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Aspectos do regime constitucional garantidor da assistência jurídica integral e gratuita

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 125-132)

Já tivemos oportunidade de ressaltar a distinção entre os conceitos de assistência jurídica, assistência judiciária e benefício da gratuidade. O principal diploma que em nível infranconstitucional trata dos institutos é a Lei n° 1.060, que remonta à década de 1950, com alterações posteriores que, como já também ressaltamos, concentram-se na década de 1980.

317LIEBMAN, Enrico Tullio. Problemi del processo civile, cit., p. 151.

318MORELLO, Augusto Mario. La justicia, de frente a la realidad. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni

Editores, 2002. p. 28.

319“La silueta del Modelo del Acceso a la Justicia importa una alternativa cultural abarcadora (y no solo

jurídica), dispuesta a que los derechos o libertades fundamentales (y qué duda cabe que uno de ellos es el derecho a la Justicia), como los que conciernen a la educación, a la salud, a la vida, a preservar el medio ambiente, a la calidad y dignidad de vida, dejen de constituir para la mayoria de los ciudadanos y las personas un mero propósito de mejoramiento que, sin embargo, cuando carece de su expansión útil al no disponerse de los médios que aseguran en tiempo próprio su defensa” (MORELLO, Augusto Mario. La

O diploma em questão contém disposições híbridas, pois que tratam simultaneamente de preceitos que se enquadram no âmbito da assistência judiciária, bem como outros referentes à gratuidade.

Fato é que diversas são as divergências e inconsistências doutrinárias e jurisprudenciais na aplicação da lei em questão.

Em sede constitucional a assistência jurídica é prevista pelo inciso LXXIV do art. 5°, entre os direitos e garantias fundamentais, precisamente no âmbito dos direitos e deveres individuais e coletivos: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Conseqüência direta da natureza do direito em questão é sua inclusão entre as cláusulas pétreas, conforme previsão do art. 60, § 4°, IV, da Constituição da República, de modo que não sujeita ao poder constituinte derivado, sequer por proposta meramente

tendente a abolir-lhe a incidência.

A rigor há diversas outras disposições que se referem de modo mediato ao acesso à justiça, como é o caso da garantia do direito de petição, direito de obtenção de certidões em repartições públicas, e mesmo outras destinadas à tutela em geral de direitos de natureza diversificada, como o caso do mandado de segurança coletivo, mandado de injunção,

habeas data, habeas corpus, ação penal privada subsidiária da pública, e a consignação da

justiça social como fundamento da ordem social320. Em suma, poderíamos dizer da conformação de um sistema cuja vetoração primordial é possibilitar o mais amplo acesso à justiça.

A assistência jurídica como um dos principais instrumentos de efetivação do acesso à justiça tem fundamento no princípio da solidariedade social, e representa o desempenho da função protetiva do Estado, compreendida esta nas finalidades políticas estatais. Pondera-se que ou se reconhece o direito à assistência ou o direito de mendicidade321.

É famigerada a tripartite classificação das normas constitucionais, proposta pelos mais renomados autores, dividindo-as em normas de eficácia plena; eficácia contida ou restringível e eficácia limitada322, conforme independam para sua plena eficácia de atuação

320CARVALHO, André de; RIBEIRO, Marcus Vinicius. Direitos humanos, inclusão jurídica e o papel da

assistência jurídica no Brasil do século XXI, cit., p. 27.

321LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Garantia de acesso à justiça: assistência judiciária e seu perfil

constitucional, cit., p. 68-72. Funda o autor parte de suas observações nas lições de Carlos Babo.

do legislador ordinário (normas de eficácia plena); admitam atividade ordinária, embora dela não dependam para plena operatividade do comando constitucional (eficácia contida ou restringível) e dependam de atuação do legislador infraconstitucional para eficácia da norma (normas de eficácia limitada).

Baseado na lição de Michel Temer, José Marcelo Menezes Vigliar lembra que todas as normas constitucionais são dotadas de eficácia, já que, no mínimo, resultam na revogação de todas as normas anteriores que com elas conflitem, ou seja, uma eficácia

negativa. Tratando especificamente do direito fundamental previsto no já citado inciso

LXXIV do art. 5° conclui que a assistência jurídica integral e gratuita classifica-se como norma constitucional de eficácia contida, ou de eficácia redutível ou restringível, na terminologia de Temer323.

Assim é que segundo o entendimento em questão, a norma que prevê a assistência jurídica integral e gratuita é dotada de eficácia redutível, contida ou restringível. Aliás, entendimento diverso seria incompatível com o § 1° do art. 5° da Constituição da República, segundo o qual, as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Em verdade o fundamento da posição defendida pelo autor citado é a idéia de que o já dito inciso LXXIV do art. 5° “estaria a restringir o alcance do dispositivo, já que não indicou a forma de comprovação da insuficiência de recursos, sequer expressamente remetendo a complementação à atividade ordinária do legislador, mas que será necessária”324.

Há, é certo, uma imprecisão terminológica no trecho transcrito, pois que se fosse efetivamente necessária esta atividade legislativa ordinária, então estaríamos diante de norma constitucional de eficácia limitada.

A nosso ver a atividade legislativa ordinária em matéria de assistência jurídica integral e gratuita é admissível, porém não necessária325. Recomendável, porém dela não

323VIGLIAR, José Marcelo Menezes, Assistência jurídica integral e gratuita. Tutela constitucional e

concessão do benefício. Justitia, São Paulo, v. 57, n. 171, p. 65, jul./set. 1995.

324VIGLIAR, José Marcelo Menezes, Assistência jurídica integral e gratuita. Tutela constitucional e

concessão do benefício, cit., p. 63.

325No mesmo sentido de ser a norma do inciso LXXIV do art. 5º qualificada como de eficácia contida e

cláusula pétrea: RAMOS, Glauco Gumerato. Assistência jurídica integral ao necessitado. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 88, n. 765, p. 48, jul. 1999.

depende a eficácia da norma constitucional326. Aliás, parece-nos que sequer tal atividade seja essencial no que concerne especificamente à regulamentação da forma de comprovação da insuficiência de recursos.

A falta de menção à forma de comprovação é irrelevante, pois plenamente suprível por normas já existentes no direito pátrio, e falamos precisamente de norma fundamental em matéria probatória, o art. 332 do Código de Processo Civil, segundo o qual “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”.

A atividade infraconstitucional seria oportuna para detalhar conceitos enunciados na Constituição da República. Não custa recordar que a Lei n° 1.060/50, anterior ao atual diploma constitucional, abrange apenas em parte a noção de assistência jurídica integral e gratuita por ela trazida. Reconhece-se que há um campo sobre o qual verte a Constituição da República sua luz, e que não é abarcado pela Lei n° 1.060/50.

Norma que, p. ex., estrutura órgão destinado a prestar o serviço público em questão, seria extremamente bem vinda, mas sua falta não impede que a garantia espraie sua proteção. Neste passo, lembra-se que o órgão constitucionalmente destinado a tal mister é a Defensoria Pública, regida pela Lei Complementar n° 80 de 12 de janeiro de 1994, que cumprindo o prescrito pelo § 1° do art. 134, organizou a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreveu normas gerais para sua organização nos Estados.

Tanto é exato o que estamos a afirmar que no Estado de São Paulo, até recentemente, a Defensoria Pública não fora instituída, e a garantia da assistência jurídica integral e gratuita foi prestada pela Procuradoria de Assistência Judiciária, vinculada à Procuradoria Geral do Estado, e pela Ordem dos Advogados do Brasil, mediante convênio firmado com aquele órgão.

326 Maurício Antônio Ribeiro Lopes, após empreender percuciente estudo voltado a distinguir as noções de

normas e princípios constitucionais; direitos fundamentais e garantias individuais, especialmente com base nas lições de Canotilho, assim conclui por qualificar a assistência jurídica integral no contexto da Teoria da Constituição: “A assistência jurídica integral se não tem força própria para se constituir em princípio

constitucional em termos absolutos ou clássicos não pode deixar de ser classificada, na doutrina de

Canotilho, como princípio-garantia, ou como norma constitucional eletiva de princípio-garantia, que bem sintetiza nossa conclusão axiológica do objeto” (Garantia de acesso à justiça: assistência judiciária e seu perfil constitucional, cit., p. 67).

Certo é que o nível desejável de excelência não foi atingido, apesar dos heróicos esforços destes órgãos, porém não se pode dizer que a norma constitucional remanesceu inteiramente obstaculizada em sua eficácia pela ausência da atividade legislativa ordinária.

O caráter fundamental do direito plasmado no citado inciso LXXIV do art. 5º ainda decorre de sua íntima relação com os princípios da isonomia e do devido processo legal.

“A assistência judiciária é um direito assegurado por configurar um dos momentos do Due Processo of Law. Sem ela não se pode cogitar de ‘igualdade de todos perante a lei’. Impossibilitando-a, impedir-se-á que se materialize o ‘devido processo legal’, em todas as suas dimensões (...) Enquanto não se proporcionar aos ‘mais carentes’ aos ‘economicamente fracos’, aos ‘necessitados’, ‘assistência judiciária’, digna e decente, a lei nunca será igual para todos. Nem todos serão iguais perante a lei”327.

A assistência jurídica integral e gratuita é prestação positiva a cargo do Poder Público que se insere no contexto do Estado Social de Direito, em que a preocupação é proporcionar melhorias substanciais à sociedade civil328.

Uma importante conseqüência do fato de emanar o direito à assistência jurídica integral e gratuita diretamente de norma constitucional de eficácia plena (conquanto restringível), é que a efetivação do direito em questão comporta a utilização de instrumentos postos na própria Lei Maior para hipóteses de omissão do Poder Público.

José Marcelo Menezes Vigliar, a quem já temos citado, lembra a possibilidade de utilização do mandado de injunção, a ação de inconstitucionalidade por omissão, além da

iniciativa popular329. Maurício Antônio Ribeiro Lopes pontua que a negativa de assistência

a quem tenha comprovado a situação de necessidade implica infração a direito líquido e certo, abrindo a via do mandado de segurança ou, se o caso de ameaça ou efetiva violação ao direito de liberdade, do habeas corpus330.

327TREVISAN, Oswaldo, A assistência judiciária: fundamentos constitucionais. Revista da Procuradoria

Geral do Estado, São Paulo, n. 22, p. 180-183, jan./dez. 1984.

328RAMOS, Glauco Gumerato. Assistência jurídica integral ao necessitado, cit., p. 49. Neste mesmo norte

Marcelo Malizia Cabral: “disciplinado em nível constitucional, no título II da Carta Política, que estatui os ‘direitos e garantias fundamentais’, o acesso à justiça, assegurado a toda humanidade, reclamando ação positiva do Estado, constitui-se em direito humano prestacional, atributo, aliás, reconhecido pelos estudiosos do tema” (Concretização do direito humano de acesso à justiça: imperativo ético do Estado Democrático de Direito. In COLETÂNEA de trabalhos de conclusão de curso apresentados ao Programa de Capacitação em Poder Judiciário - FGV Direito Rio. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 2009. p. 48).

329VIGLIAR, José Marcelo Menezes, Assistência jurídica integral e gratuita. Tutela constitucional e

concessão do benefício, cit., p. 69-70.

330LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Garantia de acesso à justiça: assistência judiciária e seu perfil

Entende ainda o referido autor que de todos estes mecanismos, o mais eficaz seria mesmo a iniciativa popular, devido ao potencial alcance, já que medidas judiciais tendem a limitar-se aos litigantes. Cogita-se também da ação civil pública, “embora tenha-se que proceder a uma minuciosa delimitação do objeto de sua causa petendi, e quem seriam os beneficiários, para não torná-la uma ação de inconstitucionalidade por omissão disfarçada”331.

No que concerne à ação de inconstitucionalidade por omissão parece-nos incongruente sua aplicabilidade. É que tende a doutrina por reconhecer seu cabimento no caso em que normas constitucionais de eficácia limitada remanescem absolutamente impedidas em sua eficácia em razão do descumprimento pelo Estado-legislador de um

dever de legislar imposto pelo legislador constituinte332.

Conforme em linhas precedentes defendemos, não é este o caso da norma inserta no inciso LXXIV do art. 5º.

Ademais, com a procedência da ação direta “será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias” (CR, art. 103, § 2º). Entende-se que o Poder Legislativo, mesmo comunicado do reconhecimento da omissão, não poderá ser compelido a legislar, remanescendo ainda a oportunidade e conveniência para fazê-lo, por respeito ao princípio da separação dos poderes, de modo que apenas quanto a órgãos administrativos a imposição de prazo representa tutela mais intensa em face da omissão do Poder Público333.

Deste modo, mesmo que se entendesse pela possibilidade de aplicar-se ao caso o referido remédio, seu alcance prático seria deveras limitado.

Em relação ao mandado de injunção, a mesma crítica inicial referida quanto à ação direta de inconstitucionalidade por omissão aqui se aplica. É remédio voltado para as normas constitucionais de eficácia limitada que definam direitos e liberdades

331VIGLIAR, José Marcelo Menezes, Assistência jurídica integral e gratuita. Tutela constitucional e

concessão do benefício, cit., p. 70. A seguir conclui: “O que se vislumbra é o ajuizamento de ação civil pública, cujo objeto veicule obrigação de fazer, quer para se efetivar a Assistência Jurídica Integral e Gratuita, postulando-se a criação de órgãos para tal fim, quer para determinar que, no mínimo, se observe a concessão do benefício menor da justiça gratuita, nos termos da lei” (Tutela constitucional e concessão do benefício, cit., p. 70).

332MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 775.

333MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, cit., p. 777. Cf. ainda a respeito o art. 12-H da Lei nº

12.063/09, que inseriu na Lei nº 9.868/99 disposições específicas à ação direta de inconstitucionalidade por omissão.

constitucionais, ou prerrogativas inerentes à nacionalidade, soberania e cidadania (art. 5º, LXXI), e que dependam, para sua eficácia, da atuação do legislador ordinário.

Sobre os efeitos da decisão, paira antiga divergência, entre concretistas e não concretistas. Os primeiros subdivididos em concretistas geral e individual, e estes, em concretistas individual direto e intermediário. Por óbvio não é esta a sede própria para tratar deste assunto, convindo apenas lembrar que na composição atual do Colendo Supremo Tribunal Federal vigoram as posições concretista geral e individual concomitantemente334. Pela primeira, ao reconhecer a omissão, o Poder Judiciário poderia, por meio do mandamus, suprir a lacuna legislativa em caráter genérico, isto é, erga omnes, fixando os parâmetros para o exercício do direito por qualquer interessado. Pela segunda, este suprimento estaria restrito ao caso concreto, isto é, limitado ao prejudicado que recorreu à tutela constitucional335.

Quando, contudo, tratamos da efetivação da garantia de acesso à justiça por meio de instrumentos judiciais, não podemos escapar à tautologia: para garantia do acesso à justiça por vias judiciais, é preciso que haja acesso à justiça.

Por outras palavras, um sistema de assistência judiciária falho, incapaz de prover ao necessitado um patrono com qualificação adequada para, p.ex., buscar a reparação de um dano de que tenha sido vítima o carente, poderá prover-lhe um patrono para buscar em juízo o direito a uma assistência judiciária de qualidade? Isto é, faz-se necessário um patrono para obter em juízo o reconhecimento do “direito a ter um patrono nomeado”.

Assim, um sistema inacessível assim o será também para a garantia do direito de acesso à justiça.

334MORAES, Alexandre de. Direito constitucional, cit., p. 181-182.

335Os concretistas diretos defendem que ao proclamar a omissão o C.Supremo Tribunal Federal deveria,

desde logo, suprir a omissão para o caso concreto. Para os intermediários, dever-se-ia conferir ao legislativo prazo razoável para suprimento da lacuna, e então, ultrapassado este, por meio de reclamação, suprir-se a falta da norma regulamentadora.

No documento Acesso à justiça e carência econômica (páginas 125-132)