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Acesso à ordem jurídica justa

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 46-49)

É nesta expressão que Kazuo Watanabe resume o direito de acesso à justiça. De plano vê-se que a idéia suplanta a tradicional e formal garantia do direito de ação ou o princípio da inafastabilidade, e vai também além da mera prestação de um serviço público. Constitui prover ao maior número de indivíduos possível a viabilização mais eficiente (e aqui resvalamos na noção de tempo razoável e mínima qualidade aceitável) de acesso à

justiça material.

Decompõe o autor que estamos estudando em quatro elementos o direito de acesso à ordem jurídica justa108: a) direito à informação e perfeito conhecimento do direito

substancial e à organização de pesquisa permanente a fim de que se afira constantemente

a adequação da ordem jurídica à realidade sócio-econômica; b) direito de acesso à Justiça

adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; c) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela dos direitos e d) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características.

A largueza extrema de todos os itens mencionados reclamaria uma verdadeira biblioteca para que se pudesse tentar esgotá-los.

106NALINI, José Renato. O juiz e o acesso à justiça, cit., p. 166.

107CAPPELLETTI, Mauro. Dimensioni della giustizia nella società contemporanee, cit., p. 101. 108WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna, cit., p. 135.

Os fatores alinhados pelo autor como óbices ao amplo acesso à justiça poderiam ser classificados em exógenos e endógenos, e sua análise bem se comportaria num trabalho de cotejo com os elementos que compõe o acesso à ordem jurídica justa a que acabamos de nos referir.

Quando mencionamos fatores exógenos de óbice à Justiça estamos nos referindo àqueles que antecedem ao processo judicial, e lhe são externos, de natureza econômica (pobreza); social (falta de informação) e cultural (descrédito geral no sistema judiciário e inexistência de arraigada tradição na busca pela solução institucionalizada para o conflito). Fatores endógenos, de sua banda, são os ligados diretamente à técnica processual, entre eles, citam-se a estreiteza do conceito de legitimação para agir, especialmente no âmbito da tutela dos interesses metaindividuais; inexistência de procedimentos simples e céleres, aderentes ao direito material objeto do litígio e ainda a limitação das espécies de

provimento jurisdicional.

A ampliação do acesso à Justiça tornou-se objeto de considerações de processualistas ao redor do mundo inteiro, o que originou o chamado movimento de acesso

à justiça, que a doutrina costuma separar em três momentos: as três ondas renovatórias109.

Primeiramente a assistência judiciária aos menos favorecidos, a seguir a representação jurídica para os interesses metaindividuais e se encerra com o chamado novo enfoque do

acesso à Justiça110.

Esta última onda abarca as anteriores e envolve o conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas. Reconhece-se ainda a grande influência da natureza do litígio na determinação dos novos mecanismos procedimentais, eis o processo se adaptando ao conflito. “Da

109André de Carvalho e Marcus Vinicius Ribeiro anotam que no Brasil estas três ondas renovatórias foram

influenciadas pela transição política da década de oitenta. Inicialmente, no nascedouro da ditadura militar, a reação foi sobrelevar a fórmulas paraestatais de solução de conflitos, como reação ao cativeiro do sistema de justiça sob o regime militar, sendo característicos então os estudos acerca da produção normativa não- estatal e do pluralismo jurídico. No agonizar da ditadura, o foco do acesso à justiça retorna à cena judicial, tendo como marco exemplificativo a edição da Lei nº 7.244/84 (juizados de pequenas causas). Editada a Constituição de 1988 a dignidade da pessoa humana assume o papel do vértice axiológico de nossa ordem constitucional, e “retoma-se a juridificação das relações sociais, de modo a tornar o sistema de justiça um espaço a ser apropriado pela sociedade para a implementação de direitos previstos nas normas, mas negados na realidade cotidiana” (CARVALHO, André de; RIBEIRO, Marcus Vinicius. Direitos humanos, inclusão jurídica e o papel da assistência jurídica no Brasil do século XXI, cit., p. 55).

necessidade de outorgar proteção específica a essas novas categorias de direitos advém a questão preliminar da adequação da tutela ao objeto da prestação jurisdicional”111.

É neste ponto, isto é, na necessidade de conformação do processo ao direito substancial à cuja tutela se presta, que se entrelaçam os dois temas que dissemos fundamentais na ciência processual de nosso tempo: acesso à justiça e efetividade da

técnica processual, que será objeto do item subseqüente.

Antes, porém, de a ele passarmos, oportuno referir a sistematização dos obstáculos de acesso à justiça referida por Mauro Cappelleti e Bryant Garth na obra demasiadamente citada até aqui112. São apontados como principais obstáculos a serem vencidos as custas

judiciais; as possibilidades das partes e os problemas especiais relativos aos interesses difusos.

No que respeita às custas judiciais, refere-se ao elevado custo especialmente dos honorários advocatícios, quer no sistema em que o ônus da sucumbência (incluído o reembolso da verba honorária paga ao patrono pelo vencedor) é carreado ao vencido, quer no sistema em que não há tal reembolso (sistema norte-americano); ainda causas de valor tão ínfimo, que a demanda torna-se uma futilidade, pois que o custo desta há de consumir a totalidade ou boa parte do eventual proveito da vitória. Ainda, e por fim, a demasiada delonga do processo que pressiona os economicamente mais fracos, quer a abandonar o processo, quer a aceitar acordos manifestamente desvantajosos. É o reconhecimento de que “a Justiça que não cumpre suas funções dentro de um ‘prazo razoável’ é, para muitas pessoas, uma Justiça inacessível”113.

Ao avaliar as possibilidades das partes, pensa-se em situações de vantagens estratégicas em que se encontram determinadas classes de litigantes. O primeiro fator, que já foi referido, diz respeito à posse de recursos financeiros, que possibilitam suportar as delongas do litígio e muitas vezes apresentar de forma mais eficiente seus argumentos. Aponta-se a seguir a capacidade de reconhecer um direito e propor uma ação ou sua

defesa, o que se relaciona à falta de conhecimento jurídico básico que alija a maior parte da

população do acesso à justiça. Aliás, mesmo aqueles que sabem como encontrar aconselhamento jurídico qualificado podem não o buscar devido à falta de disposição psicológica, como a desconfiança dos advogados, a opressão causada por procedimentos

111BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo, cit., p. 65. 112CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça, cit., p. 15-29. 113CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça, cit., p. 20-21.

complicados, ambientes intimidadores pelo portentoso porte dos tribunais e figuras como magistrados e servidores. Por fim, apontam-se as vantagens que levam os litigantes

habituais, que desenvolvem maior experiência que possibilita assumir posição de primazia

sobre os litigantes eventuais.

Já no que respeita aos interesses difusos, o problema central é que “ou ninguém tem direito a corrigir a lesão a um interesse coletivo, ou o prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação”114. Ademais, como na ação individual o agente obterá o ressarcimento do dano causado a si, porém não daqueles efetivamente causados à comunidade, a demanda individual acaba sendo insuficiente para obter o cumprimento da lei.

A conclusão preliminar a que se chega é que os obstáculos criados por nosso sistema são mais pronunciados para as pequenas causas e para os autores individuais, notadamente pobres; de outro lado, há vantagens sobejas aos litigantes organizacionais. Torna-se, pois, difícil transformar os muitos novos direitos emergentes na sociedade de massa em posição de real vantagem concreta. Adiciona-se um fator complicador: os obstáculos são inter-relacionados, de modo que muitas vezes eliminar ou mitigar um, significa exacerbar o outro115.

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 46-49)