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ouvira aquelas composições, mas soavam tão familiares. Onde estaria o elo? Continuo não sabendo, mas a música na dança me remeteu a essa familiaridade estranhada de uma música antiga que me habitava.

No caso de Tzadik katamar: como e por onde eu poderia me identificar com uma música de Israel? Eu não sabia nada de Israel, não tinha o menor contato com aquela cultura ou com o judaísmo; coisa alguma, racionalmente, poderia me chamar para as canções daquele povo. Inclusive dados históricos – tudo vago em mim. Como, então, eu fico sensibilizada, encantada e mobilizada por essa tradição? Sim, porque depois da primeira dança, outras vieram e as danças de Israel tornaram-se as minhas preferidas. Batem em mim em lugares que nem sei – seja na alegria ou na tristeza que evocam, comovem.

Falando do contato, ou da falta de contato e conhecimento, com e sobre aquela tradição religiosa, lembro dos comentários de Doris Lessing, que encontrei no segundo volume de sua autobiografia. Contando sobre o processo de criação do seu livro O carnê dourado (de 1962), revela seus caminhos por territórios com os quais não tomara contato no curso da vida, interditados pelo materialismo convicto em que se movimentara. Ao escrever tal obra, confessa que o mundo que excluíra como “impossível”, como “reacionário” (o espiritual, o religioso) tornou-se presente, impelindo-a a buscar “algo diferente”, a procurar o que lhe havia sido negado e que então se impunha como necessário: a aproximação e a busca de informações sobre as grandes tradições religiosas do Oriente.

Vi-me, de um momento para outro, atônita diante de um fato básico, avassalador – o de que ali estava um mundo de idéias e crenças sobre as quais eu mal ouvira falar e, mais ainda, às quais eu não fora seriamente apresentada. (...) Em parte alguma de nossa educação, de nossa cultura, encontrei a menor alusão às grandes religiões, às grandes tradições espirituais do Oriente.(...) Acho que essa lacuna no seio de nossa educação ... explica por que os jovens criados dentro do intelectualismo espevitado, petulante, convencido e raso do Ocidente não tiveram defesas quando confrontados com a tradição oriental, mesmo com as formas mais deterioradas delas. Nos anos 60, que despontavam no horizonte, quantas vezes não vimos jovens altamente cultos sucumbirem, de repente, ao charlatanismo, a gurus e a cultos de toda sorte, para espanto e desespero dos pais. (1998, p.360)

De minha parte, nos anos 2000, diria que faz falta não apenas informações sobre as religiões orientais, mas, de um modo geral, sobre diferentes tradições, que não apenas o cristianismo, que reina absoluto na educação, principalmente institucional, dos jovens no Brasil. Para mim, judaísmo, budismo, hinduísmo, islamismo, era tudo mistério, mundos desconhecidos. Fechamo-nos em nossas crenças, ou na formação que recebemos e então pouco circula. Ou, mais ainda, passamos uma vida negando o espaço sagrado dentro de nós, o mundo espiritual, por certa

adesão ao racionalismo.

A escritora inglesa também fala da existência de uma espécie de “pacote de uma época”, como única maneira de ver o mundo. À sua época, o seu “pacote” era o comunismo – “materialismo filosófico, materialismo do Deus-está-morto, a ciência é rainha” (1998, p.357). Para ir adiante, para retomar seu processo criador, em outro tempo, precisou se desvencilhar das “estruturas mentais do comunismo”, do “pacote”, mergulhando no mar de idéias que corre pelo mundo, inclusive das tradições religiosas. Através do pensamento (ou seria sentimento?) de um de seus personagens no conto A tentação de Jack Orkney, novamente Doris Lessing me ajuda a dar expressão a um pensamento que retrata ainda uma época, o meu tempo: “Ser contagiado por Deus, após uma vida inteira de racionalismo esclarecido, seria a mais vergonhosa das capitulações.” (Lessing, 1972; p.279). Todavia, como observa Jung, em carta de 1960 a Miguel Serrano: “Somente nossa consciência imagina que perdeu seus deuses; na realidade, eles estão conservados ali e só necessitam de uma condição geral para ressurgir com maior força.” (Serrano, 1970; p.101).

A Dança Circular trouxe-me o contato com essa realidade, também desprezada pelo meu “pacote de época”, que privilegia a razão, o cognitivismo, a ciência e o espírito acadêmico. Também me permitiu o contato com diferentes tradições culturais e religiosas. É mesmo um propósito das Danças Circulares trabalharem a tolerância, pois dançando não se discute idéias, toma-se uma atitude, coloca-se na roda a diferença, a intolerância, as divergências e fazemo-las rodarem. Isso eu aprendi depois.

A Dança Circular abre uma conexão com o sagrado dentro de nós. Na forma, no gesto, na música somos convidados, como já falei, a entrar em contato com outras dimensões de nosso ser – a experiência me mostrou. O sagrado... Impossível de se nomear. “Tudo que vive é sagrado”, diz o poeta Willian Blake, e é a vida mesma que a dança traz – a vida dos ancestrais, dos povos antigos, de diferentes tradições e a nossa própria vida, reinventada no presente. Como afirmava antiga inscrição em latim, a qual o psicólogo suíço Carl Gustav Jung gravou sobre a porta de entrada de sua casa, no Lago Küsnacht, VOCATUS ATQUE NON VOCATUS, DEUS ADERIT – Evocado ou não, Deus está presente. (Gaillard, 2003, p.31). Se os deuses estão em nós, ao dançarmos na roda vivificamos o sagrado em nós, conectamos com o centro, alinhamos o eixo da vida. Não é necessário nomear, apenas viver.

Ao dançar o passado, honramos a tradição e reconectamos a força dessa tradição em nós. Somos tocados e podemos transformar nosso mundo interno. Ao tomar contato com diferentes tradições religiosas, entramos em contato com nossa espiritualidade, talvez perdida, nossa dimensão interior, energias sutis. Encontro com a alma, com o desconhecido, o inexplicável. Mais uma vez o poeta:

Temos que aceitar a nossa existência em toda a plenitude possível; tudo, inclusive o inaudito, deve ficar possível dentro dela. No fundo, só essa coragem nos é exigida: a de sermos corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável que se nos pode defrontar. (Rilke, 1998, p.66).

3Cf.: www.hebrewsongs.com

“O homem justo cresce alto e reto como a palmeira e floresce como o cedro do Líbano”. Estas são palavras do Salmo 92, que é recitado, na tradição judaica, durante a cerimônia do shabat. Este salmo é referência para a música do compositor Amitai Ne’eman, Tzadik katamar, para a qual Jonathan Gabay, em 1969, coreografou a dança de mesmo nome, tradicionalmente dançada em Israel3.

Tzadik katamar

Letra da música em hebraico Tzadik katamar yifrach, yifrach Tzadik katamar yifrach

(repeat)

Ke’erez bal’vanon yisgeh Ke’erez bal’vanon yisgeh

Ke’erez bal’vanon yisgeh, yisgeh (repeat)

Tzadik katamar - O justo florescerá como uma tamareira Letra da música em português

O justo florescerá como uma tamareira, florescerá O justo florescerá como uma tamareira, florescerá (repete)

Como o cedro do Líbano, que cresce e se fortalece Como o cedro do Líbano, que cresce e se fortalece (repete).

A música, tendo por referência os versos bíblicos, traz à cena a figura do justo ou sábio – Tzadik. Fala de florescimento, crescimento, fortalecimento, usando as imagens da tamareira e do cedro, árvores sagradas de antigas civilizações, como os assírios, os babilônios e os hebreus. O cedro e a tamareira são árvores que crescem firmes para o alto, em direção ao céu, atingindo tamanhos consideráveis.

Das proporções do cedro do Líbano, espécie de cedro mais conhecida, pode advir a representação da grandeza, da nobreza, da força e da perenidade atribuídas a essa árvore. É também símbolo da incorruptibilidade: “O cedro jamais apodrece; fazer de cedro as vigas de nossas moradas é

Encontro com

o sábio e o