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2 ACCOUNTABILITY: PERSPECTIVAS TEÓRICO-CONCEITUAIS

2.1 NOTAS SOBRE O CONCEITO DE ACCOUNTABILITY E CONTEXTOS

O conceito de accountability, presente nos anos de 1960, nos Estados Unidos, e mais

discutido em meados da década de 1970, emerge atrelado a discussões da administração

pública diante da crise do sistema burocrático e da necessidade da participação da sociedade nos assuntos públicos. Atualmente, de acordo com Abrucio e Loureiro (2004), o tema vem sendo analisado no contexto do movimento de reforma do Estado, verificado no final da década de 70 e início de 80, nos países capitalistas desenvolvidos. Tal movimento decorreu da crise de Estado caracterizada pela “escassez de recursos públicos, enfraquecimento do poder estatal e de avanço de uma ideologia privatizante.” (ABRUCIO, 2006, p. 178).

Todavia, percebe-se uma grande dificuldade em compreender o significado do conceito accountability, até mesmo no seu país de origem. Estudos realizados por Pinho e Sacramento (2009, p. 1348) levam os autores a concluir que o significado do termo, muitas vezes representado pelos sinônimos account ou accountable – expostos em dicionários da língua inglesa, “[...] traz implicitamente a responsabilização pessoal pelos atos praticados e explicitamente a exigente prontidão para a prestação de contas, seja no âmbito público ou no privado.”

Relativamente à literatura brasileira, Campos (1990) assinala não haver um conceito e uma única tradução definidos para o português. Para a autora, em virtude do espectro de

significados existentes do termo inglês, o que se encontra são algumas diferentes traduções de autores, cujos termos representados se aproximam no significado.

Refletindo sobre os efeitos da indigência política no país e sua relação com o interesse da sociedade pela accountability no serviço público, Campos (1990) entende que uma tradução do termo para a língua portuguesa seria desprovida de significado, já que não faz parte, efetivamente, da realidade brasileira.

Também Afonso (2009a) reitera que, “embora seja traduzido frequentemente como sinônimo de prestação de contas, o vocábulo accountability apresenta algumas instabilidades semânticas por que corresponde de facto a um conceito com significados e amplitudes plurais” (p. 58), havendo dessa forma diversas dimensões, porém o que se percebe é uma estrutura comum nas múltiplas perspectivas de accountability.

De outro modo, Mota (2006) adverte que a indefinição que cobre o conceito pode obscurecer o debate acerca dele em discussões na seara política. Segundo argumenta o autor:

Muitos autores já se referiram a este problema [da indefinição], mas nenhum ofereceu um conceito amplamente aceito. É por isso que a palavra aparece sempre adjetivada: horizontal, vertical, social, societal, econômica, política. Se, por um lado, há autores que adotam uma definição que não possui elementos fundamentais permanentes, há outros que restringem a sua amplitude em benefício da sua instrumentalização. (p. 35).

Se em nível semântico o termo segue situado nesse quadro de indefinição, no domínio da prática, de acordo com Schedler (1999), a accountability tornou-se um termo tendência que expressa inquietações quanto ao controle e supervisão no exercício do poder. Afinal, como um termo da moda, é expressão da preocupação contínua com a supervisão, vigilância e restrições institucionais na lida com o poder. Conforme sublinha o autor, a manutenção do poder sob controle é, desde muito, uma preocupação de filosóficos antigos e pensadores políticos, também empenhados em entender como evitar seu abuso, como sujeitá-lo a determinados procedimentos e regras de conduta.

Todavia, para Schedler (1999), o real significado do termo permanece limitado, posto não haver clareza a respeito dos limites semânticos e compreensão da estrutura interna da

accountibility. Haja vista ser uma novidade, o autor entende que o conceito permanece

subexplorado, embora em muitos lugares onde tem ocorrido alguma tradução, “instituições financeiras internacionais, líderes de partidos, atividades de base, jornalistas e cientistas políticos descobriram as bênçãos e aderem à causa da ‘accountability pública’.” (SCHEDLER, 1999, p. 13, tradução nossa).

Em geral, a expressão é mobilizada para se referir à obrigação e à capacidade de alguém ou de uma instituição prestar contas a outro alguém ou instituição. Decorre, pois, dizer que “quando uma instituição age em nome de uma determinada instituição, age em nome de um conjunto de pessoas, e essa instituição pode ser, de alguma maneira, responsabilizada, punida ou recompensada por essas ações” (MARQUES, 2015, p. 45), posto ser accountable. Nessa perspectiva, a accountability ultrapassa a esfera das explicações ou justificativas apresentadas com o fim de sustentar escolhas, uma vez que, para além da prestação de contas, “implica que ações sejam passíveis de recompensa ou punição por parte dos representados.” (p. 45).

Fearon (1999), diferentemente da preocupação assinalada por Mota (2006), entende que o conceito de accountabilty não é por si só problemático, ou, ao menos, não deveria ser. Conforme exemplifica, uma pessoa A é accountable para uma pessoa B se duas condições forem atendidas, quais sejam: há o entendimento de que A é obrigado a agir, de alguma forma, em nome de B; e B é capacitado, por força de regras, para sancionar ou recompensar A pelo seu desempenho ou performance nas atividades. O mesmo se pode dizer, então, em relação ao governo: ele é accountable “não apenas quando os cidadãos conseguem, não diferenciar governos representativos de governos não representativos, mas também são capazes de puni-los ou recompensá-los, de acordo com seus desempenhos.” (MARQUES, 2015, p. 45).

Para Akutsu (2002), o termo accountabitiliy engloba o dever de transparência, de publicação de atos públicos e de propiciar a participação da população nos processos das tomadas de decisões. A esses deveres, Machado (2012) incorpora a possibilidade de sanção.

De acordo com Lavalle e Isunza Vera (2011), a depender do país e do setor social, o conceito assume valores fracos ou fortes. Enquanto para alguns se trata das informações dadas pelos governantes aos governados, para outros accountability “é uma noção que implica certos princípios de responsabilidade culturalmente vigentes, junto com uma institucionalidade [...] pela qual há direitos e obrigações de quem toma decisões e fala em nome de outros.” (p. 51).

Etimologicamente, prosseguem os autores, accountability quer dizer controlar (avaliar, julgar ou verificar) algo coletivamente, a partir da ação de computar. “O campo de significados em que se desenvolve a ‘accountability’ se forma com os ideais de ‘contar’ e ‘enumerar’, tanto como de ‘ajustar’ e ‘justificar’.” (LAVALLE; ISUNZA VERA, 2011, p.

52).4 Assim posto, no plano conceitual a accountability “é uma modalidade de controle social altamente institucionalizada, que supõe algum grau de obrigação de informar e justificar, assim como a presença de mecanismos de sanção [...]” (p. 52).

Segundo Campos (1990), em trabalho pioneiro da accountability na administração pública brasileira, estudos que utilizam o termo accountability enfocam fundamentalmente a capacidade de responsabilização das burocracias estatais, suscitada, pela autora, a existência “de um elo entre accountability e a necessidade de proteger o cidadão da má conduta burocrática.” (p. 3). Para Campos, o grau de accountability de uma burocracia depende: das características políticas institucionais da sociedade; de valores e costumes partilhados em nível cultural; e da história da formação da burocracia estatal. Na esteira desse entendimento, a autora defende que a accountability é mais que questão de desenvolvimento organizacional ou de reforma administrativa, posição que coaduna com a de Medeiros, Crantschaninvov e Silva (2013, p. 748), para quem a realização da accountability “[...] depende da capacidade dos cidadãos, já que a indiferença da população em relação à política pode inviabilizar o processo de accountability e da construção de mecanismos institucionais para garantir o controle público das ações dos governantes.”

De acordo com Abrucio e Loureiro (2004, p. 75), a literatura sobre accountability trata, normalmente, “do controle dos atos dos governantes em relação ao programa de governo, à corrupção ou à preservação de direitos fundamentais dos cidadãos”, entendendo que o Estado deve ser regido por regras que limitam seu campo de atuação, tendo em vista os direitos da sociedade civil, tanto individuais quanto coletivos. Para O’ Donnell (1999), há direitos que não podem ser tomados por nenhum poder, nem mesmo pelo poder do Estado.

Atenta ao caráter de obrigação embutido no conceito de accountability, a ideia de Campos (1990) tem em conta que, quando esta obrigação “não é sentida subjetivamente (da pessoa sobre si mesma) pelo detentor da função pública, deverá ser exigida “de fora para dentro”; deverá ser compelida [...]”5 Consequentemente, argumenta a autora, teremos de questionar quem seria reconhecidamente capaz de compelir para esse exercício da

accountability, o que a leva assinalar questões, como representação e legitimidade do poder,

que, portanto, tocam valores atinentes ao governo democrático. Desse modo, decorrente do

4 Contar para enumerar, sejam coisas com qualidades homogêneas, seja eventos e sucessos. Mas, contar também

diz respeito a ajustar contas, avaliar. E, estando nesse papel de contar, também temos de justificar os resultados (ISUNZA VERA, 2006 apud LAVALLE; ISUNZA VERA, 2011).

5 Segundo a autora, ela recorre a explicações de Frederich Mosher (MOSHER, F. Democracy and public service.

New York: Oxford University, 1967). Para Mosher, quando há falhas na execução de diretrizes legítimas, a falta de controle e de penalidades aplicáveis ao serviço público deixa os cidadãos a mercê dos riscos da burocracia, enfraquecendo o ideal democrático.

entendimento de que a accountability é uma questão de democracia. “Quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accountability. E a accountability governamental tende a acompanhar o avanço de valores democráticos, tais como igualdade, dignidade humana, participação e representatividade.” (CAMPOS, 1990, p. 4).

Essa perspectiva de accountability distancia-se daquela que a situa como uma questão de mecanismos burocráticos de controle que, embora necessário, não é suficiente para garantir um serviço público de acordo com padrões de governo democrático, daí a afirmação de Campos (1990) de que “um controle efetivo é consequência da cidadania organizada, uma sociedade desmobilizada não será capaz de garantir accountability”, sendo a consciência popular a “primeira pré-condição para uma democracia verdadeiramente participativa e, portanto, para a accountability do serviço público” (p. 6),6 com a qual é possível se prevenir do mau uso do poder (CAMERON, 2004).

Schedler (1999) refere a accountability como atributo fundamental para que ocorra a democracia, porém reconhece que a sua consolidação nas novas democracias possa ser obstaculizada pela corrupção generalizada. Conforme assinalado, para o autor o termo está intimamente relacionado às formas de controle do poder.

Também relativamente ao debate sobre representação e qualidade democrática, especialmente quanto ao potencial de responsabilização em diferentes arranjos institucionais, há o enfoque de O’Donnell (1998), para quem a accountability diz respeito à obrigação de resposta e de justificação de escolhas, pelos governantes, aos cidadãos.

Ainda a respeito da correlação accountability e democracia, Abrucio e Loureiro (2004) sintetizam modelos contemporâneos de accountability democrática, associando-os a instrumentos e condições que seriam conducentes à democracia do poder público.

Quadro 1 – Correlação entre formas de accountability democrática, instrumentos e condições Formas de

accountability

Instrumentos Condições

Processo Eleitoral

• Sistema eleitoral e partidário. • Debates e formas de disseminação

da informação.

• Regras de financiamento de campanhas.

• Justiça eleitoral.

• Direitos políticos básicos de associação, de votar e ser votado. • Pluralismo de ideias (crenças

ideológicas e religiosas).

• Imprensa livre e possibilidade de se obter diversidade de informações. • Independência e controle mútuo entre

os Poderes.

6 Raupp (2011, p. 50) corrobora esse entendimento ao creditar fragilidade ao conceito de accountability no

Brasil, posto que a opção das pessoas por esperar que o Estado defenda e proteja os interesses difere de uma atuação voltada à organização das pessoas para agregação de seus próprios interesses ou mesmo para fazer face ao poder do Estado.

Controle institucional durante o mandato

• Controle parlamentar (controles mútuos entre os Poderes, CPI, arguição e aprovação de altos dirigentes públicos, fiscalização orçamentária e de desempenho das agências governamentais,

audiências públicas etc.). • Controle judicial (controle da

constitucionalidade, ações civis públicas, garantia dos direitos fundamentais etc.).

• Controle administrativo-

procedimental (Tribunal de Contas e/ou Auditoria Financeira) • Controle do desempenho dos

programas governamentais • Controle social (Conselho de

usuários dos serviços públicos, plebiscito, orçamento participativo etc.).

• Transparência e fidedignidade das informações públicas.

• Burocracia regida pelo princípio do mérito (meritocracia.)

• Predomínio do império da lei. • Existência de mecanismos

institucionalizados que garantam a participação e o controle da sociedade sobre o poder público.

• Criação de instâncias que busquem o maior compartilhamento possível das decisões (“consensualismo”).

Regras estatais intertemporais

• Garantias de direitos básicos pela Constituição (cláusulas pétreas). • Segurança contratual individual e

coletiva.

• Limitação legal do poder dos administradores públicos. • Acesso prioritário aos cargos

administrativos por concursos ou equivalentes.

• Mecanismos de restrição orçamentária.

• Defesa de direitos intergeracionais.

• Predomínio do império da lei. • Eficácia dos mecanismos judiciais. • Definições de assuntos e regras que

valham para o Estado,

independentemente dos governos de ocasião.

Fonte: Abrucio e Loureiro (2004).

De modo geral, podemos dizer que, na perspectiva aqui referida, a prática do exercício permanente de accountability teria o potencial de elevar a governança à medida que se amplia a confiança entre Estado e sociedade. Ou seja, de um lado a sociedade consciente e organizada em torno da consecução (participação, controle e avaliação) pelo poder público; de outro, o Estado, disponibilizando informações completas e transparentes, reforçando a prestação de contas e legitimando as políticas públicas. Significa dizer que ambos – Estado e sociedade – assumem responsabilidade sobre o público. Nesse sentido, a accountability pode ser considerada uma forma de controle social, pois sujeita o poder público a estruturas formais, devendo o Estado prestar contas e tornar transparentes suas ações.

Todavia, conforme comentam Isunza Vera e Lavalle (2010), em debate sobre inovação democrática, a relação entre participação e controle social é ambígua e, “em contextos em que a primeira esteve fortemente associada às lutas pela democratização, implica certa controvérsia” (p. 23, tradução nossa). Conforme argumentam os autores, as experiências de inovação democrática foram, predominantemente, desenvolvidas sob a semântica da

participação (direta, deliberativa, popular, cidadã), todavia, a vertiginosa difusão da linguagem do controle social tem se sobreposto a ela, disputando parcialmente o próprio sentido da inovação democrática. Neste contexto, ganham lugar expressões, como governança, transparência, controles democráticos e accountabilty (vertical, corporativa, inversa, retrospectiva, prospectiva, eleitoral, social e societal e outras), “cujos efeitos são sempre mais restritivos em relação à carga normativa inerente à ideia de ‘participação’.” (p. 20, tradução nossa). Estaria, então, a linguagem do controle social suplantando ou complementando a semântica mais tradicional da participação? Na síntese dos autores, importa lembrar que:

Termos usuais na linguagem do controle social – “governança”, “transparência”, “controles democráticos” e “accountability” – [...] tornaram-se frequentes não só nos debates da teoria democrática, mas também na linguagem da segunda onda de reformas impulsionada por agências multilaterais e por diversas instituições nos círculos internacionais de formulação de políticas públicas. A coincidência semântica no uso destes e outros vocábulos [...] pode suscitar [...] suspeita e desconfiança a ponto de ser qualificada como uma “confluência perversa” [...]. (LAVALLE; ISUNZA VERA, 2010, p. 23, tradução nossa).

Na perspectiva democrática, os autores situam a accountability cidadã (ativada por cidadãos) ou accountability societal (ativada por atores coletivos) como modalidade de controle social particularmente exigente.7 Pontuam, contudo, que enquanto a accountability supõe a existência de controle, a recíproca não é verdadeira, pois nem toda modalidade de controle contempla mecanismos estáveis e reconhecidos de responsividade e sanção consubstanciáveis, na teoria democrática, à ideia accountability.

Nesta direção, figuram perspectivas menos rigorosas de accountability, como sendo, de modo geral, um processo de responsabilizar os atores por suas ações, que implica obrigação de resposta, geralmente por meio da submissão das ações “a juízo com base em

standard específico de conduta e funcionamento.” (FOX, 2006, p. 36, tradução nossa).

Todavia, enquanto para uns, esse entendimento dá conta da ideia de accountability, outros, preferem uma definição mais rigorosa, com corretivos e/ou sanções por violações cometidas. Por isso, assinala Fox (2006), a eleição de uma definição determina, em grande medida, o que se assume como accountability.

Ao investir numa noção ampla de política de accountability, o autor examina algumas opções conceituais explícitas sobre o termo, distinguindo, por um lado, a institucionalmente adotada – accountability política –, entendida como “os mecanismos formais pelos quais as

autoridades eleitas adquirem responsabilidade por suas decisões e desempenho” (FOX, 2006, p. 36, tradução nossa) e, por um lado, a mais ampla e multidimensional política de

accountability, que se refere à “gama de esferas públicas dentro das quais os atores

determinam se responsabilizam os detentores de poder por suas decisões, e de que maneira.” (p. 37, tradução nossa).

Também Prezeworski, Stokes e Manin (1999), tratam de definição de accountability no contexto do debate da teoria democrática, bem como sobre qualidade, representatividade e

accountability, tendo em vista a questão da representatividade das instituições democráticas.

Nessa direção, examinam-se os mecanismos accountability característicos dos sistemas democráticos que são suficientes para induzir os representantes a agirem no melhor interesse dos representados. Conforme anotam, em debate sobre eleições e representação, mesmo que sejam incapazes de controlar os seus governos, os cidadãos poderão fazê-lo se puderem antecipar ao governante que ele terá que prestar contas por suas ações. Decorre dizer que um governo será “accountable” se os eleitores puderem discernir se ele age em seu interesse e, então, sancioná-los adequadamente, de modo que aqueles que atuam no melhor interesse dos cidadãos ganhem a reeleição e aqueles que não aturem, percam-na. Nessa linha de entendimento, a accountability ocorre quando os eleitores votam para reter um governante apenas quando ele atua em seu melhor interesse e quando o governante opta por realizar as políticas necessárias para ser reeleito.

No Brasil, o tema da accountability esteve relacionado à onda de democratização que marcou o final da década de 1980. Considerando a participação da sociedade civil tanto na elaboração de políticas quanto no controle do poder público, a Constituição Federal de 1988 apresentou, dentre os seus princípios e diretrizes, “a participação da população por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.” (Art. 204). Segundo Abrucio e Loureiro (2004, p. 2), para entender o efeito da

accountability no Brasil é necessário antes entender o contexto democrático em que ela se

insere.

A partir da discussão da teoria democrática desde o pós-guerra, a definição de democracia pode ser sinteticamente entendida pela busca de três ideais, tomados como princípios orientadores. Primeiro: o governo deve emanar da vontade popular, que se torna a principal fonte da soberania – trata-se da ideia de autogoverno, mola mestre do regime democrático. Segundo: os governantes devem prestar contas ao povo, responsabilizando-se perante ele, pelos atos ou omissões cometidos no exercício do poder. E terceiro: o Estado deve ser regido por regras que delimitem seu campo de atuação em prol da defesa de direitos básicos dos cidadãos, tanto individuais como coletivos.

Na esteira dos acontecimentos que marcaram a década de 1990, destaca-se a emergência, no país, dos pressupostos da New Public Management,8 que deram lugar a mecanismos de accountability. Conforme assinala Bresser-Pereira (1998, p. 34), a nova gestão pública melhorará a governabilidade à medida que aprofunda os mecanismos democráticos de accountability, já que a responsabilização da administração pública perante os cidadãos é aumentada. Ou seja, consoante a perspectiva gerencial de accountability e os pressupostos que lhe dão base, sobressai a lógica de mercado focalizada na responsabilização dos agentes públicos pelos resultados, mediante a “introdução de mecanismos de avaliação, de desempenho individual e de resultados organizacionais, atrelados uns aos outros em indicações de qualidade e de produtividade.” (ABRUCIO, 1997, p. 37).

De acordo com Afonso, grande parte dos discursos que informam o viés político- ideológico da perspectiva gerencial, frequentemente confere à accountability

[...] uma forma hierárquico-burocrática ou tecnocrata e gerencialista de prestação de

contas que, pelo menos implicitamente, contém e dá ênfase a consequências ou

imputações negativas e estigmatizantes, as quais, não raras vezes, consubstanciam formas autoritárias de responsabilização das instituições, organizações e indivíduos. (AFONSO, 2012, p. 472).

Assim, considerando essa perspectiva de accountability e o contraste que se estabelece em comparação com formas democráticas, podemos dizer que o tema constitui uma questão complexa, posto implicar “[...] o equilíbrio entre normas e as responsabilidades concorrentes, dentro de uma trama complicada de controles externos, padrões profissionais, preferências dos cidadãos, questões morais, direito público e, enfim interesse público.” (DENHARDT, 2011, p. 267). Também, e talvez principalmente, porque como mecanismo operado em diferentes contextos e que pode ser (como de fato é) dinamizado em razão de diferentes fins, evidencia que estamos ante um conceito em disputa. Conforme anota Borges (2004, p.1),

[...] setores sociais, vinculados aos movimentos sociais, cobram desse conceito um matiz mais crítico, vinculando-o não a mecanismos de mercado, mas sim a dispositivos de participação da sociedade civil na esfera da produção, execução e avaliação de políticas. Já setores mais conservadores, vinculam-no a uma perspectiva econômica de eficiência/eficácia das políticas.

Na esteira dessa perspectiva, tendo em vista captar a diversidade de graus em que o