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Aquilo que sabemos e aquilo que pensamos saber

7. Experiências em perspectiva poética: a análise dos dados

7.2. Poema sobre a experiência: o que os núcleos de significação têm a contar

7.2.8. Aquilo que sabemos e aquilo que pensamos saber

As reflexões sobre aquilo que sabemos e aquilo que pensamos saber. Santa ignorância que nos move em direção contra o vento – ou seria a favor dele? (Simone, 04/05/2015)

Este é o núcleo de significação que nos ajuda a buscar, nos registros poéticos, o movimento da busca pelo conhecimento e mostra o lugar das discussões teóricas na proposta

da disciplina. Não foi o primeiro a ser abordado, pois optei por tecer a narrativa principiando pela dimensão afetiva; nem por isso, contudo, esteve em segundo plano. A fundamentação teórica é um princípio da reflexividade; sem ela, o saber é constantemente traído pelo pensar saber. A discussão tende a resvalar para posições descompromissadas, como brinca o aluno Carlos em um de seus registros:

Para tanto utilizarei a metodologia do ponto de vista da “achologia”, “ciência” essa que trabalha com o senso comum e sem muitos referenciais teóricos. (Carlos, 13/04/2015)

Se, por um lado, valer-se apenas de senso comum e trabalhar sem muitos referenciais teóricos é uma abordagem bastante problemática para o profissional da educação, um risco também reside no outro extremo, como alerta Lawrence Stenhouse (in ELLIOTT, 2001): o do professor que se apresenta no papel de expert e atribui autoridade ao conhecimento. Colocado acima de dúvidas e de especulações, o conhecimento está representado, para Stenhouse, de forma equivocada e distorcida:

Nenhum professor de dotações normais pode ensinar pela autoridade sem emprestar sua autoridade a erros factuais ou de julgamento. Porém, meu argumento vai além. Ainda que o professor fosse capaz de evitar isso, ele estaria, ao ensinar o conhecimento pela autoridade, veiculando uma proposição inaceitável a respeito da natureza do conhecimento: a de que sua garantia pode ser encontrada no apelo à expertise de pessoas, mais do que no apelo à justificação racional à luz de evidências. Acredito que a maioria que ensina em escolas e uma boa parte que o faz em universidades promove esse erro. Aqueles com boa formação se mostram ignorantes quando encaram o conhecimento mais pela reafirmação da certeza na autoridade do que pela aventura do entendimento especulativo (STENHOUSE, in ELLIOTT, 2001, p. 567)68

Stenhouse não nega que a educação também tem a dimensão de instrução (retenção de informações). Porém, afirmava que um uso adequado da instrução deveria ser marcado por certo senso de ceticismo, provisoriedade e especulação, compreendendo que informação não é conhecimento até que seu fator de erro, limitação e crueza seja estimado apropriadamente e assimilado às estruturas de pensamento. Vislumbrava o professor não como autoridade no conteúdo da educação, mas como autoridade no processo de educação e de manutenção dos procedimentos consistentes com seus objetivos pedagógicos (ELLIOTT, 2001).

Portanto, para o autor, é preciso que o professor se coloque como quem também aprende junto com seus alunos. Em posse de um entendimento filosófico do assunto que está ensinando e aprendendo, de suas estruturas profundas e de seus racionais, e sem abrir mão de seu papel como orientador, o professor pode, ainda assim, ser aprendiz. Desta forma, tem algo muito valioso a oferecer a seus estudantes: a postura de pesquisador em relação ao conteúdo ensinado; o modelo de como tratar o conhecimento como um verdadeiro objeto de investigação.

Visto que a formação de achólogos ou de autoridades não é o intuito do curso de pedagogia, um ponto importante da mediação era, portanto, explicitar para a turma a relação das atividades vivenciais e histórias contadas com princípios teóricos, conceitos trazidos por autores e reflexões a partir de pesquisas. Era importante não menosprezar as explicações:

No final da aula tivemos a explicação sobre “relações interpessoais na escola”. Uma coisa que a Ana disse me marcou muito: “você não precisa ter o dom para estar em uma profissão”, pois no dia anterior da aula estava falando com a minha mãe que eu não achava que tinha O DOM para a profissão. Só que a Ana me mostrou que eu não preciso me cobrar tanto por ainda não conhecer tanto da profissão, só tenho que ser uma boa aprendiz. (Amanda1, 04/05/2015).

A discussão sobre dom está intrinsecamente ligada à da fundamentação teórica, e é um ponto a que a Prof.ª Ana Aragão deu bastante atenção, tanto na EP107 quanto em outras disciplinas da educação que ministrou e pude acompanhar como monitor (PED). A ênfase que o senso comum atribui ao dom como fator de êxito em uma atividade contribui para eclipsar o papel determinante de condicionantes sócio-históricos e do preparo, sistemático e intencional, que antecederam sua realização. É mais simples – e mágico – dar todo o crédito a uma predisposição natural; no entanto, o compromisso da perspectiva histórico-cultural que embasa a disciplina é o de buscar na história das vivências do sujeito, inseridas numa cultura e mediadas pelo outro, a principal causa constitutiva de seu desenvolvimento. Se uma aluna não tiver tido suficientes experiências prévias relacionadas à educação (vide discussão em 7.2.6) – e por isso ainda não conhecer tanto da profissão –, como esperar que ela tenha dom? Desconstruir a noção de dom natural abre o espaço necessário para sermos bons aprendizes. A necessidade do aporte teórico era um zelo da professora e um desejo das alunas:

Por fim, na última parte da aula tivemos um conteúdo mais teórico. A professora falou sobre educar e suas dificuldades. Às vezes, durante a semana, me pego cheia de dúvidas se estou no lugar certo. Na verdade, isso

tem acontecido com muita frequência, porém, quando chega segunda-feira, no segundo período do dia, na aula da querida Ana, todas as minhas dúvidas desaparecem. Eu adoro escutar o que ela tem a dizer sobre a educação, adoro as partes teóricas e, enfim, acabo sentindo que estou no caminho certo. (Gabrielle, 25/05/2015).

Gabrielle encerra seu registro poético trazendo um indício que mostra as partes teóricas como fonte de motivação e de identificação com a área profissional que escolheu. Alguns conteúdos mais teóricos se destacaram pela importância que tiveram para as alunas, refletida na proporção em que apareceram nos registros poéticos. Foi o caso do objeto transicional:

A docente Ana Aragão explicou sobre um tema bem curioso, objeto transicional, que é aquele objeto que a criança leva de casa para a escola e para outros lugares. Essa mudança na vida da criança exige um grau de maturidade, e esse objeto dá um conforto e uma segurança para ela. Ela precisa, de tempos em tempos, de um reabastecimento emocional. Claro que isso não é exclusivo das crianças, eu mesma não quis me mudar para outra cidade, preferi a UNICAMP para poder ir e voltar todos os dias para Jundiaí, ver a família e ter esse reabastecimento. (Isa, 23/03/2015)

Aquilo que ficou para Isa foi o conceito do objeto com o qual a criança tem forte vínculo afetivo e o leva quando vai a um lugar desconhecido, a fim de se reabastecer emocionalmente. Ou isso seria o que a transportou para sua própria história? No entanto, estamos olhando pelo prisma daquilo que ela passou a saber. Cada registro poético pode ser lido pelas lentes de inúmeros núcleos de significação, o que mostra que os sentidos estão entrelaçados e é preciso não os desmanchar e separar em partes monotônicas. Em quantos sentidos esse conceito não se desdobrou no registro de Carlos, que o transformou em poema?

Fluxo

Ao transitar me pego a pensar Por que não no meu lar? Lá a vida é muito mais alveolar Tenho que andar.

Estudar Me relacionar.

Mas por que não no meu lar? Lá é unipolar!

A minha mãe existe para me afagar O mundo é feito de lugares

Novos ares

Meus pares

Será que vou esmiuçares? Ou irão me apagares?

Preciso ter um objeto para me apegar Será um pedaço do meu lugar

Me deixará muito mais forte pra andar Agora sou Rei!

Destruirei todo medo que sinto Do mundo multipolar

O meu lugar está comigo Possuo um amigo

Consigo transitar sem perigo (Carlos, 23/03/2015)

Em meio a conceitos específicos, como o de objeto transicional, questões teóricas mais estruturais também eram apresentadas, como as concepções de ciência. A aluna Amanda2 conta, em seu registro poético, aquilo que ficou:

Por fim, Boaventura de Sousa Santos nos foi apresentado com alguns de seus pensamentos. E o que ficou desta aula expositiva foi: não se pode acreditar em tudo o que a ciência diz, pois esta está em constante mudança, e tudo é uma questão de relatividade, de quem está produzindo esta ciência. (Amanda2, 27 de abril de 2015).

Compreender a ciência, enquanto projeto humano de conhecimento, como uma produção cultural e historicamente situada é importante para não a conceber como um ente abstrato, referencial absoluto e imune às contradições humanas, a que cabe ao cientista o papel de “descobrir”. Perspectiva necessária para entender seus movimentos de constante mudança e não assumir, ingenuamente, que se pode acreditar em tudo o que a ciência diz – ou, melhor, que dizem em nome dela. Olhar fundamental para que o professor, detentor de conhecimentos científicos, não se assuma como expert e ensine pela autoridade. No entanto, a afirmação de que tudo é uma questão de relatividade, de quem está produzindo esta ciência precisa de ressalvas.

Tomar a ciência como equivalente a discurso científico e a retratar como simples questão de relatividade seria, ao meu ver, uma posição problemática a se adotar – um dos extremismos a que, comento no memorial, considero ingenuidade resvalar. Já passei perto dele em minha trajetória de pensamento. Foi necessário que eu cursasse uma disciplina de Filosofia da Ciência na pós-graduação para compreender que é preciso ser crítico a uma visão triunfalista de ciência – onipotente, neutra, universal, unitária – sem ceder ao vício pós-

moderno de reduzir tudo a discursos, como pretendiam os sofistas gregos. Levanta, portanto, certa preocupação ler uma aluna dizendo que tudo é uma questão de relatividade e isso foi o que ficou da aula. O registro poético, ao revelar tais indícios, é capaz de fazer enxergar, aos formadores, lances da perspectiva do aluno sobre aquilo que lhe foi comunicado. Oferece, assim, subsídios para avaliar os resultados da mediação e ajustar as estratégias.

Por fim, o relato de Raphaela, a seguir,

Como de costume, saio da sala sentindo que carrego comigo algo novo. (Raphaela, 11/05/2015).

anuncia que a mediação vai além do auxílio na compreensão teórica. A sala é um espaço de onde se sai carregando algo novo. Tanta coisa cabe nessa definição – o que pode fazer dela uma expressão vaga ou, por outro lado, permitir que tenha sentidos bastante personalizados. Uma análise cuidadosa nos leva à segunda possibilidade; a partir dos indícios do próximo núcleo de significação, busco sinalizar o que se carregou de novo pelo aspecto pessoal.