peço licença para adotar outra regra, como propõe a Profa. Corinta Geraldi3 em suas aulas: a flexão de gênero da maioria. Quando me referir ao conjunto de pessoas da turma, darei preferência a chamá-las de “alunas” – o que respeitosamente inclui os 4 alunos do sexo masculino.

Cito trechos de registros poéticos em diversas passagens do texto, desde o momento em que começo a narrar a disciplina Introdução à Pedagogia (no terceiro capítulo). Em grande parte das vezes, não os apresento como dados para análise (o que ocorrerá, sim, mais adiante, no capítulo 7), mas como forma de trazer a voz das estudantes para dentro da pesquisa.

Ao citar os registros, informo as autoras e as datas atribuídas (que constam por escrito na maioria). Naqueles casos em que a data não está explícita, faço o cruzamento de informações (momentos da aula mencionados, metadados do arquivo digital, etc.) para determinar a data mais aproximada possível.

No acordo firmado para a participação na pesquisa, a aluna deveria eleger explicitamente, no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), qual seria a sua opção de confidencialidade, isto é, se desejaria ou não ser identificada pelo nome real. Essa foi uma solução encontrada para conciliar a necessidade de garantir o direito da participante à privacidade – um imperativo ético de pesquisa –, e o fato de que muitas alunas não viam os registros poéticos como dados confidenciais, mas como uma produção cuja autoria gostariam

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de ter reconhecida. É algo a ser notado que a expressiva maioria das participantes – 38 de 47, o que equivale a 80% – optou pelo reconhecimento da autoria. Os TCLEs contavam com um espaço para que cada aluna indicasse a forma como gostaria de ter seu nome (ou pseudônimo) grafado. Para conferir uniformidade às identificações, ainda que algumas autoras tenham escrito o nome completo, optei por indicá-las apenas pelo primeiro nome, com exceção das que optaram por serem identificadas apenas pelas iniciais4.

Como pesquisador, fiz também a opção metodológica por corrigir pequenas falhas de ortografia e pontuação nos registros, assumindo como prioridade a clareza da leitura do conteúdo. Tal decisão, discutida em nosso grupo de pesquisa, se fundamenta no princípio de que a finalidade da pesquisa é a investigação dos sentidos, e não análises de cunho linguístico. Concordo com Wanda Aguiar e Ana Bock, que afirmam:

E aqui cabe pontuarmos que, no processo de apreensão da dimensão subjetiva da realidade, é essencial o momento de apreensão do sujeito histórico da atividade, e não de sua produção linguística, ou do texto/discurso por ele produzido. Nosso objeto de estudo, aquilo que deve ser analisado e interpretado, é o humano, ou seja, focamos o sujeito em suas relações. Esta pontuação nos distancia das análises linguísticas e nos coloca no campo da análise da subjetividade do sujeito historicamente constituído (AGUIAR; BOCK, 2016, p. 50)

Esta opção foi corroborada por uma das participantes do nosso grupo, orientanda de iniciação científica, que cursou a disciplina e é sujeito da pesquisa. Tendo seus próprios registros poéticos analisados e citados aqui, expressou a preferência pela correção de pequenas falhas nos textos. Ao adotar essa medida, no entanto, tomo o cuidado de interferir o mínimo possível na produção das alunas, retificando apenas o que aparentava ser erro de escrita e, portanto, um ruído não intencional; preservo rigorosamente as opções de estilo e a escolha de palavras.

Dada a natureza dos registros poéticos e da proposta formativa, são citados, ao longo do texto, diversos conteúdos multimídia que fizeram parte dos encontros da disciplina e que considerei útil colocar à disposição do(a) leitor(a), visando oferecer não apenas uma referência descritiva, mas o acesso à experiência mais próxima possível daquela vivenciada pelo grupo de sujeitos que a narra. Assim, disponibilizo links nas notas de rodapé, que podem ser acessados de diferentes modos:

4 As autoras que têm o primeiro nome igual foram diferenciadas pelos números subscritos

1, 2, 3, etc. Conferir

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 Aqueles que estiverem lendo o texto digital em PDF podem clicar diretamente no link ou selecioná-lo e copiá-lo para o navegador;

 Aqueles que estiverem lendo o texto em papel podem digitar o link no navegador – todos os links foram encurtados e seguem o padrão abaixo: Ex: http://bit.ly/profspr

 Ou, ainda, poderão escanear o código QR correspondente, como no exemplo abaixo, usando um aplicativo para abri-lo no smartphone:

A propósito da Dissertação, sua estrutura segue uma lógica (quase) familiar. O capítulo 3 tem como objetivo apresentar o(a) leitor(a) à disciplina EP107, Introdução à Pedagogia: por meio de uma breve narrativa, ilustrada por passagens de registros poéticos, descrevo as atividades propostas às estudantes e a intencionalidade formativa em que foram baseadas. Apesar de o objeto principal desta pesquisa ser a experiência com os registros poéticos, considero fundamental a compreensão da EP107 como o ecossistema que a possibilitou, uma vez que, retirados de seu contexto, os dados não se fariam compreensíveis. Ademais, a referência a outros momentos e atividades da disciplina é recorrente ao longo do texto, pelo que vale a pena conhecê-los de antemão. Portanto, é o capítulo que faz o papel de introdução: ao final, reflito sobre como minha participação na disciplina se tornou um projeto de investigação e apresento as perguntas de pesquisa.

O quarto capítulo é dedicado a reconstituir a história do registro poético e as concepções que o fundamentam. A chegada da proposta no planejamento da disciplina Introdução à Pedagogia é o ponto de partida; em seguida, busco seus antecedentes. A retrospectiva se limita a delinear as fontes que mais diretamente inspiraram a atividade, do modo como foi proposta na EP107.

No capítulo 5, apresento autores e introduzo concepções teóricas necessárias para o início das discussões. Opto por não fazer dele uma exposição exaustiva de todo o referencial, mas uma aproximação dos interlocutores com quem dialogo, suficiente para balizar conceitos que serão aprofundados ao longo do texto, contextualizados nas questões de

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pesquisa. Está dividido em três partes: a primeira apresenta fundamentos da Teoria Histórico-Cultural, proposta por Lev Vigotski; a segunda discute o conceito de experiência, sobretudo à luz do pensamento de Jorge Larrosa, Walter Benjamin e Vigotski; a terceira, por fim, traça um panorama de como esta pesquisa compreende a formação inicial de professores, em diálogo com autores(as) que lhe ofereceram suporte.

O capítulo 6, por sua vez, tem como propósito oferecer uma descrição generosa dos procedimentos utilizados para a produção e análise dos dados. Primeiramente, explico como os registros poéticos – que eram um material produzido com finalidade de ensino – foram convertidos em material de pesquisa; apresento detalhes sobre o conjunto de dados e sobre os critérios usados para estabelecer os recortes da análise. Em seguida, apresento os dois principais referenciais teórico-metodológicos que a orientaram: a proposta dos Núcleos de Significação, de Wanda Aguiar e Sérgio Ozella, e o Paradigma Indiciário de Carlo Ginzburg. Pretendo, assim, dar a conhecer, ao(à) leitor(a), o percurso trilhado pelo pesquisador para a elaboração dos saberes.

No sétimo capítulo, os registros poéticos aparecem com toda a sua potência: a partir de doze núcleos de significação, dezenas de trechos dos registros produzidos pelas alunas são expostos e articulados, de modo a destacar os indícios que permitem responder às perguntas de pesquisa. É o capítulo da análise dos dados, propriamente dita. Principia pela descrição completa da análise do primeiro registro poético, a título de exemplo; dispensando a exposição desnecessária dos procedimentos repetidos, prossegue, daí em diante, em uma narrativa única, que costura todas as doze subseções – uma para cada núcleo de significação. Cada indício apresentado oferece ensejo para explorar, por um ângulo diferente, aspectos da experiência das estudantes em relação à disciplina e os sentidos que, para elas, tiveram as propostas vivenciadas.

Por último, o capítulo 8 tece uma síntese da pesquisa, relacionando as lições aprendidas em seu percurso. Proponho respostas às indagações feitas na introdução, apontando experiências formativas, estratégias de ensino relevantes e contribuições do registro poético para a formação inicial das alunas – futuras professoras. É também o espaço onde avalio os resultados alcançados pela pesquisa, as limitações em que esbarrou, as possibilidades de investigação futura e reflito sobre o que significou, para mim, realizá-la.

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A respeito do capítulo 2, a seguir, gostaria de fazer algumas observações em especial. Trata-se de uma narrativa de apresentação sobre a formação do pesquisador, à guisa de memorial. O memorial de formação é algo que tradicionalmente não compõe o corpo dos textos acadêmicos, e é entregue como uma peça à parte aos membros da banca de avaliação. No GEPEC5, grupo de pesquisa do qual faço parte, optamos por tecer o memorial e a pesquisa juntos, compondo a mesma unidade. Ambos escritos na primeira pessoa do singular, consoante às considerações sobre ciência e conhecimento que apresentei anteriormente. O conhecimento produzido não se afasta, assim, da forma narrativa, que caracteriza o mais ancestral meio de partilhar a experiência.

O memorial que apresentarei não é mero repositório de dados sobre as qualificações e atividades acadêmicas e profissionais do pesquisador. Sem perder de vista o enfoque da formação, perpassa experiências que foram constitutivas para que chegasse, neste momento, a abordar o presente tema e do modo como o fiz. A finalidade não é evidenciar, de modo personalista, a figura pessoal do autor. O memorial é o lugar onde também me insiro como participante da investigação, que se autoconhece ao conhecer aquilo que estuda. É onde assumo o lugar de onde falo, sem me presumir um neutro observador da realidade. É no memorial, em suma, que me mostro pessoa, igualmente inscrita na história, na cultura e no grupo social, a partir dos quais faz a pesquisa.

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2. De grão em grão, me farei polinizado: um memorial de formação

– O que é uma memória?

(...) – Algo quente, meu filho, algo quente.

(...) – Algo bem antigo, meu caro, algo bem antigo.

(...) – Algo que o faz chorar, meu menino, algo que o faz chorar. (...) – Algo que o faz rir, meu querido, algo que o faz rir. (...) – Algo que vale ouro, meu jovem, algo que vale ouro.

Mem Fox6

A epígrafe deste memorial traz um trecho do livro infantil “Guilherme Augusto Araújo Fernandes”. Quando o menino fica sabendo que Dona Antônia está perdendo a memória, se pergunta: “o que é uma memória?”. Percorrendo, então, o asilo de idosos onde ela vive, e perguntando aos outros moradores, vai em busca de descobrir o que é para que possa providenciar “memórias” para Dona Antônia. Esta história, contada e ilustrada com grande sensibilidade por Mem Fox e Julie Vivas, é uma das prediletas da Prof.ª Ana Aragão, da Faculdade de Educação da UNICAMP, para iniciar a discussão sobre docência nas disciplinas de pedagogia e licenciatura que ministra. Afinal, antes de um professor, existiu um aluno. E antes de introduzir os futuros professores a um olhar acadêmico sobre a escola, é fundamental não desconsiderar a profunda intimidade que os mesmos já têm com a realidade escolar, inscrita na longa e constitutiva experiência que tiveram como estudantes.

A história de Guilherme Augusto Araújo Fernandes também nos faz pensar sobre as memórias que nos pertencem. Memórias, certamente, não são apenas um conjunto de dados e informações que registram os fatos ocorridos. Assim como as experiências que lhes deram origem, memórias são feitas de imagem, textura, sentimento e sentido. E assim sendo, é impossível tocar uma memória sem ser, de alguma forma, por ela tocado. Memórias referem-se ao passado, mas habitam o prereferem-sente, como uma versão atualizada – prereferem-sentificada – de nossas experiências. Em seu memorial de formação, Magda Soares reflete:

Procuro-me no passado e “outrem me vejo”; não encontro a que fui, encontro alguém que a que sou vai reconstruindo, com a marca do presente. Na lembrança, o passado se torna presente e se transfigura, contaminado pelo aqui e o agora. (SOARES, 1990/2001, p. 37, grifos da autora)

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O presente é o grande curador de memórias. Curador, administrando o patrimônio que o passado já não pode mais governar em interesse próprio. Curador, selecionando a dedo as obras que estarão em exposição, compondo a narrativa. Curador, afinal, porque também cuida, remedia, restaura ou amputa memórias que padeciam de algum desajuste. O presente não apenas marca e colore as experiências passadas, como também anseia, de modo quase irresistível, por organizá-las em sincronia com os projetos em curso. Analisando as memórias, os esquecimentos e os silêncios, escreve Michael Pollak:

Além disso, ao contarmos nossa vida, em geral tentamos estabelecer uma certa coerência por meio de laços lógicos entre acontecimentos chaves (que aparecem então de uma forma cada vez mais solidificada e estereotipada), e de uma continuidade, resultante da ordenação cronológica. Através desse trabalho de reconstrução de si mesmo o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros. (POLLAK, 1989, p. 13)

Confesso: quando escrevi a primeira versão do meu memorial, estava muito satisfeito com a bem-acabada narrativa, cronológica e linear, do menino ao pesquisador. E falava das experiências do menino – assim, na terceira pessoa – com tal propriedade que trazia, com nitidez, suas ideias e intenções, como que desejando demonstrar grande compreensão do seu (meu) processo de constituição.

“Esse menino não existiu”, disse, em certo momento, a Prof.ª Ângela Soligo, com enérgica ternura, no exame de qualificação. Foi como se um dos meus ídolos rolasse de seu altar. De fato, não era o menino de ontem que, correspondendo-se com o futuro, contava ao homem de hoje sua história; era, sim, o homem de hoje que olhava para trás e contava a história do menino. Questão de palavras? Não – a diferença não é trivial.

E o menino não se fez sozinho. Tampouco o homem se faz. Um dos aprendizados que mais transformaram meu olhar, desde que cheguei ao GEPEC e iniciei os estudos em educação, foi o quanto somos feitos de outras pessoas. Esse movimento de nos construirmos na relação com o outro, que discutirei teoricamente ao longo da Dissertação, em diálogo com L. S. Vigotski7 e outros autores da Teoria Histórico-Cultural, não poderia ser perdido de vista na narrativa da minha formação. Nem sempre, porém, sabemos dar nomes e traçar a história de todas as contribuições importantes. Afinal, os outros são feitos de outros, por sua vez –

7 O leitor poderá encontrar ao longo do texto grafias diferentes para o nome de L. S. Vigotski, pois são

transliterações possíveis do nome russo – Лев Семёнович Выготский –, escrito em alfabeto cirílico. Opto, em minha escrita, pela grafia “Vigotski”, respeitando, porém, as outras grafias quando aparecerem em citações e referências.

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sabemos apenas que somos devedores, ignorando, com algumas exceções, a quem cabe o crédito.

Encontrei no grão de pólen uma metáfora singela para assinalar ideias, imagens e experiências que, à maneira de potentes gérmens de novas criações e formas de ser, fecundam nosso pensamento, nossa sensibilidade e nossa perspectiva. Assim como a flor, no processo reprodutivo das plantas, precisa trocar pólen com outras flores – sempre mediada por um agente, como o vento, insetos ou aves – para garantir a biodiversidade, também as pessoas têm sua própria forma de polinização.

O humano, avançando além do determinismo biológico, desenvolve formas culturais de representar o mundo e intervir nele. Vigotski atribuía ao uso dos signos a possibilidade de dirigir a própria consciência:

O signo, no princípio, é sempre um meio de relação social, um meio de influência sobre os demais e tão-somente depois se transforma em meio de influência sobre si mesmo8. (VIGOTSKI, 1931/1960, p. 145, grifo meu)

Assim, ao estabelecer relações, produzir significados e partilhar suas elaborações, a consciência humana se torna fértil e cada vez mais autônoma. Fazer parte de uma dada instituição, conviver com determinado grupo de pessoas, vivenciar uma certa situação – tais são instâncias singulares de polinização. Ficamos impregnados de concepções, imagens, vocabulários; ao passar para outros contextos, qual a abelha que voa de uma flor à outra, carreamos esses grãos e, sem perceber, fertilizamos aquele novo meio, ao mesmo tempo em que somos por ele fertilizados. E, como ocorre na natureza, a diversidade do pólen é benéfica. Nas trocas mais inusitadas, abrem-se possibilidades criativas. Ideias correntes em determinado círculo podem, ao chegar em espaço estrangeiro, combinar-se com elementos há muito tempo ali presentes, formando potentes e inéditas relações.

Busco, tanto na narrativa do memorial quanto na da experiência com os registros poéticos, evidenciar esse movimento constitutivo. Por hora, começamos pela primeira narrativa: aquela em que procuro, no presente, (re)conhecer os caminhos percorridos que me trouxeram até aqui. E, sobretudo, descobrir as polinizações importantes que ocorreram, às vezes sem que eu me desse conta, nessas vivências.

8 Tradução livre. No original, “El signo, al principio, es siempre un medio de relación social, un medio de

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2.1. Sobre o menino e o interesse pela educação

Antes do pesquisador, existiu o aluno. Antes do aluno, existiu o filho. Este memorial é uma narrativa sobre a formação do pesquisador da educação de hoje, mas começa por um menino que, certa vez, se pôs a pensar sobre o fato de estar sendo educado. Ainda quando criança, lembro de já notar que alguns comportamentos e palavras eram capazes de granjear sorrisos e boa vontade por parte dos adultos, ao passo que outros criavam um embaraçoso clima de desaprovação. Revejo a cena de minha mãe chegando em casa, um dia, com cartolina e pincel atômico, sentando-se comigo à mesa e propondo uma brincadeira inédita: fazer uma lista de “combinados” para deixar colada na parede da cozinha. Trago na memória que, vez ou outra, desconfiava da forma com que certas palavras eram pronunciadas, canais de televisão eram trocados e modelos de comportamento eram colocados em evidência, para o bem ou para o mal. Surpreendia-me quando regras, outrora desconhecidas, esquecidas ou inexistentes, eram prontamente erguidas por meus pais em momentos decisivos.

Já na adolescência, enquanto muitas intervenções educativas decerto ocorriam com sutileza e naturalidade, sem que eu me apercebesse, outras me pareciam visivelmente pouco espontâneas, como que confessando uma demarcação proposital de limites. Naquela época, notar isso me dava a sensação de “pegar meus pais no pulo” – como se educar necessitasse de ser um ato opaco em que as transparências fossem pecado. Como se os pais, ao entrarem em cena, também precisassem se apresentar em um espetáculo irretocável, que jamais deixasse entrever o que se passava nas coxias.

A atenção que eu prestava, observando como os adultos tomavam decisões e argumentavam, tinha um interesse prático. Não me sentia disposto a aceitar determinações cujas razões não fossem apresentadas, ou com as quais não concordasse. Julgava-me em condições de conversar com os adultos como um igual e participar das escolhas, sobretudo quando diziam respeito a mim. Desejava colocar os “nãos” à prova, pedindo justificativas que pudessem ser analisadas, debatidas e negociadas. Até aí, nada de extraordinário, considerando a relação (estereo)típica entre adolescentes e pais; todavia, hoje consigo ver nisso uma significação especial: começava eu a discutir educação, principiando pela minha própria.

E tinha uma excelente interlocutora para isso. Minha mãe era professora, tornando-se mais tarde gestora, do Externato São José9, escola franciscana na cidade de Pindamonhangaba, onde morávamos, no interior do estado de São Paulo. Crescer no meu lar

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implicava, por certo, escutar conversas de minha mãe com outras professoras em cafés da tarde ou ao telefone; ouvir, casualmente, relatos do cotidiano da escola pela perspectiva dos bastidores; estar rodeado por livros de educação, cujas capas lia a golpes de vista. Certa vez, quando eu ainda era criança, minha mãe chegou em casa com um livro chamado “Ética para Meu Filho”10. Ela conta que, ao ler a capa, a primeira coisa que eu disse foi: “mãe, você acha que eu não tenho ética?”.

Assim, quando questionada sobre uma decisão e solicitada a explicitar seus fundamentos, a mãe educadora deixava várias pistas pelo caminho, revelando sua forma de pensar e as teorias que guiavam suas escolhas. Eu, adolescente, tinha um certo interesse em conhecer aquelas ideias, porque a essa altura já tinha percebido que estava continuamente sendo educado. E queria compreender por que, por exemplo, a lógica dentro da minha casa não era a mesma que fora dela. Afinal, a casa dos amigos tinha regras diferentes – alguns deles pareciam poder fazer coisas que a mim não eram permitidas. “Mas todo mundo pode!” era uma objeção bastante ouvida por minha mãe.

“Você não é todo mundo” era o que eu também habitualmente ouvia. O conceito de educação, então, parecia não ser igual em todo lugar. Se as mães dos amigos, no exercício de sua função, autorizavam seus filhos adolescentes a fazer algo como frequentar lan houses11 e minha mãe raramente consentia, eu me perguntava: “qual dos jeitos de educar era o certo?”. Para o Raul adolescente, era uma questão sobre sua própria emancipação e liberdade. As conexões, porém, não passam despercebidas: hoje, não obstante estando em outro momento de vida e com outras motivações pessoais, a mesma questão reaparece, quiçá em outras formas, desta vez para o Raul pesquisador em educação.

Enquanto aluno, no mesmo colégio em que minha mãe trabalhava, lembro de muitas vezes ter menos interesse pelo conteúdo das aulas do que pela possibilidade de dar livre curso à curiosidade e de me expressar criativamente. Período que ficou documentado nos cantos das folhas dos cadernos, onde fazia desenhos e escrevia histórias em quadrinhos, às vezes até tomando o espaço que deveria ser da matéria. Quando já era mais velho, os desenhos na margem do papel deram lugar a frases, questionamentos e pequenas “filosofias”.

10 Pelo autor Fernando Savater, publicado pela editora Martins Fontes.

11 Eis um termo que certamente precisará ser explicado aos leitores de um tempo futuro. Portanto,

antecipando-me, explico: as lan houses foram uma febre nos anos 2000. Eram estabelecimentos com vários computadores ligados em rede e à Internet de alta velocidade – coisa rara no começo daquela década –, onde os adolescentes passavam horas – e até madrugadas – jogando com os amigos. Era um tipo de entretenimento, e não de cassino, pois os jogos, em geral, não tinham a ver com apostas em dinheiro.

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Eu me dizia, frequentemente, incompreendido pelos professores – um sintoma comum, hoje noto, da adolescência. Ainda não conhecia os grandes teóricos, mas já tinha minhas próprias teorias sobre o mundo; notava as contradições do sistema escolar e conjeturava, com ardente (e inocente) idealismo, as qualidades de um modelo de ensino ideal.

Percebo como nós, alunos, julgávamos nossos professores. Se soubéssemos – como alguns sabem hoje, que se tornaram professores – como é a vida desse lado, teríamos desejado ser melhores e mais compreensivos alunos (e pressinto que o mesmo vale para a relação entre pais e filhos, embora ainda me encontre no lado dos segundos). Hoje sou grato a essas pessoas que participaram de mim – esses outros que constituíram, ao longo de tantos momentos, aspectos importantes da pessoa que sou.

No Ensino Médio, o estudo escolar continuou disputando minha atenção com outras atividades, como jogos de computador e o interesse pela música. Fiz aulas de canto e violão, tive bandas com amigos da escola, ensaiava e compunha. A música me inspirava, e por meio da música eu ampliava minha capacidade de atribuir sentidos a tudo que me acontecia. Um acontecimento significativo se tornava uma canção. Melodias me povoavam e ajudavam a explicar certas experiências vividas, solucionando o problema das coisas indizíveis. Parecia distante a perspectiva de uma profissão tradicional, e tive, durante um tempo, certa segurança de que minha carreira seria alguma coisa relacionada à música.

Outra instância fortemente constitutiva para mim foi a atuação como voluntário na Casa Transitória “Fabiano de Cristo”, em Pindamonhangaba. A Transitória, como chamamos, é uma instituição fundada pelo Centro Espírita “Mello Moraes”, voltada ao amparo da mulher gestante e de sua família, por meio de cursos e assistência médica e social. Faz parte da entidade, também, o Espaço da Criança “Anália Franco”, que oferece diversas atividades socioculturais e esportivas a crianças e jovens de até 17 anos. A Transitória existe na cidade desde 1977, e atende cerca de 1.000 famílias por ano, contando exclusivamente com o trabalho de voluntários. Ainda garoto, comecei a ir com meu pai aos sábados à tarde, auxiliando a servir sopa para as famílias assistidas. Devo a esse trabalho a oportunidade de compreender, pela primeira vez, a sensação de alegria em ser útil. Mais tarde, entrei na equipe da “Campanha do Quilo”, ação semanal que visita bairros da cidade, arrecadando alimentos de porta em porta. O Raul que hoje sente facilidade em apresentar uma ideia diante de um público, mesmo que pouco familiar, certamente deve ao Raul que, com cerca de 13 anos, foi convidado a bater à porta de pessoas desconhecidas, apresentando uma instituição e fazendo um pedido.

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Com o tempo, fui me aproximando também de outros trabalhos da casa, alguns deles ligados à educação. Tendo sido aluno de evangelização no Centro quando criança, fui convidado pela Prof.ª Lúcia Picca (também minha alfabetizadora na educação infantil) para fazer parte do grupo de evangelizadores, do qual participo até o presente. Nesse espaço de educação não formal, entraram para meu cotidiano ações como planejar aulas, mediar atividades em grupo, trabalhar conflitos e buscar formas de avaliar os resultados formativos. Ali, também, pude conectar pela primeira vez meu interesse pela educação e meu gosto pela arte. Eu e meus colegas preparávamos, com dedicação, pequenas peças, rodas de música e de brincadeira. Foi então que comecei a me interessar pela(s) cultura(s) da infância e a compor algumas músicas para os pequenos.

Posso afirmar que fazer parte desse trabalho foi uma experiência radicalmente constitutiva do meu encantamento pela educação. Enquanto o adolescente-filho, que buscava a própria independência, encarava a educação-limite pela via da problematização, o adolescente-voluntário, idealista, conhecia a educação-possibilidade, afeiçoava-se ao convívio com as crianças e vislumbrava o potencial de contribuir para sua formação. Além disso, ter atravessado a adolescência partilhando esses dois papeis me despertou para uma importante questão pessoal: a de buscar ser inteiro naquilo que falo e naquilo que vivo.

2.2. Sobre a graduação e as experiências profissionais

A questão de escolher um curso na universidade entrou em meu horizonte no segundo ano do ensino médio. Até então, pouco ocupavam meu pensamento as preocupações sobre o vestibular. Em um curto espaço de tempo, desfiz a ideia de uma carreira em música e me inclinei pela área de relações internacionais, que me despertava o interesse pela possibilidade de estudar problemáticas globais e atuar como mediador em processos envolvendo países e culturas diferentes – era essa, ao menos, a imagem que eu tinha da área com a qual passei a sonhar. Desse momento em diante, ciente do desafio de ser aprovado na universidade que desejava, assumi, sem cerimônias, uma rotina muito diversa, estudando diária e disciplinadamente por horas a fio.

No ano em que fiz cursinho, particularmente, a meta da universidade implicou uma renúncia quase completa a outras atividades que não o estudo – ou treino? – para o vestibular. O sacrifício compensou, e em 2010 ingressei no curso de relações internacionais

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da Universidade de São Paulo. O início da graduação inaugurou um período rico para a assimilação da diversidade de pensamento.

O campo de estudos que hoje se conhece por relações internacionais foi formado a partir da união de subáreas de grandes disciplinas – direito internacional, economia internacional, política internacional, etc. O curso de relações internacionais da USP foi desenhado para proporcionar ao graduando uma base interdisciplinar em cinco grandes áreas do conhecimento: ciência política, economia, direito, história e sociologia. Cerca de metade da carga horária de estudos é composta por disciplinas obrigatórias nessas cinco áreas, enquanto a outra metade é disponibilizada na forma de disciplinas eletivas em diversos institutos e faculdades da USP, de modo que o estudante possa personalizar a sua formação de acordo com os temas que deseja enfocar. Compreendendo essa lógica do curso, logo aprendi a explicá-la a quem me perguntasse: familiares, amigos e sobretudo alunos de ensino médio que pensavam em escolhê-lo no vestibular. O que isso representaria, entretanto, para minha carreira, eu mesmo demorei para descobrir. Porém, já tinha formulado também uma resposta de bolso, tão esquemática e honesta quanto me era possível, para essa questão – que esboço abaixo.

Há cursos de graduação, mais tradicionais e em áreas mais estabelecidas, que parecem oferecer aos alunos formados uma carreira razoavelmente delineada: um estudante de medicina provavelmente será médico; um de engenharia, engenheiro; um de direito, terá acesso a diversos cargos e funções existentes no sistema judiciário. Há, ainda, cursos em que a carreira do aluno formado está em aberto, porém o tipo de função profissional parece de certo modo previsível: um estudante de ciências da computação provavelmente trabalhará com programação de software; um de geologia, com a pesquisa e exploração do que há no solo; um de educação física, com o corpo humano e sua atividade. Há cursos, no entanto, em que o formando se depara com uma “tela em branco”, inclusive em relação ao tipo de atividade profissional: é o caso de relações internacionais. Temos dificuldade para encontrar algo em que possamos nos dizer “especialistas”. Porém, conhecemos conceitos importantes em diversas áreas do conhecimento e adquirimos uma boa competência em estabelecer relações entre eles – caso estabelecer relações possa ser considerado uma “especialidade”. O internacionalista sabe pensar globalmente.

De fato, não me lembro de ter encontrado instituições anunciando um posto de trabalho específico para alguém, com diploma de internacionalista, que pensa globalmente. O próprio concurso do Instituto Rio Branco, porta de entrada para a desejada carreira

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diplomática, admite candidatos com qualquer formação superior. Em geral, nós, internacionalistas, realizamos o trabalho que pessoas de outras áreas também fazem em empresas, órgãos públicos, meios de comunicação, ONGs, etc.

Não obstante a sensação de indefinição em certos momentos, sou grato pela formação generalista que não imprimiu um destino determinante em minha trajetória. Antes, me convocou a pensar sobre problemáticas diversas por uma multiplicidade de olhares, ampliando o repertório de referenciais pelos quais eu poderia interpretar uma questão. A esse alargamento de horizontes devo boa parte do crédito pela serenidade intelectual de não me apegar a interpretações exclusivistas ou emitir julgamentos inapeláveis sobre fatos quaisquer. Por ter percorrido paisagens tão plurais do conhecimento, ter ouvido argumentos tão divergentes e ter tomado contato com experiências tão singulares, lidar com a diversidade de narrativas aos poucos deixou de ser um obstáculo. Foi uma intensa temporada de polinização. Ao longo da graduação li textos fundamentais para a formação do meu pensamento, expandi meu conhecimento com as exposições feitas pelos professores e desenvolvi meu senso crítico com os debates feitos em classe. É preciso ressaltar, porém, que a experiência da universidade pública não se resume, de modo algum, ao curso em si. Tão – e às vezes até mais – fecunda quanto a polinização que ocorre em sala, com suas leituras e aulas, é aquela que ocorre em seu entorno. Dos almoços e jantares no “bandejão” ficaram algumas das conversas e reflexões mais profundas e memoráveis que já tive, risos e momentos de sincera amizade. Das apresentações da orquestra sinfônica ficaram novas sensibilidades em relação à linguagem musical e um profundo afeto pela obra de alguns compositores. Da necessidade de dominar outros idiomas ficou a experiência do Clubecon, um clube de conversação entre estudantes cujo modelo ajudei a criar. Das discussões sobre questões de gênero ficou a desconstrução de muitos preconceitos. Da empresa júnior ficaram experiências valiosas sobre a competência profissional, o trabalho em equipe e a gestão. Do tempo livre – às vezes não tão livre assim – ficaram fins de tarde tocando violão com amigos, compondo canções e partilhando afinidades musicais. Ficaram também livros e eventos que pouco ou nada tinham a ver com relações internacionais, mas que muito agregaram ao espírito.

Em uma dessas palestras sobre temáticas diversas tomei conhecimento do economista e empreendedor bengali Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, em 2006. Interessado, busquei seus livros, cujas ideias marcaram uma parte importante de minha trajetória. Yunus foi o criador do Grameen Bank, um banco que havia revertido a

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situação de miséria de muitas pessoas em Bangladesh por meio de micro empréstimos a taxas de juros baixíssimas. Ao possibilitar que pessoas excluídas do sistema financeiro convencional tivessem uma alternativa aos agiotas locais, o Grameen Bank “libertou” grande número de bengalis de uma situação de quase escravidão por conta de dívidas que não eram capazes de saldar. O banco de Yunus era ainda mais inovador por outro fato: não visava lucro para seu dono e tinha justamente o objetivo social de erradicar a pobreza (YUNUS, 2008).

A partir dessa experiência, reconhecida com o Prêmio Nobel, Yunus propôs e tornou-se divulgador do conceito de negócio social: uma empresa cujo objetivo é atuar na resolução de um determinado problema social, por meio do oferecimento de um produto ou serviço, utilizando os mecanismos de mercado – isto é, sem depender de doações, mas vendendo o produto ou serviço por um preço que permita financiar seus próprios custos. No entanto, Yunus propõe que todo o lucro gerado por uma empresa social seja integralmente reinvestido na própria empresa, seja para expandi-la, seja para viabilizar preços ainda mais baixos ao consumidor final. Nem uma mínima parcela sequer desse excedente pode ser apropriada pelo dono (YUNUS, 2007, 2010).

À medida que lia a obra do banqueiro dos pobres, sentia-me tomado por um entusiasmo crescente. Afinal, o senso de urgência e a atitude empreendedora de Yunus iam ao encontro da minha fome por propostas de mudança social que extrapolassem as discussões que eu presenciava na academia, aparentemente restritas ao campo teórico e ideológico. Para testar seu conceito, Yunus já havia criado, em parceria com a Danone, uma fábrica nos moldes da empresa social para produzir iogurte enriquecido em nutrientes, visando combater a desnutrição infantil em Bangladesh, e começava a obter os primeiros resultados. Era o que eu também gostaria de fazer: poder aplicar, na prática, de modo direto, propostas para resolver problemas sociais.

As ideias de Yunus foram grãos de pólen que muito fecundaram meu pensamento, e influíram decisivamente para que, no segundo ano da graduação, meu interesse se transferisse quase que completamente das relações internacionais para o empreendedorismo social. Já não me despertavam o mesmo interesse os assuntos de política externa ou de direito internacional: tinha avidez por estudar as iniciativas empreendedoras que estavam sendo desenvolvidas pela sociedade civil para solucionar as questões de escassez, doença, desnutrição, falta de moradia e educação das populações vulneráveis, entre outras. Porém, o campo de negócios sociais era ainda bastante incipiente no Brasil – havia poucos empreendedores, aceleradoras, investidores e gente que sabia o que era isso. Adentrar essa

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área demandaria pioneirismo, e comecei a me interessar em adquirir conhecimentos e experiência em gestão de empresas.

Fazer carreira em uma empresa privada, trabalhando em escritório como executivo, era algo que não me fazia sentido algum; pensei, porém, que a passagem por uma companhia grande e estruturada seria uma experiência válida para desenvolver competências necessárias ao empreendedorismo. Decidi, naquele ano, iniciar a busca por um estágio no cosmos corporativo da grande pauliceia.

Frio na barriga. Mais de dez inscrições em processos seletivos de empresas das mais diferentes áreas. Provas, dinâmicas de grupo, entrevistas, departamentos de RH. Respostas que pareciam nunca aportar na caixa de e-mails. Em fins de 2011, fui aprovado na seleção de uma grande multinacional na área de bens de consumo, iniciando o estágio na área de vendas. A remuneração era alta, e os benefícios, generosos. Não sem motivo: a responsabilidade depositada sobre os ombros dos estagiários era “de gente grande” – muito além de fazer cópias e repor o café, como retratam as caricaturas. Eu era responsável por monitorar diariamente diversos indicadores sobre o desempenho das vendas no território nacional, organizando dados em relatórios que serviriam para as tomadas de decisão da gerência. Diga-se de passagem, vem daí minha familiaridade com planilhas.

Em certo projeto, cujo objetivo era aumentar a eficiência da força de vendas – no jargão corporativo isso também quer dizer reduzir custos –, fui incumbido de planejar rotas para que os vendedores visitassem o maior número de lojas possíveis em um dia de trabalho, resultando em equipes mais enxutas. Assim, me vi, um estagiário de 20 anos trabalhando em uma baia dentro de um escritório, perplexo ao pensar que poderia, indiretamente, impactar o emprego de gente que nem conhecia.

Ainda que a rotina na empresa não fosse a mais fértil em criatividade que eu pudesse desejar, lá apanhei certos grãos de pólen que não teria encontrado em outro lugar, e são hoje parte constitutiva de mim. Compreendi nas entranhas o que era trabalhar em uma multinacional, atendendo a demandas desencadeadas por números do mercado acionário. Pude me apropriar daquele vocabulário e internalizar signos – como viria a entender mais tarde, com Vigotski – do mundo dos negócios que me facultariam pensar sobre ele por uma perspectiva interna, e não apenas como quem faz a crítica pelo lado de fora, sem ter tido, no entanto, a vivência. Lá também desenvolvi, inegavelmente, habilidades práticas que continuam me sendo muito úteis.

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