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3. O ecossistema de formação: uma introdução (à pedagogia)

3.2. Autorretrato

No primeiro dia de aula, Ana Aragão, Fabiana Nasciutti (PED) e Bianca Affonso (PAD) se apresentaram à turma. Buscaram fazê-lo de um modo que superasse a mera formalidade, e que permitisse ao grupo conhecer não apenas as três formadoras, mas também pessoas, que estariam ali naquele semestre. Para isso, fizeram questão de incluir traços de sua história que deixaram marcas em sua constituição. Essas apresentações – trazidas em pequenos textos projetados em slide – foram chamadas de “autorretratos”. A professora Ana, por exemplo, compôs o seu da seguinte maneira:

Tenho 55 anos. Nasci em Fortaleza (CE) e a nordestinidade me constitui: adoro tudo do Nordeste!! Sou a 3ª filha de uma família de 4 mulheres: somos fortes e corajosas e ousadas, pois, minha mãe ficou viúva aos 39 anos e, com 4 filhas pequenas, ou se virava, ou se virava!!! Sou divorciada, tendo sido casada por 28 anos. Tenho uma filha, Bia, de 23 anos, que faz Geografia aqui na Unicamp. Tenho um novo companheiro, o Tarcizo, que transformou a minha vida: o olhar dele melhora o meu (como diz a música do Arnaldo Antunes). Trabalho em escolas há mais de 34 anos e essa é a minha vida profissional: é lá que gosto de estar! Atuando com formação de professores. Desenvolvi projetos interessantes em escolas e vou ter oportunidade de contar muitos deles a vocês. Fiz Psicologia na PUC de Campinas, me formei em 1981. Fui professora lá por 14 anos e, desde o ano 2000 sou docente aqui na Unicamp. Fiz Mestrado, Doutorado, Pós- doutorado e Livre-docência. Faço parte do GEPEC, aqui da FE. Adoro ser professora!! Talvez este seja o último semestre de minha docência na Unicamp, pois descobri que posso me aposentar a partir de junho!! (março de 2015).

22 Crônica publicada no livro "O doido da garrafa”, pela editora Planeta do Brasil (2003). 23 Crônica publicada no livro "Eu sei, mas não devia”, pela editora Rocco (1996).

E deixaram a seguinte impressão em Bruna:

(...) De maneira bem dinâmica e envolvente, a leitura não foi, de maneira alguma, cansativa e monótona. A proposta, muito bem pensada, fez com que pudéssemos conhecer melhor as pessoas que estarão nos guiando no nosso processo de formação, pelo menos uma parte dele, e fez também com que percebêssemos que a vida é incerta e movida por escolhas que, às vezes, nunca havíamos imaginado tomar. (Bruna, 09/03/2015)

O autorretrato é um gênero comum nas artes plásticas. Luciana Haddad Ferreira (Nana), quando convidada para a disciplina de pós-graduação Reflexividade e Formação de Professores, ministrada pela Prof.ª Ana Aragão, em 2014, propôs o autorretrato como dinâmica. Trazendo exemplos de artistas que se autorretrataram, como Van Gogh, Frida Kahlo e até Mário Quintana (em forma de poema), Nana propôs que cada aluno também criasse sua apresentação pessoal por meio de um autorretrato, utilizando a linguagem artística de sua preferência. Eu era um desses alunos, acompanhando a disciplina como ouvinte, antes de ingressar no Mestrado.

Em 2015, o autorretrato foi uma das atividades propostas às alunas da disciplina de Introdução à Pedagogia. Tinha caráter vivencial e não seria avaliado com nota. Disponibilizando uma grande variedade de materiais – papéis coloridos, lápis, tintas, revistas, pedaços de tecido, etc. –, as estudantes foram convidadas, na terceira aula, a compor suas próprias apresentações pessoais. O grupo abraçou a proposta; as pessoas se espalharam pela sala, ocuparam mesas, cadeiras e chão. O violão que eu tinha levado – pois meu autorretrato seria musical – também virou recurso disponível, e teve quem o escolhesse. Raphaela conta:

No final na aula surgiu a proposta de construirmos o nosso autorretrato, como fizeram a professora Ana, a PAD e a PED no início do curso. Porém, agora seria de uma forma mais criativa e não abandonando a poesia que está sempre presente no nosso curso. No clima de nostalgia em que me encontrava, fiz minha colagem, com o auxílio de colas coloridas, barbante, retalhos de tecido, amor e saudade. (Raphaela, 30/03/2015)

Feitos os autorretratos, a sugestão da professora foi que se formassem pequenos grupos para que as pessoas apresentassem entre si. O intuito era que não se tornasse maçante, o que poderia acontecer caso todas tivessem que assistir a todas as 49 pessoas apresentando seus autorretratos. Os grupos pequenos se formaram; porém, não duraram muito tempo: foram se aglutinando, até que restaram dois grupos grandes, um dentro e um fora da sala de aula. Acabou o tempo da aula e grande parte dos autorretratos não tinha sido, ainda, apresentada.

Na semana seguinte, por sugestão das próprias alunas, formou-se uma única roda na sala de aula para que se apresentassem as pessoas que faltavam. Aquilo que imaginamos que poderia ficar repetitivo era, na verdade, uma vontade delas. Experienciavam, ali, a possibilidade de conhecer por outro ângulo as pessoas que faziam parte da turma, oportunidade que de outro modo talvez não teriam. O momento se iniciou como conta Sereno:

Algumas pessoas ainda não haviam apresentado seu autorretrato, então elas tiveram novamente esse espaço, que foi iniciado pelo Raul, tocando uma música de autoria própria e que contagiou a todxs24. (Sereno, 23/03/2015)

Eu tinha levado o violão outra vez. Naquela roda que ocupava a sala inteira, cantei meu autorretrato25:

Queijo é queijo e pão é pão

Assim nos diz a razão de quem é são Sonho, só em balcão de padaria Que outra possibilidade haveria? O menino sossegou, se aposentou Recolheu a sua pipa

E agora é pé no chão, na profissão Usa sapato e camisa de botão Mas um pensamento escapou E voou, voou

Encontrou um pouco de mistério Até que alguém chamou

Mas se o pensamento encostou Os olhos fecham e o sonho aparece Mas se o pensamento despertou Os olhos abrem e o sonho acontece

Até quem já tinha apresentado seu autorretrato na aula passada apresentou de novo, a pedido das colegas que estavam em outro grupo na semana anterior e não tinham visto. As marcas deixadas por essa vivência de produzir, compartilhar e acolher sínteses pessoais ficaram impressas nos registros poéticos, e é a partir deles que podemos conhecer os sentidos que a proposta teve para as alunas. Tal análise é desenvolvida no capítulo 7, e permitirá fazer, com mais propriedade, considerações sobre a contribuição dessa atividade para a formação das estudantes.

24 Forma proposital de grafia, com o propósito de manter a palavra neutra em gênero. 25 Gravação em vídeo disponível em <http://bit.ly/autoraul>, ou pelo código QR ao lado.