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L S Vigotski e a Teoria Histórico-Cultural

5. Apresentando polinizadores: uma contextualização teórica

5.1. L S Vigotski e a Teoria Histórico-Cultural

Esta pesquisa orienta-se, desde sua concepção até a análise e discussão dos dados, pelo referencial teórico oferecido por L. S. Vigotski e seus colaboradores na chamada Teoria Histórico-Cultural. Não é a intenção desta seção fazer uma exposição da teoria em si, mas apresentar de maneira sintética os conceitos que balizam sua perspectiva, dentro da qual inicio esta conversa. Assim, espero que os leitores se sintam familiarizados com essa parceira de travessia, enquanto, ao longo da narrativa de pesquisa, convido novos interlocutores para o diálogo.

Lev Semenovich Vigotski nasceu na Bielo-Rússia em 1896, território que viria a ser parte da União Soviética alguns anos mais tarde. Formou-se em Direito na Universidade de Moscou, em 1917 – um curso que, na época, era amplo e abrangia várias áreas das ciências humanas. Sua atividade profissional foi bastante diversificada no início da carreira; no entanto, foi a experiência de trabalhar na escola de formação de professores de Gomel que o colocou em contato com os problemas de crianças com dificuldades severas de aprendizagem. A. R. Luria (1988), um de seus principais discípulos e colaboradores, considera que o

propósito de descobrir maneiras de ajudar tais crianças a se desenvolverem foi o que aproximou Vigotski dos psicólogos acadêmicos.

Antes de trazer ao diálogo os conceitos, cabe localizá-los brevemente em seu panorama histórico. Uma característica essencial que constitui a cosmovisão da Teoria Histórico-Cultural é sua inspiração marxista. Gestada na Rússia pós-revolução e contemporânea do regime soviético nascente, diversos de seus pressupostos são deliberadamente vinculados ao ideal de elaborar uma teoria psicológica compatível com a concepção de homem e de mundo do materialismo histórico-dialético.

Situemos, todavia, esse dado em seu justo papel na constituição obra. Por um lado, definir a Teoria Histórico-Cultural meramente como o projeto de uma “psicologia marxista” é apresentar uma visão não apenas empobrecida como historicamente imprecisa. Em seu artigo Marxist and non-Marxist aspects of the cultural-historical psychology of L. S. Vygotsky, Veresov (2005) desfaz o mito da “psicologia marxista”, trazendo ricos dados que nos permitem conhecer de forma ampliada o panorama intelectual e cultural de Vigotski, quando da elaboração de suas ideias. Por outro lado, negligenciar sua filiação filosófica e apresentar a teoria desconectada de seu compromisso político e ideológico é fragmentá-la e contradizer o próprio espírito do pensamento vigotskiano, segundo o qual só se compreende uma realidade se for por inteiro.

Não pretendo examinar em detalhes a relação entre a Teoria Histórico-Cultural e a doutrina marxista – apenas enumerar, de modo geral, seus principais elos: a atividade humana é fundamental para o desenvolvimento mental; o processo de formação da mente é social e histórico; os signos culturais são como ferramentas psicológicas; o processo de desenvolvimento não é linear, mas dialético. Diretamente inspirados no marxismo ou não33, proponho revisitarmos alguns conceitos específicos da teoria que serão especialmente úteis para vestir nosso olhar.

Em última instância, a linha mestra que unifica todos os conceitos da Psicologia Histórico-Cultural é a ideia de desenvolvimento das funções psicológicas superiores (VERESOV, 2010). Identificar as raízes genéticas34 desse processo é a finalidade em torno da qual todos os conceitos da teoria se articulam. A concepção de desenvolvimento que

33 O artigo de Veresov (2005) propõe uma revisão de grande parte dessas associações, trazendo dados

biográficos de Vigotski para demonstrar que diversas fontes não marxistas tiveram papel fundamental na formação do pensamento do autor, mas nem sempre recebem a devida consideração.

34 Importante ressaltar que a palavra genético, no contexto da Teoria Histórico-Cultural, remete a gênese

encontramos em Vigotski não é simplesmente sinônimo de progresso, como geralmente se encontra na linguagem prosaica, ou de crescimento orgânico, como no vocabulário biológico. A Teoria Histórico-Cultural se refere a desenvolvimento para designar o processo profundamente complexo de reorganização qualitativa de um sistema – no caso, a consciência humana e suas funções psicológicas.

Vigotski (1931/1995, 1930-1934/2007) considera as funções psicológicas divididas em elementares e superiores35. As primeiras, herdadas da espécie (filogênese),

fornecem estruturas cognitivas que tornam o ser humano apto a comportamentos básicos como reflexo (reações automáticas), condicionamento (associações simples entre eventos), imitação, etc. Tais funções não possibilitam diretamente, porém, as operações psicológicas mais complexas, tais como controle consciente e intencional do comportamento, abstração, memória e atenção voluntária.

As funções psicológicas complexas, designadas superiores, são qualitativamente diferentes e configuram o comportamento tipicamente humano. Ao contrário das elementares, que se estabelecem diretamente entre o indivíduo e seu objeto, as funções superiores caracterizam-se por serem mediadas por signos: ou seja, entre o indivíduo e o objeto existem sempre elementos culturais atuando como símbolos, representando ideias e conceitos, atribuindo significado à realidade.

O significado, segundo Oliveira (1997), é um atributo essencial da palavra que exerce duas funções básicas: o intercâmbio social e o pensamento generalizante. A primeira dessas funções se deve ao significado ser um entendimento da palavra compartilhado pelo grupo cultural. Embora cada pessoa tenha tido diferentes experiências pessoais com cachorros, por exemplo, quando alguém se refere a “cachorro” todos sabem do que se trata. Mesmo alguém que nunca tenha visto um cachorro de verdade, se tiver aprendido por meio de figuras e/ou narrativas o que é um cachorro, será capaz de compreender a referência ao animal na fala do outro, pois o significado da palavra é compartilhado. E isso está intimamente ligado à segunda função do significado: o pensamento generalizante. Para compreender uma referência a “cachorro” não é necessário ter interagido particularmente com o cão referido, ver uma foto do animal ou receber explicações sobre a natureza desse ser específico. Conhecer o significado de uma palavra implica ter internalizado um modelo abstrato daquilo

35 Apresento, de forma simplificada e esquemática, a distinção entre as funções superiores e elementares. A

delineação destes conceitos, entretanto, não é tão nítida na obra de Vigotski. Para uma discussão mais aprofundada, que não caberia aqui, vale a pena a leitura do texto de Delari Junior (2011).

que ela representa, que servirá como analogia para operar mentalmente com as diversas expressões particulares daquele conceito geral.

A Teoria Histórico-Cultural chama a atenção para o fato de o sistema de signos que o sujeito adquire para mediar sua relação psicológica com o mundo não ser uma criação individual, mas a apropriação de um sistema preexistente e culturalmente compartilhado. O sujeito imerso em uma cultura encontra palavras já feitas, relacionadas a objetos também já elaborados, e assimila a conexão entre ambos por meio da convivência com membros mais experientes da cultura, que já apropriaram tais nexos e o utilizam com fluência. Nisso reside a origem social da mente: as categorias de pensamento necessárias à mediação psicológica se constituem a partir da internalização de relações sociais significativas – voltarei a esse ponto mais adiante.

Enquanto o significado de uma palavra é relativamente estável e objetivo, seu sentido, porém, é muito mais fluido e subjetivo, pois muda de contornos conforme o contexto em que a palavra é enunciada e adquire tonalidades afetivas diferentes dependendo de como se conecta às experiências e vivências de cada pessoa (OLIVEIRA, 1997). Lembro de uma situação que ilustra isso. Quando eu era criança, tive muita vontade de ter um cachorro, e cheguei a “dar a ideia” para minha mãe algumas vezes – como morei em apartamento até os catorze anos, talvez não tenha pedido diretamente por reconhecer que as chances eram pequenas. Minha mãe, ao ouvir, dava uma resposta negativa ou mudava de assunto. Parecia nem sequer considerar a possibilidade. Ainda que eu insistisse, dizendo o quanto filhotes são adoráveis e se tornam grandes companheiros quando crescem, ela se faria resistente; comentaria o quanto dão trabalho, fazem sujeira e destroem a casa. Talvez, no íntimo, ela não gostasse muito de cachorros. Tendo opiniões tão divergentes, estaríamos nós dois falando sobre animais diferentes? Não. O significado da palavra “cachorro” é consensual entre ambos; é claro quanto ao animal a que se refere. Todavia, o sentido é notavelmente distinto por diversas razões, como explica Vigotski:

Como se sabe, em contextos diferentes a palavra muda facilmente de sentido. O significado, ao contrário, é um ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas as mudanças de sentido da palavra e em diferentes contextos. (...) O sentido real de uma palavra é inconstante. Em uma operação ela aparece com um sentido, em outra, adquire outro. Tomada isoladamente no léxico, a palavra tem apenas um significado. Mas este não é mais que uma potência que se realiza no discurso vivo, no qual o significado é apenas uma pedra no edifício do sentido. (1934/2010, p. 465)

Tomando o exemplo narrado anteriormente como inspiração para ensaiar interpretações possíveis, a título de ilustração do conceito, o primeiro ponto é que a mãe e o filho consideram a adoção do cachorro situados em diferentes contextos. Para a mãe, o animal de estimação pode representar aumento nas despesas, uma desorganização no modo como o ambiente doméstico está organizado e um incômodo pelo barulho, perturbando seus momentos de repouso. Para o filho, o cãozinho pode representar um amigo para cuidar e brincar, um novo membro para a família, uma companhia com personalidade e emoções.

Além disso, as marcas afetivas deixadas por vivências anteriores modificam o entendimento sobre um conceito e lhe dão um sentido singular, porque subjetivo. O filho pode ter internalizado um conceito de cachorro com tonalidades afetivas de ternura e alegria, cuja imagem remete a experiências que teve com filmes, desenhos animados e cachorros que viu e com que brincou na casa de outras pessoas. A mãe, por sua vez, pode ter crescido ouvindo referências negativas a esse animal, pois seus pais também não gostavam, ou mesmo pode já ter sido atacada por um cão violento, internalizando assim um conceito de cachorro matizado pelo medo e pela repulsa.

Assim, mesmo que ambas compreendam objetivamente a que o significado da palavra se refere, os sentidos desta podem variar praticamente ao infinito. A palavra é, portanto, uma interface necessária à comunicação entre as consciências – que para Vigotski (1934/2010b) não pode se dar de forma imediata, mas somente tomando por ponte os signos, com seus significados compartilhados e sentidos compreendidos. Ao mesmo tempo, a palavra impõe um limite natural à comunicação do pensamento, pois não se podem controlar os sentidos que adquirirá ao ser assimilada pelo interlocutor.

Considerar as funções superiores necessariamente mediadas por elementos culturais têm uma séria implicação: o funcionamento psicológico humano deixa de ser um atributo da espécie, sujeito à evolução biológica, e passa a ser um atributo do grupo sociocultural, sujeito à evolução histórica. Assim,

Um ponto central desse método é que todos os fenômenos sejam estudados como processos em movimento e mudança. Em termos do objeto da psicologia, a tarefa do cientista seria a de reconstruir a origem e o curso do desenvolvimento do comportamento e da consciência. Não só todo fenômeno tem sua história, como essa história é caracterizada por mudanças qualitativas (mudanças na forma, estrutura e características básicas) e quantitativas. (COLE; SCRIBNER, 2007, p. XXV)

Estudar o desenvolvimento, portanto, é estudar a história das interações do sujeito com o meio, que é a sua fonte. “Meio” não é entendido aqui como mero ambiente físico- biológico, mas sobretudo cultural e repleto de outros. É sob esse paradigma que, na próxima seção, convido mais alguns interlocutores para somarem o tópico da experiência à conversa.