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Formação inicial de professores

5. Apresentando polinizadores: uma contextualização teórica

5.3. Formação inicial de professores

É possível imaginar a proposta do registro poético que narramos – eu e tantas vozes que compareceram nas citações – sendo adaptada aos mais diversos contextos de formação: na educação infantil, no ensino básico, em escolas de arte, ONGs, grupos comunitários e até mesmo em empresas e terapias. Tendo vivenciado muitos desses espaços, como narro em meu memorial, consigo facilmente visualizar o registro poético sendo proposto e bem aceito como recurso para, dentre outros propósitos, o exercício da expressividade, a aprendizagem coletiva e o desenvolvimento da afetividade.

Porém, o fato de essa atividade ter sido conduzida em uma turma do primeiro ano do curso de pedagogia não é um mero detalhe. E a opção por pesquisá-la enquanto estratégia para a formação inicial de professores não é destituída de uma clara intencionalidade. Tenho apresentado e apresentarei, no decorrer desta Dissertação, diversos registros poéticos realizados pelas alunas e os indícios que encontrei, na pesquisa, das marcas deixadas por essa atividade na constituição das futuras professoras. Penso os registros poéticos como quem pensa a formação dos futuros formadores, consciente do significativo impacto que isso tem no sistema educacional – até por escutar as ressonâncias desse potencial e saber que não se trata apenas de uma convicção pessoal:

Fica evidente que tivemos a oportunidade de trabalhar nossas sensibilidades. Fazer os registros poéticos permitiu que cada um entrasse em contato consigo mesmo, e suas leituras em sala de aula permitiram que todos se deixassem tocar pelas emoções e sensações do outro. Ou seja, nós exploramos a nossa faculdade de empatia, algo que é super importante para nós, futuros professores, uma vez que, em certos casos, teremos que lidar com pessoas que vivem em uma realidade completamente diferente da nossa. Compreender isso é fundamental. (Cecília, 22/06/2015)

Não pretendo, com isso, adotar um discurso ingênuo que responsabiliza unicamente o professor e sua formação pelo desempenho da rede de ensino. Concordo com Gatti (2010): têm toda a razão aqueles que, precavidos contra as formulações liberais sobre o “bom professor”, se apressam em lembrar o papel decisivo das políticas educacionais – o que inclui o financiamento e a estrutura das escolas –, da atuação dos gestores, das condições socioeconômicas e culturais dos alunos e suas famílias e das próprias condições de trabalho, carreira e salário dos docentes. Afirmar a potência da formação da professora e do professor não é negar os condicionantes estruturais. O que considero, sim, é que a prática docente também possui uma especial materialidade que se revela no cotidiano: implica uma pessoa – o

professor – diante da tarefa invariavelmente desafiadora de formar outras pessoas. Não é fácil, como mostra Marissol Prezotto:

Enfim, ser professor reflexivo não é fácil. Ser professor reflexivo é quando nos debruçamos sobre/no cotidiano da escola como reflexão teórica que estrutura futura ações. É quando o professor pergunta a si mesmo quem ele é e por que faz determinadas escolhas diante do que vive e do lugar que ocupa socialmente. (PREZOTTO, 2015, p. 91)

Professores: pessoas com nome, com endereço, com história. Tive, recentemente, uma experiência que repercutiu significativamente em meu olhar sobre a formação docente. Como estagiário na disciplina EL-511, Psicologia e Educação, ministrada para alunos de licenciatura de diversos cursos da UNICAMP, tive a oportunidade de conversar com vários estudantes que se preparam para a carreira de professor. Lendo as entrevistas que os alunos fizeram com professores de sua área, como parte do trabalho prático da disciplina, me intrigou um problema mencionado em muitos relatos: a dificuldade sentida pelo estudante que conclui a licenciatura e se vê, a partir de então, professor. Tendo que não apenas falar sobre a escola, mas efetivamente estar nela; não apenas compreender o ensino, mas realizá-lo; não apenas pensar sobre o aluno, mas se relacionar com muitos deles todos os dias.

Um dos entrevistados afirmou que, na prática, a licenciatura era “um bacharelado e três disciplinas na Faculdade de Educação”, e sentia falta de espaço para discussões sobre, entre outros temas, o ensino de sua disciplina, a postura em sala de aula e as estratégias para lidar com a indisciplina dos alunos. Outro professor, em sua fala, compara a graduação a um quebra-cabeça: a cada ano, é como se o estudante recebesse um pacotinho com cem peças. Ao final do curso, com quinhentas peças, “eles” te mandam embora – e o indivíduo formado passa a vida tentando entender e montar a imagem do quebra-cabeça. A percepção dos docentes é corroborada por Gatti (2010), quando afirma que mesmo com as novas diretrizes educacionais apontando para uma maior integração entre a formação disciplinar e a formação para a docência, prevalece ainda no século XXI o modelo de licenciatura consagrado no início do século XX, conhecido como “3 + 1”43.

O papel atribuído ao professor no sistema educacional implica uma forma de conceber sua formação. Diferentes teorias e modelos de ensino levam a diferentes concepções de professor; consequentemente, a diferentes concepções de formação. Roseli Fontana (2000a) apresenta de forma poética o processo histórico de mudança na caracterização do

docente, retratando a professora como alguém que caminha por uma sala de espelhos: uns alongam seu corpo, outros o encurtam; outros o arredondam, outros o deixam esguio e ondulado. Alguns traços se conservam e outros se perdem na multiplicidade de faces que o professor adquire quando é documentado academicamente. Os próprios professores, ao contemplarem a si próprios nesses textos, ora se identificam e ampliam suas potencialidades de interpretar aquilo que vivem, ora se deparam com uma idealização à qual foram ajustados e não conseguem se reconhecer.

Recorrerei brevemente ao panorama traçado pela autora sobre a pesquisa educacional, no qual afirma que o período do pós-guerra foi marcado, em todo o mundo, pela tendência de colocar os professores em segundo plano nas análises. Privilegiava-se uma leitura tecnicista, na qual o professor era pouco determinante: visando controlar da maneira mais eficiente possível os efeitos do ato educativo, propunha-se o estabelecimento apriorístico do melhor método de ensino, cabendo ao professor ser treinado na técnica adequada.

Os projetos de modernização neoliberal que tiveram curso na década de 1980 contribuíram para trazer os estudos sobre o professor novamente para o centro da agenda de pesquisa, à medida que estimulavam práticas institucionais de avaliação – e, consequentemente, estendiam os mecanismos de controle sobre o trabalho docente. No campo das análises críticas, as objeções ao modelo reprodutivista de escola mobilizaram igualmente os estudos sobre o professor. Contestando a proposta liberal que apresentava a democratização do acesso e permanência à escolarização como solução para a crise da educação, defendeu-se a ideia do professor progressista – em oposição ao do professor conservador –, que compreendia o sentido intencionalmente político de sua prática profissional. Para tanto, os professores progressistas deveriam possuir uma visão sintética de todos os mecanismos inerentes ao fazer pedagógico. Seriam os responsáveis por definir, planejar, dirigir e controlar sua ação; seriam autônomos e responsáveis por compreender e lutar.

A autora chama a atenção para idealização que passou a revestir a imagem do professor, impondo-lhes a obrigação de se elevarem à condição de mulheres e homens extraordinários. As propostas eram carregadas de normatividade, apontando o que o professor deveria ser, sem auxiliá-lo a identificar o que de fato era, e sem deixar entrever caminhos pelos quais poderia aproximar-se do que deveria ser. As abstrações estruturalistas nem sempre os auxiliavam a encontrar respostas para certos tipos de dilema que permeavam sua atuação diária:

Na análise complexa e refinada da constituição social das relações escolarizadas, ancorada em macro-conceitos como poder, opressão, autoridade, Estado, luta de classes, alienação, etc., convertidos em suportes de condicionantes estruturais, nem sempre nos reconhecíamos. Também não reconhecíamos naquelas análises os embates e as contradições, a dinâmica e a diversidade por nós vividas nas situações imediatas e cotidianas de sala de aula. (FONTANA, 2000a, pp. 24-25)

Outras categorizações também já mediatizaram a constituição do professor: “professor técnico” e “professor reprodutor”, “professor conscientizador” e “professor bancário”, “professor tradicional” e “professor construtivista” eram algumas delas. “Quanta vida silenciada!”, desabafa Fontana (2000a, p. 28) diante das análises que perdiam de vista os processos dinâmicos de constituição e transformação dos indivíduos no cotidiano. Quanta vida pronunciada! – é a contraproposta do registro poético, no quadro mais amplo de uma formação que pensa o professor como pessoa inteira. Como Letícia, que, ao narrar sua participação na atividade de leitura de livros infantis, se revela:

As pessoas vivem me dizendo “como é que uma pessoa tímida como você, que tem medo de falar na frente da classe, vai dar aula?” Não quero nem saber, tenho certeza de que quando chegar a hora eu vou conseguir, oras. Pessoas chatas.

(...) Ao longo do livro, muitas pessoas não paravam de rir, e eu fiquei feliz, pois consegui atingir meu objetivo (...). O meu desejo era fazer com que a classe sentisse o que eu sentia ao ouvir as histórias infantis. Sentir como se tivesse voltado a ser criança, sentados aos pés da professora na pré-escola, ouvindo-a contar cada uma delas. (Letícia, 22/06/2015)

As discussões sobre a constituição da subjetividade, embora abafadas temporariamente pelo movimento de críticas ao psicologismo, afloraram novamente. Buscando em autores como Thompson, Benjamin, Bakhtin e Vigotski bases teóricas para uma leitura do espaço, dos sujeitos e das relações enquanto construções sociais, ganharam espaço as propostas por uma forma diversa de olhar o professor: como sujeito também constituído na materialidade de sua prática. Diante da impossibilidade de tornar-se suficientemente completo na formação inicial, afirma Marciene Reis:

(...) o professor iniciante, como indivíduo que acaba de sair da academia para entrar na escola como profissional, sente-se muitas vezes, diante do emaranhado de situações vividas, a necessidade de diálogo sobre sua prática: de que maneira seus conhecimentos são valorizados? De que maneira conseguem se apropriar da prática? (REIS, 2013, p. 192)

Traço, então, algumas balizas importantes a respeito de como esta pesquisa entende a formação inicial de professores. Primeiramente, estou de acordo com García (1999) quanto à premissa de que formação não é o mesmo que ensino, treinamento ou doutrinação. Não trato aqui da exclusiva aquisição de técnica, nem somente da assimilação e incorporação de postulados teóricos. Essas dimensões constituem, mas não esgotam, a formação. A concepção de formação a qual me refiro extrapola a atividade profissional, pois não reconhece a possibilidade de separação estanque entre as dimensões pessoal e profissional de um mesmo sujeito. Tomando emprestadas as palavras de Aragão (2013, p. 163), “acreditamos que ensinamos a partir do que somos, e isto também é encontrado no que ensinamos” – considerando igualmente a ressalva da autora em relação a abordagens romantizadas e desprofissionalizadas da docência. A formação docente, portanto, pode ser melhor retratada como um processo de desenvolvimento do professor-pessoa, no que toca as suas competências profissionais e caracteres pessoais.

A formação conceitual do professor em relação ao conteúdo a ser ensinado é, certamente, um dos pontos desse desenvolvimento. Não pode ser subestimada, uma vez que a função da escola também é prover conhecimento. Como Gatti (2010) e Nóvoa44, é preciso lembrar que a interpretação do mundo pede um conhecimento básico, sem o qual não é possível sequer pensar em formação de valores e exercício da cidadania. O fato de ter domínio sobre o conteúdo a ser ensinado, porém, não necessariamente implica em ser capaz de torná-lo algo aprendível. Um projeto de formação para professores não pode considerar suficiente a aquisição do conteúdo sem o desenvolvimento da mediação.

Julgo também importante sublinhar que o papel mediador do professor pede o estabelecimento de relações pedagógicas com os alunos. Por relações pedagógicas entende-se que as reflexões desenvolvidas pelo professor não devem abranger somente o planejamento do ensino, tais como objetivos, ponto de partida, conteúdos, atividades e avaliações, mas contemplar também a dimensão afetiva da mediação pedagógica (SADALLA; AZZI, 2004). Assim, a formação docente desejável também prepara o professor-pessoa para se relacionar com o aluno-pessoa. A ênfase nesse aspecto não alude, de modo algum, a uma ruptura da profissionalidade docente. Entendo que esse olhar sobre a formação coincide com o de Gatti (2010): somente a partir de uma base sólida de conhecimentos e formas de ação, o profissional se torna capaz de confrontar-se com problemas complexos e variados, mobilizando recursos cognitivos e afetivos para construir soluções em sua ação.

É preciso assumir de antemão – talvez respondendo em parte às angústias dos licenciandos e dos professores entrevistados que mencionei anteriormente – que nenhuma formação técnica e teórica para o exercício da docência será suficiente para eliminar a imprevisibilidade da sala de aula. Como relata Reis:

Deparei-me, no decorrer da pesquisa, com narrativas de professoras que revelaram situações frustrantes / tensas / conflituosas em relação ao início da docência, o que mais tarde foi entendido teoricamente como sendo o “choque com a realidade” em relação à transição de aluno para professor. (REIS, 2013, p. 194)

A variabilidade e irrepetibilidade das circunstâncias é inerente à dinâmica de um espaço vivo, constituído por sujeitos singulares. O improviso, que em outros contextos pode adquirir conotação de despreparo, falta de planejamento e irresponsabilidade, precisa ser considerado como uma inevitabilidade do fazer docente diante do imprevisto, não obstante todo o preparo, planejamento e comprometimento do professor. Cumpre não se deixar paralisar pela ausência de respostas prontas. A formação desejável será, então, aquela que permita ao professor tornar a complexidade da sala de aula inteligível – o que, a nosso ver, não significa trazer todo o aparato teórico-interpretativo pronto “no bolso do jaleco”, mas tornar a própria prática um meio de produção de conhecimento sobre a docência.

Formação para o conhecimento, para a mediação pedagógica e para a produção de saberes da docência a partir da própria prática – pois entendemos que o fazer do professor não pode prescindir dessas dimensões. Ainda, parto da premissa de que é impossível formar alguém à sua revelia, sem seu consentimento e sem sua atitude consciente e voluntária de corresponsabilizar-se pela formação. Coerentemente, portanto, para com os princípios da Teoria Histórico-Cultural aqui apresentada, não há como conceber a formação do professor como um processo passivo. Enquanto o outro traz elementos externos a serem assimilados, o sujeito internaliza-os por um ato de significação. Pelo mesmo motivo, tampouco se pode conceber uma formação autônoma, prescindindo de mediação; a formação é, em todas as instâncias, uma atividade de relação entre formando e formador.

Por fim, destaco que, embora esta pesquisa se limite a tratar da formação inicial, a formação docente é não apenas um processo contínuo (NÓVOA, 2009), mas extremamente potente em sua dimensão continuada. Faço questão de chamar a atenção, nesse sentido, para o conjunto das produções do GEPEC, cujas participantes – uso aqui a flexão de gênero da

maioria – desenvolvem um significativo trabalho de pesquisa educacional no cotidiano da escola – muitas delas professoras e gestoras investigando a própria prática45.

45 O GEPEC está constituído como grupo de pesquisa desde 1996 e possui uma extensa produção desde então.

Citando nomes e pesquisas individuais, eu certamente incorreria em omissões e esquecimentos injustos; portanto, indico um link para a página do grupo em que está relacionada parte dessas pesquisas: <https://www.fe.unicamp.br/gepec/pesquisa-concl.html>. Acesso em 20 de maio de 2016.

6. Chamando espécies pelo nome: uma discussão metodológica