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Acções político-administrativas de D Afonso III relativas ao Clero

4.1 D Afonso III (1248-1279)

4.1.1 Acções político-administrativas de D Afonso III relativas ao Clero

Como já referimos no período medieval, a mentalidade cristã dos membros das Ordens em geral facilitou a obtenção de prestígio por parte da Igreja e, de conseguinte, maior facilidade para esta ganhar bens, que, assim, proporcionaram- lhe grande riqueza material. Associados às doações, ela tinha os dízimos e os privilégios de foro, direito de asilo, isenções fiscais e de serviço militar e o destacado papel cultural, porque a maioria dos clérigos eram letrados, ocupavam cargos de prestígio com o rei e se dedicavam ao ensino.

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Leontina VENTURA – D. Afonso III. Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, 2006, p. 96. 8

Adério Gomes FERREIRA – As Cortes de Elvas em 1361. Dissertação de Licenciatura em História apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, policopiada, Coimbra, 1964, p. 34. 9 Armando Luís de Carvalho HOMEM - Dionisius et Alfonsus, Dei Gratia Reges et Communis Utilitatis Gratia Legiferi. In: Revista da Faculdade de Letras – História – II série – Vol. XI – Porto, 1994.

D. Afonso III, devedor da Igreja10 porque obteve o apoio desta para conquistar a Coroa portuguesa, passou a adoptar, inicialmente, comportamento favorável aos clérigos, a fim de restringir a actuação da Nobreza e dos funcionários reais em propriedades eclesiásticas, comportamentos que eram constantemente motivo de reclamações feitas pelos eclesiásticos ao monarca.

Na lei a seguir e – convém ressaltar – em quase todas as outras também, encontram-se osverbos ordenar e mandar, de valor imperativo, sempre conjugados no presente ou no passado:

ElRey Dom Affonfo o Terceiro hordenou, e pofe por Ley, que nenhuum Fidalgo, ou Cavalleiro, nem outro de qualquer eftado, e condiçom que feja, que de nós terra tever, ou feus Moordomos, nõ poufem nas Igrejas, nem em fuás cafas, nem façam celeiros, nem adegas nos Moefteiros, ou Igrejas, nem nos adros dellas, ne (~) filhem hi pam, nem vinho do que ham d´aver as Igrejas, ou Moefteiros contra voontade dos Abades, e feus Clérigos, ou Moordomos. Outro sy mandou, que pofto que as Igrejas jaçam em terras Regueengas, ne, fejam tributarias por ello a ElRey, falvo quando fe per foro, ou algum outro jufto titulo moftrar que o devam de feer. E nós affi o hordenamos, e mandamos, por que o fentimos affi por ferviço de DEOS, e noffo e bem de noffos Regnos11.

O monarca, além de ordenar que não se pernoitasse em propriedades da Igreja nem se apropriasse de seus alimentos, mandou, na mesma lei, que, quando estivessem em terras reguengas, deviam ser tributários dele. Como única exceção, apresentou o facto de a Igreja portar Carta de Foro, alegando a isenção de tal obrigação. Notemos que há preocupação em regulamentar os comportamentos da Nobreza e do Clero quanto ao compromisso para com elas próprias, o devido respeito mútuo e a obediência às Ordenações Régias.

Os conflitos sociais da época levaram D. Afonso III12 a promulgar, alguns

10 Conforme Hermínia Vasconcelos VILAR – O rei e a Igreja – o Estabelecimento das Concórdias (1245-1383). In: Ana Maria C. M. JORGE e Ana Maria S. A. RODRIGUES (Coord.) - História Religiosa de Portugal. Círculo de Leitores, 2005. A Autora afirma: Quando em 1245 Afonso III recebia, das mãos do papa, o reino de Portugal, um longo caminho estava já percorrido para este candidato ao trono, mas um outro caminho o espeava. (...) Em Setembro desse ano prestou juramento em Paris, nas mãos do arcebispo D. João Viegas de Portocarreiro e de João Martins, procurador do bispo de Coimbra. Nesse juramento comprometia-se a observar e fazer observar no reino os artigos da liberdade eclesiática e outros incluídos na provisão de Gregório IX, e a defender as instituições eclesiásticas bem como os seus bens. P. 318.

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Ordenações Afonsinas. Livro II, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, pp.190-191. 12

Consultar: Leontina VENTURA – Afonso III e o Desenvolvimento da Autoridade Régia. In: Maria Helena da Cruz COELHO e Armando Luís de Carvalho HOMEM – Portugal em Definição de Fronteiras. Do condado Portucalense à Crise do Século XIV. Lisboa: Editorial Presença, 1996, p.123- 133.

anos mais tarde, um conjunto de leis13, no qual reprimia as usurpações e os abusos feitos contra a Igreja e, ainda, a regulamentar várias outras questões, que vinham fazendo sofrer os eclesiásticos.

Ora, sabe-se que o direito de padroado era exigido, muitas vezes, de forma extremamente rigorosa, e tais exigências causavam sérios problemas à Igreja, daí a preocupação do monarca em criar condições para que isso ocorresse da forma mais branda e disciplinada. Não obstante, a Igreja continuava com suas exigências e reclamações contra os maus tratos, sobretudo porque os eclesiásticos sabiam dos acordos feitos entre a Igreja e o soberano, quanto à manutenção de seus privilégios. Apesar das várias tentativas de regulamentação do comportamento social, os problemas continuaram a existir, particularmente aqueles relativos à Igreja.

Eis algumas das principais razões para os agravos do Clero14:

- O reclamar da autoridade régia sobre a maioria das fortificações, algumas nas mãos dos religiosos;

- a acção vigilante dos juízes e meirinhos régios contra os quais o Clero se queixava constantemente;

- a criação do cargo de meirinho-mor, que era o encarregado da justiça maior, delegado e executor da vontade régia, com o direito de prender, citar, penhorar e executar mandados judiciais.

As desavenças com os religiosos generalizaram-se, particularmente a partir de 1267. Em 1268, os bispos portugueses apresentaram ao Papa Clemente IV (1265-1268) um conjunto de reclamações, que reflectem as causas das divergências. Eles acusavam D. Afonso III de violências administrativas, do confisco de bens e de propriedades das comunidades, de nobres e de clérigos, da prisão, à revelia, de alguns membros dessas Ordens, da revogação de certos direitos eclesiásticos, de recusa quanto ao pagamento de dízimos e de construção e arrendamento de prédios nas propriedades confiscadas.

D. Afonso III reagiu com a declaração solene dos Concelhos de Portugal na

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Ordenações Del-Rei Dom Duarte, ed. Martim ALBUQUERQUE e Eduardo Borges NUNES, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, pp. 60-71.

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Leontina VENTURA – A Crise de Meados do Século XIII. In: Maria Helena da Cruz COELHO e Armando Luís de Carvalho HOMEM – Portugal em Definição de Fronteiras. Do condado Portucalense à Crise do Século XIV. Lisboa: Editorial Presença, 1996, p. 131.

qual era elogiada a sua administração15. Tal declaração, entretanto, não resolveu o problema, pois o rei não tinha feito nada palpável para solucionar o conflito. Por causa disso, todos os bispos, com excepção do de Lisboa, decretaram interdito em suas dioceses. Assim, as reclamações sobre os abusos sofridos continuavam16.

As querelas com os clérigos duraram até os últimos anos do governo de D. Afonso III. Em 1273, ele resolveu redigir um documento, no qual se propôs restituir privilégios retirados aos mosteiros, às igrejas e aos Concelhos. Todavia, ressalvava certos direitos para a Coroa. Reuniu Cortes em Santarém, com a presença de pessoas que representavam as três Ordens do reino, pois assim evidenciava que tais medidas deveriam ser respeitadas e cumpridas.

D. Afonso III resolveu fazer as pazes com a Igreja, não só temeroso de não salvar a própria alma e de que o castigo divino também viesse a recair sobre seus herdeiros, mas também porque estava ocupado com os negócios da administração do reino, incapaz de libertar-se a contento da pressão exercida por ela.

Acatou as solicitações da Igreja e ordenou a seus oficiais eclesiásticos que tomassem as medidas apropriadas para corrigir as injustiças que ele, porventura, tivesse cometido contra ela, a Nobreza e os Concelhos. Feitas as devidas correcções, dever-se-ia comunicá-las a todas as Ordens do reino, para que ficasse claro que o rei era um homem bom e justo, que deseja manter a paz e a harmonia entre seus súbditos, dado que ele tinha incumbido aos próprios clérigos a seu serviço de tomar aquelas providências. Por isso, igualmente, afirmou que respeitaria todas as medidas tomadas. É o que se pode perceber no documento infra, verbis:

Dom Afonso pela graça de Deus rey de Portugal e do Algarve a todos aqueles que esta carta viren fazo saber que como eu recebesse cartas e mandado do papa que eu corregesse e fezesse correger todalas cousas que diziam que eu e os de meu reyno fazeramos em meu reyno forzas e agravamentos por mi e pelos meos ao arcebispo e aos bispos e aos prelados e as eygrejas e aos moesteyros e as pessoas das eygrejas e dos moesteyros e aos fidalgos e as ordiis e aos concellos e a todos os poboos e a todalas comunidades de meo reyno. E eu entendi que o que mi o papa

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Maria E. M. Marques Couto FARIA – D. Afonso III. Breve Estudo da Sua Chancelaria. Livro I, Folha 111v – 137v. Dissertação de Licenciatura apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Policopiada, 1969, p. XI.

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Hermínia Vasconcelos VILAR – O rei e a Igreja – o Estabelecimento das Concórdias (1245-1383). In: Ana Maria C. M. JORGE e Ana Maria S. A. RODRIGUES (Coord.) - História Relegiosa de Portugal. Círculo de Leitores, 2005. A Autora afirma: A virulência das disputas que, a partir de 1266, levarão grande parte dos prelados portugueses a partir para a cúria, onde ficarão, praticamente, até ao final do reinado, e a profusão das queixas apresentadas facilmente demonstram a dimensão assumida, de novo, por este conflito, entre o rei e os prelados. p. 319.

enviava dizer e rogar que era saúde de mha alma e onrra do meu corpo e gram proes e grande assessegamento de meu stado e de meu reyno e que o al poderia seer gram danno e gram perigoo meu e de meus filhos e de meus vassalos e de meu reyno e sobresto mandey chamar meus ricos homees e as ordiis e os concellos do meu reyno e figi mha corte com eles em Sanctarem. [...] meus clerigos e dei lhis compridamente poder que eles corregam e façam correger todalas cousas que acharen e virem que forom feytas por mim e pelos meus de meu reyno sen razon que se devem a correger e a entergar e aos sobredictos arcebispo e aos bispos e aos prelados e as eygrejas e aos moesteyros e as pessoas das eygrejas e dos moesteyros e aos fidalgos e as ordiis e aos concellos e aos poboos e a todalas comunidades do meu reyno. E eu lhys lho gracirey e galardoarey e terrei que faram hy gram servizo a Deus e a mi e a reyna e a todos aqueles que de nos veerem e que faram hy grande assessegamento de meu reyno e gram lealdade sobre mi. E todo aquilo que elles hy fezerem ou mandarem fazer prometo que o terrey e agardarey e comprirey e non verrey en contra17.

Notemos que o discurso do monarca principia pela invocação a Deus, de Quem ele recebera aquele dom. Em seguida, destaca que, por força da solicitação do Papa Gregório X18, devia corrigir e providenciar que fossem rectificadas as acções que praticara, consideradas injustas. Nesse sentido, os monarcas justificavam suas acções por causa de uma solicitação: eles nuncam agiam intempestivamente, mas, pelo contrário, agiam para consertar uma situação complexa, sempre e a partir de uma solicitação e, geralmente, com o apoio das Cortes.

Sabemos, todavia, que quase sempre essa era a forma usada no discurso régio, ao iniciar as leis e/ou as cartas oficiais, mas, não obstante, é importante constatar que esse discurso demonstra que, mesmo praticando acções consideradas incorretas, se preocupava em dar voz ao outro, transformando-o em sujeito, ou seja, em interlocutor do seu discurso. Por isso, era auxiliado por clérigos e juristas que detinham os instrumentos necessários para ajudá-lo nesse processo, nessa construção retórica, conforme referido.

Alguns eclesiásticos estavam a serviço da monarquia. Eles eram os detentores de conhecimento, como o dissemos, por isso desempenhavam ofícios fundamentais na estrutura burocrática do reino. Foram eles também que contribuíram, positivamente, para o desenvolvimento de cargos e funções que

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Chancelaria de D. Afonso III. Livro I, fl. 127, 127 v. Publicado por M. E. M. Marques Couto FARIA, p. 143.

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Este Papa havia publicado a bula Scire debes fili, na qual solicitava ao monarca imunidade para que os bispos pudessem regressar ao reino sem sofrerem represálias.

dinamizaram a administração político-jurídica do reino, sobretudo porque estiveram vinculados, na condição de religiosos, aos estudos nas Universidades, do estrangeiro.

A superioridade intelectual do clero fez com que todos aqueles que mais se distinguiam pelos seus talentos fossem aproveitados para o exercício dos cargos mais importantes, como os de embaixadores, plenipotenciários, chanceleres-mores, regedores de Suplicação, governadores da Casa do Cível, juízes, notários, procuradores e tesoureiros19.

Esses eclesiásticos que serviam o reino e orientavam o monarca em sua política administrativa concordavam, todavia, que a política adoptada era apropriada em face dos abusos praticados por vários membros das ordens. A expressão coisas

feitas sem razão significava que o rei não pretendia restituir todos os privilégios que

retirara, porque tais oficiais consideravam que não se tinha feito nada sem motivo razoável. Assim, o monarca que tencionava criar mecanismos de controlo sobre os eclesiásticos e de organização de comportamentos, ganhou tempo e protelou a solução do conflito com a Igreja20.

Entretanto, ao mesmo tempo em que deviam fazer esse controlo, impor uma disciplina, uma organização, os reis estavam cientes de que precisavam reafirmar, desde logo, o princípio segundo o qual o poder régio era um dom de Deus, o que lhes permitiria disciplinar melhor os clérigos. Percebemos essa preocupação em várias leis e Cartas de Foral outorgadas pelos monarcas.

D. Afonso III, durante seu reinado, além de ter fundado novas e restaurado antigas povoações, concedeu vários forais. Cabe, portando, assinalar, no âmbito da política administrativa e legislativa de D. Afonso III, o outorgamento de Cartas de Foral. Esse monarca editou mais de 30 forais, distribuídos, especialmente, pelo Alentejo e por Trás-os-Montes, gesto esse que externa a preocupação permanente da Coroa no tocante a povoar e a proteger territórios em que a presença lusa ainda

19 Fortunato de ALMEIDA – História da Igreja em Portugal. Volume I Porto: Portucalense Editora, 1967, p. 157.

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Hermínia Vasconcelos VILAR – O rei e a Igreja – o Estabelecimento das Concórdias (1245-1383). In: Ana Maria C. M. JORGE e Ana Maria S. A. RODRIGUES (Coord.) - História Religiosa de Portugal. Círculo de Leitores, 2005. A Autora afirma: No entanto, a acção desta comissão será diminuta. Constituída por personagens afectas ao rei como D. Durão, bispo de Évora, D. João de Aboim, mordomo-mor, Estêvão Eanes, chanceler, D. Nuno Martins, meirinho-mor, mestre Tomé, tesoureiro de Braga e já antes nomeado procurador do rei junto ao papa, Frei Afonso Peres Farinha, Estêvão Pires de Rates, Martim Dade, num total de trinta e cinco personalidades, todas elas afectas ao monarca e a ele ligadas pela carreira e pelas benesses recebidas, estes corregedores pouco adiantarão na solução do problema com a clerezia. p. 322.

não se tinha consolidado21.

Com a concessão de forais, transformou os habitantes dos Concelhos em importantes aliados. Por causa do apoio que recebeu do povo, permitiu a participação dos representantes dos Concelhos nas Cortes, instituiu feiras e as Inquirições. Foi, sem dúvida, um administrador que se preocupou em criar condições para transformar o reino em uma grande monarquia, forte, centralizada e independente.

Tais acções demonstram que esse monarca definiu os elementos necessários para a formação de um Estado, pois, como afirma a historiadora Maria Helena da Cruz Coelho22, com base em um dos elementos pinçados por Joseph Strayer23, é necessário certa permanência no espaço e no tempo para que uma comunidade se transforme num Estado. A ocupação de um mesmo território ao longo de múltiplas gerações criará condições para formar instituições políticas estáveis. A partir de um centralismo geográfico que tende a constituir-se no interior do espaço vivido, afirma- se então o domínio de um grupo, com um chefe, que intentará construir um sistema político próprio.

Um ideal político similar parecia já estar presente na concepção do monarca que, desde o início de sua administração, se preocupara em criar condições para o fortalecimento de seu poder e a conseqüente disciplinação da sociedade. Todavia, no processo de formação de instituições permanentes de governo e do Estado, os monarcas se inspiraram na estrutura monárquica e orgânica da Igreja, a qual contribuiu para isso, tanto no plano teórico quanto no político-adminitrativo24. E esta concepção se cristalizou, particularmente, nos dois reinados seguintes, pois esses monarcas preocuparam em dar ênfase aos elementos jurídicos que constituíram uma estrutura burocrática que melhor os auxiliasse na fiscalização do reino.