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Ler a turma, ver-se professora e focalizadora: abrir canais

Conversa e dispersão. No início pensei que era comigo, que era a proposta da dança, que era meu jeito de encaminhar a proposta e meu estilo de focalizar. Mas não. Quando as conversas (dessas que chamamos paralelas) se potencializavam e atingiam meu centro (eu sentia que minha feição se transformava, ficava chateada) uma parte da turma explicitava claramente, como que me tranqüilizando: não é só contigo, não! É assim em todas as disciplinas.

Com o tempo, constatei: era uma dinâmica particular da turma que em si não era integrada.

Tinha também o horário: grande parte não chegava no horário previsto para o início. Invariavelmente. Parecia normal, muito tranqüilo, que assim fosse. E o tempo previsto para o intervalo? Interminável. Posso afirmar que pelo menos metade da turma não regressava da “cantina”. Resulta que havia um ritmo antes do intervalo e outro bem diverso depois. Arrisco dizer que depois do intervalo retornava a metade da turma que foi tocada pela Dança Circular, aqueles que queriam dançar, que gostavam de dançar, que, enfim, estavam envolvidos.

A exemplo do grupo da Pedagogia com quem dancei anteriormente, fazia a maior diferença dançar antes e depois do intervalo. Primeiro pelo número de pessoas. No início, com a turma toda, chegávamos a 40 alunos. Após o intervalo, ficávamos com 25, 30 pessoas na roda. Fluía mais a roda nesse segundo momento da noite. Era como se os que ali permaneciam tivessem escolhido dançar. De alguma forma, houve uma escolha, sim. Então eu podia ver o prazer, o envolvimento. Quem ficava depois do intervalo queria a dança, não a presença na ficha de chamada, não qualquer formalidade. Entretanto, a existência de uma turma que ficava e outra turma que ia embora (ou não voltava) dificultava a integração e a dinâmica do processo, pois não estar presente na segunda parte do encontro provocava um distanciamento do vivido. Entre o grupo que se formava ia sendo criada uma identidade, marcada na partilha do encontro que, aos ausentes, era estranho. Se não há partilha, é difícil haver comprometimento. Perde-se a história. Fica-se solto no fragmento de um ou outro encontro, sem uma visão mais geral que abarcasse vários momentos – os bons e os maus, os alegres e os tristes, os expansivos e os introspectivos. Assim se constrói a vida de um grupo. Minha percepção levou-me a ver nessa classe uma turma e não um grupo. Talvez pela dinâmica que foi tomando forma nesta turma, cheia de altos e baixos, descontinuidades, também “me olhei” mais. Fui me percebendo focalizadora-com-jeitos-de-professora, na relação com dançarinos-alunos. Neste caso, impossível dissociar os papéis. Não era apenas uma sessão de dança, era uma sessão de Dança Circular com alunas, num espaço acadêmico

– não propriamente o espaço físico, mas o espaço curricular. Então, de certa forma, os papéis de professor e aluno estavam estabelecidos.

Fui percebendo minhas reações, meus sentimentos: na dança compartilhada mostravam-se. Às vezes de maneira clara, às vezes nem tanto.

Com este grupo estou me olhando e analisando meu jeito de conduzir a roda. Está estranho; parece que não estou fluindo, que não estou leve. Preciso me observar mais para ver se capto o que se passa. Acho que é um pouco aquela sensação de “começar de novo do básico” e também a percepção do cansaço das alunas, que chegam para a dança depois de um dia de trabalho! Não sei... vou dar mais atenção a minhas sensações.

(...)

Hoje o encontro foi legal. Pelo menos uma parte. Ao final houve conversas e pouca concentração ao dançarmos; também reclamações sobre as posições que a dança sugeria (dor no braço...). Mas, além disso, penso que rolou outra sintonia, em oposição ao pedido da dança (a música era um mantra, solicitava silêncio, meditação, contato interior...). Aqui também senti aquela velha sensação/ sentimento/ pensamento: como é difícil para os professores ficarem em silêncio! Junto disso me dei conta: estava com uma ponta de irritação (acho que era isso o “estranho” que vinha sentindo...). Onde ponho a minha irritação?

Tenho pensado muito no papel de professora – tenho achado difícil... Fico aflita ao perceber que nem todos “estão aí” para as danças. Isso me desanima e me faz refletir sobre a validade da proposta. Ainda não sei o que acontece, mas não tô achando legal. Claro que já recebi muitas manifestações positivas, seja na participação das rodas ou com palavras, comentários. Há um núcleo que está totalmente envolvido, que gosta, que deseja, que sente prazer e alegria em dançar. Ai! Não consigo deixar de pensar nos outros, aqueles que (parece) não querem, não gostam e estão na roda ausentes, pela metade... que acabam atrapalhando o fluir da dança. Parece uma energia estagnada! Devo me alegrar só com aquele núcleo que já se envolveu? Como não me abalar com aqueles que se colocam “fora”?

O que será que mexe com esse grupo? Que lugar é possível tocar? Seguia perguntando. Olhando para mim, olhando para eles, minha busca por propostas que mexessem com a turma, que pudessem abrir canais e estender fios para a identidade de grupo, foi maior. A certa altura da experiência, ao passar dos dias, meu incômodo e minha irritação diante das atitudes observadas, feitos interrogação, me conduziram a planejar um encontro que promovesse o confronto com essa faceta não grupal. Assim pensando, organizei um encontro especial com danças que remetiam a um tempo de criança – como símbolo de aventura, brincadeira, imaginação, criação da novidade, da reinvenção da vida. Podia muito bem ser um caminho para abrir caminhos – de sensibilidade, silêncio, conexão em outro nível na roda

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17 de março 2004

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(consigo mesmo e com os outros). Era uma aposta. Nesta noite também o centro da roda foi preparado com esse propósito.

Trouxe “coisas de criança”, alguns objetos que para mim lembravam tempos de criança. Nada muito escolhido – tomei os objetos que estavam ao meu alcance, em casa. Ao redor do centro assim preparado, dançamos cantigas brasileiras.

Escravos de Jó, Senhor capitão (fulô), Coração de criança. Além das danças

em roda, propus um relaxamento, deitados no chão, com a cantiga

Boi da cara preta. Fez-se um silêncio na sala. A cantiga de ninar tomou

todo o espaço, a conduzir cada um ao encontro da sua criança, viva na memória. Houve entrega. Surgiram muitas e diferentes crianças quando, ao abrirem os olhos, no final da cantiga, compartilharam suas lembranças. Crianças alegres, tristes, brincantes. Solitárias, medrosas, tímidas, faladeiras. Pintoras, estudiosas, inteligentes... Uma criança não apareceu. Uma aluna justifica: eu não consigo pensar na criança que fui; não tenho lembranças. Nossa! Eu me espantei, mas fiquei calada, não

insisti que falasse, temi invadir sua história. Mas aquilo me provocou. Pensamentos e interrogações. O que terá acontecido a essa menina para não poder falar, nenhuma lembrança, da criança que foi? Nem na imaginação?

(...)

No início do encontro pediram para dançar “aquela assim” – e fizeram o gesto, que compreendi ser Beech, uma dança dos Florais de Bach, já

conhecida. Para mim foi um sinal da dança chegando mais perto de todos. Dançá-la nesta ocasião foi bem apropriado. Combinou com a temática que trouxe, pois era alegre, já havia envolvido a roda quando dançada em outro momento. Tanto pelo espírito alegre e integrador, quanto pela qualidade lembrada do floral, a tolerância, foi realmente complementar à proposta trazida por mim.

Entretanto, mais do que os sinais de contato animador com as danças circulares, demonstrados no pedido referido em meu registro, outras surpresas estavam para vir naquela noite. O episódio envolvendo um cestinho de chocolate a girar na roda foi muito revelador da vida do grupo (que era uma turma). Assim relatei o ocorrido:

Para compor o centro, também trouxe um cestinho, com chocolate dentro. Ao final do encontro, a surpresa. O cesto passaria de mão em mão. Cada um, ao recebê-lo, pegava um chocolate e depois entregava o cesto para outra pessoa da roda. Impressionante! Tão simples proposta e tão reveladora: havia “panelas” na turma (foi um comentário explícito!) e pessoas que se sentiam “não queridas” (assim mesmo disseram!)... As expressões que ocuparam a roda nesse momento foram significativas e intensas, dirigidas para fora, quase um desabafo de alguns. Mas, enfim, o cesto foi rodando e a roda também. Pelos comentários e reações, eu percebia que muitos estavam sendo

Registro 07 abril 2004

Registro 07 abril 2004

os encontros para além das “panelas”. (...) A velha teoria de grupo veio clara na minha cabeça. Depois do encontro ficou mais ainda reforçada. É preciso seguir puxando laços para ser grupo.

No encontro seguinte: foi o melhor encontro! – expressão geral. O grupo ouviu mais, estava mais junto – comentaram. Com as danças, a-do-ra-ram as brasileiras!

Ouvi essas manifestações como indicações de que “algo” acontecia; quiçá a dança circular começava a tocar, a fazer eco em muitas pessoas (porque nem todos estavam lá), a ponto de a roda fluir com mais leveza. Depois, entra em cena a minha hipótese: no conhecido as alunas se reconhecem. O conhecido, no caso, é a cantiga de roda brasileira, a preferida do dia. Tal como imaginei: comentaram que haviam cantado com as crianças, na escola.

Centros e mandalas: chamamento para o