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ACESSO À JUSTIÇA: INTRODUÇÃO

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 41-43)

“Não há solução legitimadora para o sistema judicial fora da ampliação da base material de cognição das disputas”, seja uma expansão ditada por novos paradigmas de direito, seja orientada para a expansão da estrutura organizacional, para processamento de forma diferenciada das demandas sociais, tanto em termos qualitativos como quantitativos93.

Era absolutamente necessária a digressão feita no capítulo anterior, numa breve passagem dos contextos sócio-políticos e jurídicos em que a atividade jurisdicional desempenhou seu mister no evolver dos tempos. Da democracia liberal ao Estado pós- social a mudança dos paradigmas foi sensível, reclamando do cientista processual nova compreensão de seu objeto de estudos.

É inegável, portanto, que a mudança de expectativas com relação ao método estatal de solução de litígios (se é que podemos dizer ser esta ainda sua função primordial) deve ser vista tendo como pano de fundo todo o arcabouço mencionado nos itens anteriores. E é precisamente este contexto que dá à idéia de acesso à justiça inteiramente novo colorido, e é este o principal motivo de termos nos ocupado da evolução do papel da função jurisdicional.

De fato, pensarmos o acesso à justiça no âmbito dos postulados liberais individualistas seria prestigiar sua faceta garantista, especialmente a garantia do direito de

ação, como acesso ao Judiciário para preservação das liberdades públicas.

Pensar o tema à luz da democracia social seria enxergar o acesso à jurisdição como a viabilização da prestação de um serviço público de caráter essencial, mais uma dentre as inúmeras prestações sociais que marcam esta configuração.

A análise da evolução do conceito teórico de acesso à justiça em confronto com as características do Estado Liberal e do Welfare State é ressaltada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth em obra que se constitui leitura básica e obrigatória a respeito do tema94.

A formatação fundada no postulado do laissez-faire compreendia a justiça como qualquer outro bem, acessível aos que pudessem enfrentar seus custos. Cuidava-se, pois,

93RIBEIRO, Paulo de Tarso Ramos. Direito e processo: razão burocrática e acesso à justiça, cit., p. 128. 94CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. port. de Northfleet, Ellen Gracie. Porto

do acesso formal, porém não efetivo, ao que correspondia a concepção formal de igualdade. Os estudos eram dogmáticos e indiferentes às dificuldades reais de acesso efetivo à justiça.

À emersão dos direitos sociais e superação da concepção individualista, correspondeu a preocupação em assegurar-se ao indivíduo a real possibilidade de acercar- se do Judiciário para garantia dos direitos que, à profusão, eram reconhecidos em momento de efervescência do estabelecimento de prestações positivas do Estado como objeto de direitos dos cidadãos.

“Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso à justiça tenha ganho particular atenção na medida em que as reformas do welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos [...] De fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação”95.

Reconhecem os autores o acesso à justiça como o mais básico dos direitos humanos de um moderno sistema jurídico que tenha a pretensão de não apenas proclamar, mas de fato garanti-los. Isto é, só existe cidadania se houver a possibilidade de reivindicar direitos reconhecidos constitucionalmente, e o primeiro pressuposto para tanto é que esteja assegurado o “direito de reivindicar os direitos”96.

Analisar a relevância do acesso à justiça no contexto que já traçamos, do Estado pós-social, marcado pela multipolaridade dos conflitos; fragmentação dos centros de decisão e de poder; desestruturação do direito; deslocamento do eixo decisório do Estado para a sociedade; incremento dos movimentos sociais e ascensão de novos atores, compreensão do Judiciário como órgão da sociedade civil; etc., é óbvio que reclama espírito aberto para alçar novos vôos; reler velhos conceitos e engendrar novas concepções. Natural que passemos por notas das feições garantista e prestacional97 do exercício jurisdicional. Seria iníquo e incompleto falar em acesso à justiça e não abordar aspectos do

95CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça, cit., p. 12.

96CARVALHO, André de; RIBEIRO, Marcus Vinicius. Direitos humanos, inclusão jurídica e o papel da

assistência jurídica no Brasil do século XXI, cit., p. 32.

97“A implementação do direito à assistência jurídica passa pela reflexão sobre a concretização dos direitos

prestacionais, que exigem prestações positivas do Estado. A doutrina comumente denomina tais direitos de direitos humanos sociais, que engloba o conjunto de direitos destinados diretamente à promoção de condições materiais dignas do ser humano. Por isto são chamados de direitos prestacionais, ou seja, aqueles cujo conteúdo exige ações concretas (legislativas e administrativas) do Estado” (CARVALHO, André de; RIBEIRO, Marcus Vinicius. Direitos humanos, inclusão jurídica e o papel da assistência jurídica no Brasil do século XXI, cit., p. 39).

direito de ação ou do princípio da inafastabilidade, ou mesmo sem recordar que a

atividade jurisdicional é uma prestação de serviço de relevante cunho social, e até mesmo averiguar seu papel na implementação das políticas públicas típicas à realização dos

direitos sociais. Tudo isto deve-se procurar fazer, mas trazendo realce ao quanto

mencionado no parágrafo anterior.

A propósito convém ressaltar que em nosso sentir dois são os temas fundamentais da ciência processual na sociedade pós-social contemporânea: acesso à justiça e

efetividade processual98. Evidente que estão relacionados, entrelaçados por estreita relação

de causa e efeito. Procuraremos passar em revista estes temas, ainda que de forma breve, para nos contermos aos objetivos do trabalho.

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 41-43)