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Assistência jurídica integral e gratuita e as garantias constitucionais do processo

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 122-125)

Michele Taruffo define a Constituição Brasileira como emblema da fase madura do fenômeno que denominou de constitucionalização das garantias fundamentais do

processo, fenômeno iniciado a partir da segunda metade do século XX na evolução da

justiça civil311. Após ressaltar a diversidade dos níveis com que Constituições de diversos países e mesmo Declarações internacionais, detalham as garantias fundamentais do processo, o autor ressalta que esta diversidade de minúcias reflete o momento histórico e o grau de sensibilidade ética e política acerca da garantia do processo.

Esta constatação é bastante significativa no contexto brasileiro, em que uma Constituição nitidamente garantística sucede uma traumática fase ditatorial da República, e

311TARUFFO, Michele, Le garanzie fondamentali della giustizia civile nel mondo globalizzato. RTDC:

daí o enorme elenco de direitos que consta especialmente dos arts. 5° a 7° da Constituição além de outros espalhados por todo o texto312.

Ainda o mesmo autor segue sua lição, esclarecendo que apesar destas diferenças entre os ordenamentos, há um núcleo essencial em princípio irrenunciável, que governa a administração da justiça, e que se refere à independência e imparcialidade do juiz; à parte, a quem deve ser assegurado o acesso à tutela jurisdicional e ao direito de defender-se; e ao procedimento, que deve ser rápido, simples, acessível e eficiente313.

A efetividade da garantia do processo pode ser abordada por dois vieses possíveis, o primeiro, denominado por Taruffo como “effettività istituzionale”; o segundo, “effettività concreta”. A primeira é representada pela previsão abstrata num ordenamento de todos os mecanismos institucionais e processuais necessários para dar um conteúdo efetivo à garantia. São diversos os exemplos dos mecanismos que atendem a esta faceta, entre eles, indiscutivelmente está a previsão de eficaz forma de assistência jurídica ao necessitado, além de outros, como a existência de remédios cautelares adequados, amplo direito à prova, sem limitações injustificadas, procedimentos rápidos e simples, etc.

Já a efetividade denominada concreta consubstancia “l’applicazione diretta e specifica, nella realtà dei singoli processi, delle garanzie fondamentali e dei meccanismi istituzionali che sono finalizzati allá loro attuazione”314. Isto é, a necessidade de correspondência entre a previsão normativa abstrata e o que na vida corrente do foro, na praxe do dia-a-dia, nos processos individualmente considerados, ocorre, isto é, perquirir se estes mesmos instrumentos institucionais funcionam de forma adequada.

Conclui Taruffo que uma das maiores dificuldades que se tem verificado ao redor do mundo é justamente a adaptação das previsões normativas infraconstitucionais e da praxe quotidiana ao modelo constitucional de processo civil.

Não se reclama larga militância nos foros brasileiros para se notar também em solo tupiniquim este drama, particularmente na sede do tema que estamos abordando (assistência jurídica integral e gratuita). As afirmações de cunho teórico, as previsões

312Falando acerca de países que passaram pos experiências ditatoriais, Habscheid anota: “A experiência

comum de tais países, de um período de injustiça e de ditadura, levou aos ‘pais’ de tais constituições a reforçar a competência do terceiro poder do Estado e conferir-se, aí, um livre acesso (à justiça)” (As bases do direito processual civil, cit., p. 137). A própria Lei de Assistência Judiciária, conforme observa Evandro Fernandes de Pontes, “foi o resultado da primeira hora democrática pós-fascismo varguista” (A assistência judiciária na mira do modelo garantista do processo, cit., p. 68).

313TARUFFO, Michele, Le garanzie fondamentali della giustizia civile nel mondo globalizzato, cit., p. 119. 314TARUFFO, Michele, Le garanzie fondamentali della giustizia civile nel mondo globalizzato, cit., p. 123.

normativas e as interpretações que se lhes dão sempre tendem em benefício do amplo acesso à justiça e da busca do pleno amparo ao mais carente.

Porém o que o quotidiano revela é uma realidade cruelmente diversa. Veja-se o exemplo de um problema que será melhor explorado adiante, mas que ao ensejo do assunto ora abordado, merece breve pincelada.

Doutrina e jurisprudência de peso reconhecem o direito do necessitado à prova pericial à custa do Estado, sempre lembrando que o acesso à justiça compreende esta benesse, já que seria de hipocrisia risível assegurar-lhe o ingresso no sistema judicial sem permitir-lhe a produção das provas necessárias ao acolhimento de sua pretensão, com farta invocação a princípios constitucionais a amparar tal entendimento.

Porém a triste realidade que se verifica na praxe forense (ao menos no Estado de São Paulo) é a da existência de um Fundo destinado a custear tais perícias, em que os valores previstos para cada modalidade de prova técnica são amesquinhados, e em que determinadas áreas sequer contam com previsão (p.ex. perícia contábil); não se prevê cobertura para as despesas que o perito terá para a colheita do material necessário para a realização do exame, de modo que não raras vezes o vistor se vê na contingência de renunciar à nomeação.

Neste impasse é comum que o processo sofra retardos descomunais, isto na melhor das hipóteses, pois que além de ver eternizar-se o processo, pode findar a parte por ter a produção da prova irremediavelmente perdida.

A conclusão, embora batida, é a de que a reforma de mentalidade é indispensável para promover a combinação entre a efetividade em nível institucional, e em nível concreto, reclamando-se ainda uma corajosa atuação do juiz que deve dispor-se, em cada processo que individualmente transita por suas mãos, reproduzir em nível microscópico a realidade macroscopicamente prevista nas normas superiores de regência do Estado.

É das garantias constitucionais do processo que este ramo do conhecimento jurídico “traggono la loro linfa vitale”315. E no estudo dos institutos processuais infelizmente tem sido negligenciado o papel destes na efetivação das garantias constitucionais, sendo sempre oportuno instar o reconhecimento de que o ordenamento processual outra coisa não é senão a lei que regulamenta a garantia de justiça contida na Constituição316.

315LIEBMAN, Enrico Tullio. Problemi del processo civile. Napoli: Morano Ed., 1962. p. 149. 316LIEBMAN, Enrico Tullio. Problemi del processo civile, cit., p. 150.

A viga mestra que deve permear o espírito do processualista ao interpretar o objeto de sua ciência é o de que os institutos processuais devem dar vida às garantias postas em nível abstrato na Constituição. Transcrevendo Liebman:

“Questa è la strada che dovrà permettere di riconoscere nel processo non solo uno strumento di giustizia, ma anche uno strumento o – se si preferisce – uma garanzia di liberta”317.

O modelo de acesso à justiça não se cinge à idéia de facilitar ao homem comum o ingresso no sistema judicial. Devemos buscar a eliminação de todos os obstáculos interiores ao processo, isto é, as excentricidades teóricas, o ritualismo, males que conduzem a um consumo desmedido de tempo e à onerosidade excessiva do fenômeno processual. A esta linha outras se ajuntam, para em convergência fornecer esta nova mentalidade de que vimos falando: um eficaz sistema de assistência jurídica, acesso à informação antes do processo e durante seu tramitar, eliminação de barreiras econômicas e supressão de todas as formas de discriminação318-319.

E tendo estas noções como pano de fundo que se buscará abordar as principais controvérsias que envolvem o tema de nosso estudo.

17. Aspectos do regime constitucional garantidor da assistência jurídica integral e

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 122-125)