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5. Apresentando polinizadores: uma contextualização teórica

5.2. Experiência

5.2.3. Lev Vigotski

A experiência também ocupa um lugar importante nas formulações da Teoria Histórico-Cultural. No entanto, para ser possível a analogia com os conceitos de experiência em Benjamin e em Larrosa, será preciso contextualizar a forma como essa noção aparece nos textos de Vigotski.

Primeiramente, é preciso esclarecer uma questão de tradução. A noção equivalente a experiência é referida por Vigotski por meio da palavra russa perejivânie41 – uma palavra de difícil tradução, que estudiosos da teoria têm representado na língua portuguesa como “vivência” (PRESTES; TUNES, 2012; TOASSA, 2014; VIGOTSKI, 2010b). Diante da especificidade do conceito vigotskiano, há também autores que têm preferido manter o termo em russo, sem tradução, como Veresov (2010, 2016). Embora o significado da palavra “vivência”, no senso comum, não represente de modo exato a noção proposta por Vigotski, considero que o mesmo ocorre todas as vezes em que palavras ordinárias são usadas por autores para designar um conceito; toma-se uma palavra já vulgarizada como nome para uma ideia definida. Contanto que se apresente a definição de modo claro, como me proponho a fazer, a seguir, creio não haver problema em traduzir perejivânie como “vivência”, visando delinear a discussão em palavras mais próximas de nossa cultura e tornar a leitura mais fluente.

É preciso ressaltar que o conceito de vivência em Vigotski não conservou o mesmo sentido em momentos diferentes de sua produção. Assim como suas principais ideias, trata-se de uma noção que evoluiu ao longo do percurso intelectual do autor. Segundo Veresov (2005), é entre os anos de 1925 e 1927 que o pensamento vigotskiano passa a conceber a consciência como resultado da atividade de trabalho humana, e assim gesta sua mais conhecida contribuição à psicologia: a Teoria Histórico-Cultural. É a partir dessa fase que apresento o conceito de vivência, já integrado ao coeso quadro teórico legado por Vigotski em suas produções finais.

Vigotski propôs uma lei genética geral do desenvolvimento, nos seguintes termos:

(…) Qualquer função no desenvolvimento cultural da criança aparece em cena

41 Perejivânie é a forma de transliteração da palavra russa переживания para o português (PRESTES, 2010).

duas vezes, isto é, em dois planos. Aparece primeiramente no plano social e depois em um plano psicológico. Primeiramente entre as pessoas em um evento interpsicológico, e depois no interior da criança como um evento intrapsicológico. Isso é igualmente verdadeiro em relação à atenção voluntária, a memória lógica, a formação de conceitos e o desenvolvimento da volição. (VYGOTSKY, 1983, p.145.)42

Segundo essa formulação, o desenvolvimento de toda função psicológica começa em um evento social, para então poder ser internalizado pelo sujeito. Uma outra maneira possível de enunciar essa lei é a proposta por Toassa e Souza (2010): ao longo do desenvolvimento de um indivíduo, os processos psicológicos começam em si, isto é, de forma não mediada. Estando inserido em uma cultura repleta de significados estabelecidos, o que era um processo psicológico em si (o sujeito na relação consigo próprio) receberá uma significação por parte de membros da cultura, passando a ser algo também para os outros. A convivência social levará o sujeito a internalizar as significações atribuídas pelo outro a seus processos psicológicos, tornando o que era para os outros em algo que também é para si.

A Teoria Histórico-Cultural apresenta os processos pelos quais as interações no plano sociocultural proporcionam a apreensão de um sistema de signos mediadores da atividade de pensar. Quanto a isso, deixa claro que os significados com que o indivíduo toma contato não são diretamente internalizados, em sua “forma pura” (VERESOV, 2010). O processo de internalização de significados implica o comportamento ativo, por parte do sujeito, de significar – e não a condição passiva de receber um significado pronto, via transferência externa, como um pacote. Aqui reside uma importante diferença, decorrente da concepção marxista de trabalho, em relação ao pensamento apresentado por Larrosa: a atividade, em vez de obstáculo (por seu excesso), é o que promove a experiência.

Assim, a internalização não é separada da atribuição de sentido – a subjetivação dos significados –, que necessariamente ocorre nesse processo. É importante ter em mente, como oportunamente lembram Aguiar e Ozella (2006), que a separação entre significado e sentido não é estanque; antes, é uma forma didática de distinguir as zonas mais estáveis e as zonas mais fluidas do campo de compreensões possíveis de uma palavra. Os significados, como já exposto anteriormente, se caracterizam como um entendimento comum e

42 Tradução livre para o português, à luz da análise feita por Veresov (2005) das palavras escolhidas por Vigotski

para essa formulação. O texto original em inglês é: “any function in the child’s cultural development appears on stage twice, that is, on two planes. It firstly appears on the social plane and then on a psychological plane. Firstly among people as an inter-psychological category and then within the child as an intra-psychological category. This is equally true with regard to voluntary attention, logical memory, the formation of concepts and the development of volition”.

compartilhado entre os membros da cultura a respeito de um signo. Já a constituição dos sentidos, segundo os autores, está intimamente ligada a “necessidades que, muitas vezes, ainda não se realizaram, mas que mobilizam o sujeito, constituem o seu ser, geram formas de colocá-lo na atividade” (p. 227). Simone revela, no registro poético abaixo, diversas necessidades e motivos que a atravessavam, como aluna, enquanto estava em sala:

Todas as segundas-feiras são bem agitadas e muitas vezes não quero ir para aula a tarde, as confusões do período da manhã na escola onde trabalho me deixam exaurida, às vezes penso e repenso, e o meu senso de comprometimento me faz vir para a aula. E, como sempre, é nela que encontro algum conforto, lugar de reflexão ou onde definitivamente consigo relaxar de toda a pressão do trabalho. Assim se passou mais uma aula cheia de surpresas, relatos, desabafos, compartilhamento e novas experiências. (Simone, 25/05/2015, grifos meus)

Desse modo, a internalização das formas presentes nas relações com o meio não é direta, mas como que “refratada” pelo “prisma” de experiências emocionais – em uma analogia com o fenômeno físico de refração da luz. Consequentemente, se um mesmo evento ocorrer a pessoas diferentes – suponhamos que a situação seja idêntica, inclusive a posição de seu corpo no espaço e as interações com os outros – cada uma será afetada pelos acontecimentos de maneira distinta e singular. Segundo Veresov (2016), a palavra perejivânie (vivência) é empregada por Vigotski para designar tal fenômeno de “refração” – sendo as vivências o “prisma” por meio do qual significados se reconfiguram no processo de internalização.

Ainda segundo o mesmo autor, a perejivânie aparece na Teoria Histórico-Cultural também como conceito, uma ferramenta para análise teórica e metodológica. Considerando o princípio, assumido pela teoria, de que a linguagem fornece as bases para a estruturação do pensamento, Toassa e Souza (2010) afirmam: por existirem palavras que generalizam vivências, posso tomar consciência delas. Dito de outra forma, por existirem palavras e significados para nomear o que existe e narrar o que se passa, fatos e acontecimentos brutos podem se tornar vivências com sentido.

Uma vez que “a palavra não comporta significados estáticos partilhados por interlocutores ideais” (TOASSA, 2014, p. 21), é preciso compreender as circunstâncias em que o sujeito experienciou um evento para compreender de que modo formou os sentidos a seu respeito. É então que a vivência assume, para Vigotski, o seu papel metodológico, e

torna-se uma unidade de análise sistêmica para relacionar, de um lado, o desenvolvimento de aspectos da consciência e da personalidade; do outro, a sua fonte sociocultural.

A questão da inefabilidade das vivências, ou seja, a dificuldade de traduzi-la em palavras, se deve ao fato de que toda a comunicação entre pessoas só é possível por meio da mediação de categorias do pensamento:

É um axioma da psicologia científica a impossibilidade da comunicação imediata entre as almas. Sabe-se ainda que a comunicação não mediatizada pela linguagem ou por outro sistema de signos ou de meios de comunicação, como se verifica no reino animal, viabiliza apenas a comunicação do tipo mais primitivo e nas dimensões mais limitadas. (...) A comunicação, estabelecida com base em compreensão racional e na intenção de transmitir ideias e vivências, exige necessariamente um sistema de meios cujo protótipo foi, e continuará sendo a linguagem humana, que surgiu da necessidade de comunicação no processo de trabalho. (...) Para se comunicar alguma vivência ou algum conteúdo da consciência a outra pessoa não há outro caminho a não ser a inserção desse conteúdo numa determinada classe, em um grupo de fenômenos, e isto, como sabemos, requer necessariamente generalização. (VIGOTSKI, 1934/2010b, pp. 11-12)

Ou seja, é preciso recorrer às palavras, signos compartilhados pela cultura para designar a experiência comum. Se, por um lado, tais categorias são úteis como generalizações, reduzem, por outro lado, a complexidade dos fenômenos, aplainando singularidades e subjetividades. O significado pode ser expresso diretamente por meio das palavras; o sentido não. A palavra serve como símbolo do conceito, mas não é capaz de servir como recipiente para conter a vivência em toda sua extensão. A aluna Ana Luísa, em seu registro poético, reflete sobre a importância da escuta sensível para acolhermos todos os sentidos de uma experiência que não podem ser contidos em palavras:

Descobri que preciso desenvolver minha escuta sensível: quão preciosa ela é! Tem um valor imensurável. Aprendi que, na maioria das vezes, é só dar um empurrãozinho e o seu silêncio. Pronto. Resolvido. Às vezes, é preciso chorar junto. Lembrei-me de um ocorrido, muito triste por sinal. O falecimento do pai de uma amiga muito próxima. Nessas horas, a gente fica sem reação. Então, durante o velório, só fiquei lá, com ela, sentada num banquinho. Cada pessoa nova que chegava, era um chororô só. E, depois de certa hora, o choro não parou. Ela debruçou no meu colo e chorou, dizendo: - Ele tava bem!

Deus sabe o quanto eu sofri por não conseguir reagir. Mas, depois, fui surpreendida. [Um dia] a Gabi virou pra mim e disse:

- Não lembro de quase nada do velório. Mas eu lembro de chorar com você. Tem coisa que não tem preço. (Ana Luísa, 01/06/2015, grifos da autora)

Tendo isso em vista, há limitações que precisam ser reconhecidas a respeito da possibilidade de apreender, por meio de registros escritos, os sentidos que os sujeitos atribuem às suas vivências, decorrentes das limitações da palavra como veículo de expressão. Esta pesquisa não se propõe, assim, a determinar e definir a verdade a respeito de vivências, mas, como sugere Veresov (2016), identificar as forças que direcionam o processo de desenvolvimento.