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IGUALDADE PERANTE A LEI; ISONOMIA MATERIAL E IGUALDADE

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 70-75)

Sem maiores dificuldades compreendemos que os enunciados que constituem o título do presente capítulo representam conceitos interligados. A rigor são facetas da mesma realidade. O segundo representa a mais exata compreensão do primeiro; e o terceiro a incidência dos dois primeiros especificamente no direito processual.

É óbvio que não se comportaria nos limites de nosso estudo aprofundamentos quanto aos limites, em geral, do princípio da isonomia, pois que a extensão de seus desdobramentos no fenômeno jurídico vai bem além do que uma única obra poderia conter, que dirá um capítulo. Em verdade traçaremos as linhas daquilo que interessa à ordem de considerações que pretendemos seguir, que se situa precisamente nos efeitos que a disparidade econômica das partes pode causar no fenômeno processual. É este precisamente o corte metodológico.

Algumas idéias de caráter geral são, entretanto, oportunas. Falamos precisamente do escólio de José Souto Maior Borges, que defende a possibilidade de falarmos em

hierarquização substancial de princípios constitucionais, assumindo alguns posição de

proeminência, indicando-se a isonomia como um destes princípios que constituem viga mestra de toda construção jurídica pátria172.

Segue o mesmo autor lecionando que o princípio da isonomia comporta tríplice perfil constitucional, compreendendo: a) igualdade perante a lei; b) igualdade na lei e c) vedação de distinções de qualquer natureza. Alcunha sua configuração na Lei Maior pátria de “estranha vocação constitucional” pois que é simultaneamente norma definidora de um

direito; um princípio (mais eminente até do que outros princípios constitucionais) e garantia, no sentido de que “é ela ainda um instrumento constitucional de preservação de

si própria”, e resume: “a igualdade garante a igualdade”173.

172BORGES, José Souto Maior. Significação do princípio da isonomia na Constituição de 1988. Revista

Trimestral de Direito Público, São Paulo, v. 15, p. 29-34, 1996. O referido autor aponta como fundamentos

desta proeminência a insusceptibilidade de reforma e a própria localização topográfica da igualdade, concluindo que “de suas próprias dobras portanto, a CF já impõe ao exegeta o reconhecimento desse privilégio axiológico atribuído à isonomia” (Significação do princípio da isonomia na Constituição de 1988, cit., p. 30).

Explica-se então sua assertiva: se todos são iguais formalmente perante a lei, no sentido de que a lei a todos se aplica, porém o conteúdo desta mesma lei a todos aplicável não respeita a isonomia, teríamos a violação da igualdade material (pela aplicação a todos da lei injusta por desigualadora); de outra banda, a lei isonômica que a todos não se aplicasse, seria isonômica apenas em relação àqueles aos quais se aplica, isto é, iguais materialmente serão apenas os beneficiários da aplicação da lei, de modo que haveria violação à igualdade formal.

Conclui com as seguintes palavras:

“Torna-se manifesto por essa via que a CF, no seu art. 5º, estrutura a isonomia de modo refinadamente complexo. Primeiro como um direito à reta aplicação da lei (princípio formal). Segundo, como um princípio cujo conteúdo (não a mera forma de sua aplicação portanto) é inegavelmente amplo e até inexceptuável, pela vedação de distinções de qualquer natureza (princípio material e pessoal). Terceiro porque ela regula também os meios assecuratórios desse direito (a lei e outros atos normativos, como as sentenças judiciais)”174.

Ao Judiciário cabe assegurar o primado da Constituição, de modo que não lhe é possível invocar eventual falta de lei expressa como justificativa para omitir-se frente a uma situação de flagrante desigualdade175.

Em subitem próprio teceremos algumas considerações justamente sobre a postura ativa exigível do juiz na condução do processo no sentido de restaurar a igualdade entre os litigantes, haja ou não lei passível de no caso promover tal correção.

A tão famigerada questão da isonomia material tem raiz no reconhecimento de que “o próprio enunciado do princípio – ‘todos são iguais perante a lei’ – nos dá conta de sua inconsistência, visto que a lei é uma abstração, ao passo que as relações sociais são reais”176.

174BORGES, José Souto Maior. Significação do princípio da isonomia na Constituição de 1988, cit., p. 33. 175BORGES, José Souto Maior. Significação do princípio da isonomia na Constituição de 1988, cit., p. 31. 176GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2008. p.

163. As considerações tecidas pelo autor são próprias ao tema que estudamos, visto que baseado na lição de Von Ihering, lembra que o comércio jurídico abstrai das pessoas, só conhece o dinheiro, o que faz deste o “verdadeiro apóstolo da igualdade. Os preconceitos sociais, todas as antíteses sociais, políticas, religiosas, nacionais, são impotentes contra ele”. Garante-se a todo homem, “quem quer que ele seja, contanto que saiba pagar, a certeza de poder satisfazer as necessidades de sua existência” (O direito posto e o direito

pressuposto, cit., p. 163). Nosso receio é justamente o de que o fenômeno processual adentre (se é que já

Nesta sede tornou-se clássica na literatura jurídica brasileira a obra de Celso Antônio Bandeira de Mello que, embora assaz citada, não pode ser desconsiderada, pena de incompletude do trabalho, além da reconhecida riqueza de suas concepções177.

Sintetizaremos apenas alguns pontos, para também não desviarmos por demais do foco. Segundo o referido autor, o discrímen que conviva harmonicamente com o princípio da isonomia depende basicamente de quatro pressupostos: a) que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto um só indivíduo; b) que as situações ou pessoas desequiparadas possuam características, traços nelas residentes, diferençados; c) que haja, abstratamente, correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico estabelecida e d) que o vínculo de correlação estabelecido no anterior item seja pertinente à luz dos valores constitucionalmente protegidos178. Óbvio é que cada um dos itens em questão é destrinchado pelo doutrinador, o que não se comporta nos propósitos de nosso estudo. Contudo, ressaltar dois destes requisitos nos interessa por razões ligadas ao tema ora em debate.

Ao tratar da necessidade de que a desequiparação tenha por fundamento elemento diferenciador residente na própria pessoa ou situação desigualada (alínea “b”) menciona o autor como exemplo de situação em que isto não ocorre o fator “tempo”.

Isto nos é particularmente importante pois que um dos focos de nosso estudo é a questão da duração razoável do processo. Normalmente os estudos relacionados à repercussão da condição econômica das partes no processo levam em conta o fator tempo combinado com o elemento carência material.

É afirmação corrente a de que a previsão e efetiva utilização pelo juiz das tutelas de urgência e mecanismos aceleratórios são formas de mais equânime repartição do ônus tempo.

Assevera Celso Antônio Bandeira de Mello, contudo, que “o fator ‘tempo’ não é jamais um critério diferencial, ainda que em primeiro relanço aparente possuir este caráter”179. À primeira vista esta afirmação poderia aparentar conflituosidade com a contida no parágrafo anterior, levando à indagação acerca da real compatibilidade entre a

177MELLO, Celso Antônio Bandeira. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo:

Malheiros Ed., 1997. 48 p.

178MELLO, Celso Antônio Bandeira. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, cit., p. 41. 179MELLO, Celso Antônio Bandeira. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, cit., p. 30.

idéia nuclear de isonomia material e a previsão dos mecanismos processuais de melhor distribuição do ônus “tempo”.

Esta conflituosidade é apenas aparente. O que se defende, em realidade, é que o tempo, por si só, é elemento neutro, e “aquilo que é, em absoluto rigor lógico, necessária e irrefragavelmente igual para todos, não pode ser tomado como fator de diferenciação”180. Em outras palavras, o tempo é rigorosamente igual para todos. O que varia é o efeito de seu transcurso, e aí o fator de discrímen não está no tempo em si, mas na situação particular da parte em relação ao fator tempo.

É por isto que é impossível demarcar um período em caráter genérico e abstrato como sendo suficiente para justificar uma tutela de urgência. A situação deverá sempre ser avaliada à luz das peculiaridades concretas181.

O que para nós interessa ressaltar é que em razão da carência de recursos econômicos, o decurso do tempo do processo pode acarretar defasagem na posição processual de uma das partes em relação ao adversário182.

Aí, precisamente neste caso, uma consciente e vigorosa aplicação de mecanismos aceleratórios e das tutelas de urgência teria o condão de restabelecer a isonomia material, ou ao menos mitigar a disparidade.

Uma questão que daí emerge, e que neste âmbito não ultrapassará os lindes da sugestão, visto que não é nosso tema central, seria pensar na situação de carência econômica da parte frente ao decurso de tempo naturalmente exigido pela marcha processual, como elemento necessariamente a ser considerado como integrante do tão falado periculum in mora, requisito genérico das tutelas urgência183, sintetizado na propalada fórmula do risco de dano irreparável ou de difícil reparação (conceito cuja exatidão não nos cumpre avaliar). Numa concepção mais arrojada, quiçá pensar em

180MELLO, Celso Antônio Bandeira. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, cit., p. 32.

181“O que se põe em pauta, nuclearmente, portanto, são sempre as pessoas, fatos ou situações, pois só neles

podem residir diferenças. Uma destas diferenças é a reiteração maior. É a sucessão mais dilatada ou menos dilatada; é, em suma, a variação da persistência. Esta variação demarca-se por um período, por uma data, mas o que está sendo objeto de demarcação não é, obviamente, nem o período em abstrato nem a data em abstrato, mas os próprios fatos ou situações contemplados ou demarcados” (MELLO, Celso Antônio Bandeira. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, cit., p. 33).

182“la parte económicamente menos fuerte se halla en uma situación de menor resistência tanto frente a un

proceso excesivamente largo, como frente a un proceso excesivamente costoso” (CAPPELLETTI, Mauro. El proceso como fenomeno social de masa. Trad. esp. de Santiago Sentis Mellendo, Tomás A. Banzhaf. In: ______. Proceso, ideologias, sociedad. Buenos Aires: EJEA, 1974. p. 132).

183Óbvio que há previsão que situações em que a tônica é outra, e este requisito dispensado, como ocorre no

caso da dita tutela antecipada sancionatória (CPC, art. 273, II). Aqui, contudo, falamos de forma superficial, do que se configura na generalidade dos casos.

reconhecer, mesmo nos casos em que não se constate um anormal decurso de tempo no trâmite processual, na possibilidade de, fundando-se exclusivamente na necessidade de restabelecimento da igualdade material entre as partes, conceder àquela economicamente fragilizada, e por isto impedida de aguardar o tempo normal do trâmite processual, a tutela de urgência184.

Outra idéia que sobressai nas lições de Celso Antônio Bandeira de Mello a que temos nos referido, é a de que o vínculo demonstrável entre o traço fático distintivo e a diversidade de regime jurídico deve ser constitucionalmente pertinente. Isto é, não é qualquer distinção que autoriza discriminar, é mister que o discrímen retrate concretamente um bem, e não o desvalor, absorvido no sistema constitucional. Nada melhor que suas próprias palavras para resumir a idéia:

“a lei não pode atribuir efeitos valorativos, ou depreciativos, a critério especificador, em desconformidade ou contradição com os valores transfundidos no sistema constitucional ou nos padrões éticos-sociais acolhidos neste ordenamento”185.

Pensamos não haver dúvida de que tanto a igualdade em sentido material como o acesso à justiça são valores constitucionalmente exaltados. Este último não apenas no sentido formal, limitado à fórmula simplista do princípio da inafastabilidade ou resumido à garantia do direito de ação (CR, art. 5°, XXXV), mas sim em sentido substancial, como acesso à ordem jurídica justa, mediante a remoção de todos os óbices possíveis de modo a possibilitar um igualitário recurso ao mecanismo institucional para solução de litígios mediante o exercício da jurisdição.

Legitimam-se assim, sob a ótica da idéia de isonomia material, medidas legislativas, políticas públicas e posturas judiciais que, desigualando, igualem. Entenda-se: concorram para um mais equânime e amplo acesso à Justiça.

184Contrariamente a esta idéia, Elio Fazzalari obtempera que as medidas cautelares ou antecipatórias do

provimento de mérito não podem ser dirigidas à tutela da parte mais carente pelo só fato da carência, somente sendo pertinentes quando lograr a parte em questão preencher o pressuposto substancial necessário à medida (La imparzialità del giudice. Rivista di Diritto Processuale, Milano, n. 2, p. 203, 1972). Uma verdade apresentada pelo autor merece transcrição: “la verità è che tutti son deboli in um Stato che non ha somma cura per l’amministrazione della giustizia” (La imparzialità del giudice, cit., p. 203).

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 70-75)