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2 ACCOUNTABILITY: PERSPECTIVAS TEÓRICO-CONCEITUAIS

2.3 ACCOUNTABILITY EDUCACIONAL: QUAL PRESTAÇÃO DE CONTAS?

elementos que se aproximam significativamente da que tem sido chamada de perspectiva democrática de accountability em educação, como propõe Afonso (2012), em oposição à lógica do pensamento único (AFONSO, 2009a), situada no contexto em que emerge o Estado- avaliador e a chamada New Public Management. Assim, uma perspectiva democrática de

accountability nos permite tanto verificar o contraste com os modelos que têm tomado a cena

nas políticas educacionais das últimas décadas quanto destacar a ideia de projeto no horizonte das possibilidades alternativas, como bem sinalizam as abordagens exploradas até aqui. Passemos, então, para referenciais do debate do tema no âmbito educacional.

2.3 ACCOUNTABILITY EDUCACIONAL: QUAL PRESTAÇÃO DE CONTAS?

Em suas reflexões sobre uma accountability democrática em educação, Afonso (2012) assinala não haver razões para abdicarmos do debate em torno da problemática da

accountability, haja vista estar sendo crescentemente filiada à logica do pensamento único,

neoconservador e neoliberal, conferindo-lhe “uma forma hierárquico-burocrática ou tecnocrática e gerencialista de prestação de contas que, pelo menos implicitamente, contém e dá ênfase a consequências e imputações negativas e estigmatizantes.” (p. 472, grifo do autor).

A defesa do autor reside, portanto, na necessidade de se buscar alternativas “com maior densidade teórico-conceitual e/ou pertinência política e educacional” (p. 477), nas quais seja evidenciada a efetiva preocupação de ordem ética, de justiça e democracia, posto que a

accountability não é “uma mera questão simbólica ou retórica que alguns discursos tendem a

neutralizar porque, implícita ou explicitamente, a associam a uma concepção restrita e ritualística de democracia formal [...]” (AFONSO, 2010, p. 168).

Assim, pensar em uma configuração alternativa de accountability educacional democraticamente avançada, requer que os pilares da avaliação, prestação de contas e responsabilização, conforme referido, sejam igualmente pensados numa abordagem democrática, “pressupondo relações e conexões abertas [...] e que se legitimam ou se sustentam em valores e princípios essenciais: a cidadania crítica, a participação, o

empowerment, o direito à informação, à transparência e à justiça, entre outros.” (AFONSO,

2012, p. 478).

Nessa perspectiva, a avaliação aqui referida tem por base a teoria democrática deliberativa e se volta ao desenvolvimento e atitudes políticas empenhadas na atenuação dos desequilíbrios de poder entre os cidadãos, conforme propõem Howe e Ashcraf (2005).

Segundo os autores, essa perspectiva de avaliação assenta-se nos princípios da inclusão (todos os grupos de interesse devem ser incluídos e envolvidos), do diálogo e de deliberação genuína.

Em relação ao pilar da prestação de contas, trata-se de garantir uma configuração democrática à informação e à justificação, o que requer a “mobilização das teorias críticas sobre os processos de informação e as práticas de argumentação.” (AFONSO, 2012, p. 479). Nessa mesma direção, o pilar da responsabilização põe em desafio “à ameaça ou imputação negativa de culpa sobre determinadas ações e seus supostos resultados” (p. 480), requerendo, por exemplo, que pensemos responsabilidade (que é partilhada) separada da culpa.

Esse posicionamento alternativo, que se situa no campo da construção democrática, localiza o debate a respeito da problemática da accountability educacional no contexto das políticas educacionais que vêm informando o desenvolvimento do Estado-Avaliador (NEAVE, 1988) e a emergência da nova gestão pública. É neste contexto, em que a definição prévia de objetivos e a quantificação dos resultados constituem aspectos centrais e que determinadas formas de accountability em educação evidenciam possuírem como fundamento os resultados dos testes estandardizados, processados no âmbito de avaliações externas (AFONSO, 2009). De acordo com Maroy e Voisin (2013), a implantação de sistemas de indicadores nacionais, na lógica dos Estados avaliadores, além da avaliação de resultados dos estabelecimentos e, indiretamente, os trabalhos dos professores, portam

[...] mecanismos mais ou menos instantâneos de prestação de contas [...] dispositivos de accountability [...] supostamente para garantir a gestão de todo o sistema educativo, orientar certas prioridades e controlar a qualidade. Inspirados pelas ideias da “new public management” [...] estes novos modos de regulação “pós- burocráticos” [...] surgiram a partir dos anos de 1980 [...] e se espalharam em um contexto socioeconômico globalizado [...] (p. 882).

O que está em causa com a implantação desses sistemas? Os objetivos declarados dão conta que em causa está a eficácia do ensino, a redução de desigualdades e o enfrentamento às diferenças de desempenho dos estudantes. Ante tais objetivos, cada vez mais a escola fica “sujeita à obrigação de resultados e de desempenho que são implantados por políticas educacionais que recebem vários nomes” (MAROY; VOISIN, 2013, p. 882), como

accountability dura, gestão orientada por resultados, entre outros, que, segundo os autores,

cobrem uma diversidade de arranjos institucionais e ferramentas, informando o que designam de “políticas de regulação por resultados.” (p. 883).

A diversidade de mecanismos institucionais e de ferramentas destinadas à implantação de políticas de accountability na atualidade é reconhecida, segundo autores, justamente em

face da natureza dessas ferramentas e da concepção de accountability incorporada por elas, motivo pelo qual propõe “distinguir formas novas das formas antigas de responsabilização das pessoas que trabalham com educação, das ferramentas a serviço da prestação e contas de tipo democrático versus as empresariais.” (MORAY; VOISIN, 2013, p. 883).

Quanto a dimensões comuns dessas políticas de regulação por resultados, Moroy e Vosian (2013) referem quatro linhas. A primeira é que tais políticas impulsionam um novo paradigma político, segundo o qual a escola deixa de ser concebida como instituição para ser um sistema de produção. Passa, portanto, a ser pensada num contexto de políticas que têm por meta a melhoria de resultados. “Trata-se de melhorar a qualidade, a organização, a coordenação, as ‘competências’ dos agentes [...] termos que podem ser utilizados em qualquer tipo de organização de produção [...]” (p. 884).

A segunda dimensão comum das políticas de regulação em curso é que os objetivos operacionais que lhes são característicos são expressos no formato de dados quantitativos, de padrões ou referências úteis à confrontação dos resultados obtidos. Na esteira desta característica comum vem a terceira: que as políticas de regulação por resultados têm como eixo central o uso de instrumentos de avaliação dos resultados e do desempenho dos estudantes, constituindo-se em um leque de elementos técnicos e institucionais que dinamizam diferentes orientações e concepções de avaliação e prestação e contas (MAROY; VOISIN, 2013).

Por fim, a quarta componente comum das políticas de regulação compreende as ferramentas de ação pública que tratam das consequências dessas avaliações e da prestação de contas. Segundo Maroy e Voisin (2013, p. 885), tais ferramentas “podem realmente ser diferentes e contribuir para construir uma accountability ‘dura’ versus ‘suave’ ou ‘reflexiva’, que envolve concepções do ator docente e do ato de ensinar que podem ser extremamente opostas.”

E o que há de diverso nessas mesmas políticas de regulação por resultados? Segundo os estudos de Maroy e Voisin (2013), a diversificação recai nas formas dessas políticas, seja em razão da influência de contextos e modelos transnacionais, seja por condições nacionais que possibilitam o surgimento de diferentes noções e políticas. Exemplo disso foi o surgimento, nos Estados Unidos, de um sistema de accountability dura, com alinhamento de avaliações e práticas profissionais com normas curriculares e de desempenho traçadas em nível central, além de atribuição de sanções para atores e instituições escolares que não atingirem os referenciais fixados de desempenho, conforme descreve Ravitch (2011). Também, em países da Europa Continental, o surgimento de sistemas de accountability suave

ou reflexiva. Esses sistemas “baseiam-se na suposição de engajamento e de reflexividade dos atores e num modelo de obrigação de resultados que façam preferencialmente apelo à autoavaliação e não à sanção externa.” (MAROY; VOISIN, 2013, p. 886).

Esses exemplos, ao ilustrarem a existência de formas diversificadas de como se apresentam as políticas de regulação por resultados, cujos instrumentos ali mobilizados são também diferentes, chamam atenção para o fato de as políticas de accountability apresentarem

[...] grande variedade associada à forma como os diferentes instrumentos estão ligados, ou mesmo alinhados em várias configurações articuladas por padrões, ferramentas de avaliação, relação de prestação de contas [..] [constituindo-se em] elementos chave para compreender os significados e as orientações sociopolíticas diversas dos sistemas de accountability que eles operacionalizam. (MAROY; VOISIN, 2013, p. 886).

Atentos às diferentes configurações de ferramentas, um exame de tipologias e de dispositivos de accountability em educação existente na literatura levou os autores a classificar os trabalhos que visam à categorização das políticas de accountabilty, em duas grandes categorias: tipologias que enfocam os instrumentos mobilizados para a implantação de políticas de prestação de contas (são mais recentes e, sobretudo, vindos dos Estados Unidos); tipologias baseadas em princípios normativos com base em diversas tradições da filosofia política – sem que deixem de implicar ferramentas de ação pública –, voltando-se “aos tipos de atores que têm legitimidade e poder para ‘pedir que se preste contas’ ou que têm a obrigação de prestar contas.” (MAROY; VOISIN, 2013, p. 887).

Sobre a primeira categoria – trabalhos que enfocam os instrumentos mobilizados para a implantação de políticas de prestação de contas –, os autores citam os trabalhos de Carnoy e Loeb (2002),15 que trazem uma distinção entre velhas e novas formas de accountability, “em que o ‘novo’ é baseado por um lado na mudança de escala da prestação de contas (o ator legítimo para pedir a prestação de contas passa do nível local/meso do distrito escolar ao nível do Estado) e, por outro, nos objetos as quais se refere esta demanda.” (MAROY; VOISIN, 2013, p. 887).

Assim, na chamada new accountability destacam-se dois conceitos: alinhamento e capacidade de construção. O primeiro “significa que, para se concentrar na melhoria dos resultados, os sistemas escolares precisam estabelecer padrões claros e alinhar o currículo e os

15 Neste trabalho, Carnoy e Loeb (2002) desenvolvem um índice para medir a força da accountability em 50

estados, tendo por base o uso de testes de alta performance para sancionar ou recompensar escolas. Também visam analisar a relação do índice relacionado com ganhos dos alunos em teste de matemática do National

Association of Educational Progress (NAEP), em 1996, bem como com as mudanças na retenção de estudantes

mecanismos de accountability a esses padrões.” (CARNOY; LOEB, 2002, p. 307, tradução nossa). O segundo conceito – capacidade de construção –, ganha força em face do argumento de que o alinhamento por si só pode melhorar a educação. É preciso “[...] melhorar a capacidade dos professores e administradores para oferecer uma educação melhor. A organização coerente, construída em torno de standards alinhados e avaliação, pode aumentar a capacidade para oferta de uma educação melhorada.” (p. 307, tradução nossa). Na síntese de Maroy e Voisin (2013, p. 887) a respeito da new accountability:

Não se trata mais somente de prestar contas sobre “inpus” (recursos, meios) e sobre processos (ensino, aprendizado), mas também e sobretudo sobre “outputs”: sistemas de ensino, seus resultados. Entretanto, não são somente os resultados dos alunos que são medidos, mas, por meio deles, o desempenho dos estabelecimentos e do sistema educacional como um todo.16

Relativamente à segunda categoria de trabalhos, o que está em pauta são os princípios normativos que subjazem a relação de prestação de contas. Em torno da tipologia assente nessa categoria, Kogan (apud MAROY; VOISIN, 2013, p. 888) propõe a seguinte definição de accountability: “uma condição na qual os detentores de funções individuais são passíveis de revisão e aplicação de sanções, se suas ações não conseguem satisfazer as pessoas com quem eles estão em uma relação de prestação de contas.” De acordo com Maroy e Voisin (2013), tal definição pode ser qualificada como limitada, já que não há uma delimitação precisa de consequências da prestação de contas e comporta uma relação formal entre atores.

Como modelos normativos de accountability inscritos nessa segunda categoria, os autores destacam os apontados por Kogan (1988) – controle público hierárquico, profissional e consumerista – e por Leithwood e Earl (2000) – profissional, empresarial, mercado/competição e descentralização de poderes de decisão, chamando a atenção para o fato de serem tipologias com o claro limite empírico, qual seja: “não levam em conta as principais características das políticas chamadas de ‘new accountability’, que são baseadas em diversas ferramentas de ‘avaliação de resultados’.” (MAROY; VOISIN, 2013, p. 890). Para estes autores, essas tipologias não são suficientes para explicitar as transformações nas formas de accountability incidentes na educação, diferente do que oportuniza a abordagem por instrumentos. Consoante defendem

16 Há autores cujas atenções recaem mais especificamente sobre o desempenho dos estudantes e do sistema por

diferentes atores. Tal diferenciação de políticas de accountabiity, em face dos sistemas norte-americanos, tem em conta o nível de emissões de sanções e incentivos mobilizados para obrigar as escolas e professores a atingirem metas. Situam-se nesse contexto as formas de accountability dura (high stake) e accountability fraca

[...] o sentido da prestação de contas para o Estado ou autoridades administrativas, profissionais ou aos usuários e à comunidade local se transforma de acordo com o tipo de ferramenta utilizado [...] É a mudança de ferramentas que altera o sentido de um “controle! Público, de uma prestação de “contas”. (MAROY; VOISIN, 2013, p. 897).

Do exposto, além de assinalar a possibilidade de as políticas de accountability assumirem formas diferentes, a depender de fatores como as realidades nacionais, parece-me importante sublinhar o fato de determinada forma corrente estar marcando a regulação dos sistemas educacionais e nela estar compreendida, igualmente, determinada política de

accountability.

Seguindo-se a linha de reflexão proposta por Maroy e Voisin (2013), vemos que as ferramentas que têm sido prioritariamente utilizadas pelo Poder Público em face dessa determinada política compreendem a avaliação de desempenho e a prestação de contas tendente a uma forte pressão sobre atores e sistemas escolares. A forte inspiração na New

Public Management, sob o argumento da orientação para prioridades e a qualidade da

educação, toma a cena, inclusive no Brasil, conforme abordo na próxima seção. Pressupostos de formas alternativas, pautadas em princípios democráticos, seguem inspirando e reforçando o campo das desafiantes possibilidades de accountability e, portanto, do pilar da prestação de contas.

3 POLÍTICAS DE ACCOUNTABILITY EDUCACIONAL NO BRASIL E A

PERSPECTIVA GERENCIALISTA DE PRESTAÇÃO DE CONTAS

Nesta seção, busco, inicialmente, situar a perspectiva da accountability e o pilar da prestação de contas nas proposições da New Public Management. Na sequência, enfoco as mudanças estruturais da administração pública, o papel do Estado e a função da sociedade no contexto dessas mudanças, bem como especificidades da abordagem de prestação de contas presentes na proposição de reforma do aparelho de Estado brasileiro, ocorrida na década de 90. Por essa via, sigo as reflexões voltando-me a características da forma como esse movimento de reforma incidiu na educação, estruturando medidas de prestação de contas em um contexto de emergência de determinada política de accountability educacional, na qual sobressai a meta da produção de resultados.