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O ponto em expansão: formação do círculo

Ultrapassado o tumulto, a partir do primeiro encontro, fomos constituindo uma dinâmica que foi marcando o grupo, aproximando-nos. Fomos constituindo um ritual, tal como um princípio da Dança Circular. Os encontros, mesmo que no âmbito/formatação de uma disciplina curricular, eram encontros para dançar e a dinâmica que fui construindo trazia sempre essa proposta: não é falar sobre, não é aprender para fazer com as crianças. É fazer para si mesmo, falar para si mesmo a partir do que as danças poderiam falar. Era encontro com as danças dos povos, através do qual poderiam ser acionadas ou provocadas outras formas e dimensões do conhecer.

Todo o encontro começava com o grupo sentado ao redor de um centro preparado. Esse momento inicial era de conversa, troca, debate, informações. Eu perguntava: o que ficou do encontro passado? Lembranças, sentimentos, impressões, sensações, relações... Espaço livre para quem quisesse falar da experiência, já memória, com certo distanciamento, haja vista que passara uma semana entre um encontro e outro. Diante das impressões que fluíam, tentava não aprisionar o discurso nem formalizar o momento. Nesta hora, eu fazia algumas anotações. Também era a ocasião em que, se lembravam, escolhiam uma dança para repetirmos, como primeira dança da noite. Com isso buscava criar um clima de identidade, de envolvimento e descontração – poderia ser mais tranqüilo começar dançando uma dança já conhecida. E foi acertado o encaminhamento.

Estava ensaiando esse movimento, não tinha muito claro por onde ir, como encaminhar. Pois, se de um lado eu pretendia provocar “rupturas” no “modo de fazer”, de certa forma “interditando” ou secundarizando a função preponderante em cursos de formação – o pensamento, a cognição, ao mesmo tempo não acreditava que a experiência passasse apenas pelo sentir. Não queria separar o que tradicionalmente/culturalmente foi separado. Ao advogar a inteireza do ser, a totalidade de ser humano, intuía a necessidade de um tempo em que o sentido viesse à consciência. Um tempo em que cada um pudesse tomar contato e pensar sobre o vivido, sobre o processo – seu e do grupo, sem com isso explicar a experiência. Era preciso considerar a importância de também perceber que algo acontecia, se acontecia e como acontecia, sabendo que alguns poderiam ser/foram tocados pela Dança Circular Sagrada e outros seguiriam indiferentes, outros resistiriam. De diversas maneiras, esse aspecto poderia ser observado: nos comentários, na postura de escuta, presença ou ausência, na empolgação com uma certa dança, na memória trazida à roda, na disposição para a dança.

Depois vinha a harmonização, a preparação para a Dança. Momento de introspecção, normalmente fechando os olhos, todos de mãos dadas, eu dizia algumas palavras convidando ao silêncio e a trazer toda nossa presença para o momento do aqui e agora. Era o início da roda propriamente dita. A passagem de um momento para o outro era bem marcada. Eu tentava

demonstrar, na ação, o que era roda de conversa e o que era roda de dança. Fazendo essa chamada ao centramento, criava/tocava outro ponto do clima necessário para conectar um grupo no propósito da dança. Agora não era mais falar, pensar. Agora era viver, entregar-se a novos enredos, novas histórias trazidas nos passos das danças, nas melodias das músicas que logo preencheriam a sala.

Algumas vezes, entoávamos um mantra ou um cântico, trazendo todos para a mesma sintonia – abrindo um espaço para o sagrado, quebrando certos automatismos do cotidiano. Tomamos consciência que estamos em grupo, mãos dadas na roda, invocando diferentes povos, distintas tradições. E depois, era só a dança! Seguindo uma dinâmica, posso dizer própria do movimento das Danças Circulares Sagradas, então era o momento de focalizar as danças. O grupo já estava junto, mãos dadas, a partir da harmonização. Então eu mostrava a dança que dançaríamos. Essa é uma característica do movimento Danças Circulares Sagradas: aprende-se a dançar dançando na roda. Inicialmente, o focalizador apresenta a dança, segundo seu “jeito”, seu “estilo” – pode introduzir a dança mostrando cada passo ou mostrando a coreografia toda ou colocando a música ou mostrando os passos com a música; indicar o nome da dança, falar da sua procedência, de que povo ou tradição ela faz parte, qual a simbologia envolvida.

Eu geralmente começava dizendo o nome, a origem e mostrava os passos. Quando o grupo demonstrava compreender os passos em toda a coreografia, colocava a música e então dançávamos verdadeiramente. Repassando a dança, chamava atenção para a simbologia traduzida nos gestos, refazendo alguns, se necessário maior refinamento. Falar da simbologia da dança torna-se importante, pois conduz o grupo a outro patamar da dança de roda: não é “apenas” uma ciranda-cirandinha, alegre, brincalhona, festeira. Falar da simbologia dava a dimensão, mais uma vez, do espaço diferenciado que estávamos criando ali na roda, em cada roda. Trazia para a consciência a tradição revisitada, a tradição honrada pela memória contida em passos e música. Era o outro colocado claramente na relação. Poderia dizer: “o outro” entrou na roda! Restava saber: quem viu?

Outra coisa percebi hoje: quando eu falo do significado da dança, quando explicito seu simbolismo, tenho a impressão que o grupo “incorpora” mais, entra mais na dança. Aproxima-se do sagrado? Seria esse o ponto de contato para abrir o caminho da dança circular ao coração? Essa impressão me veio observado as falas e comentários sobre o encontro passado e também com perguntas formuladas pelas alunas, pedindo esclarecimento sobre uma ou outra dança realizada. Poderá ser uma variável?

Propositadamente querendo provocar o estranhamento, para as primeiras rodas escolhi danças distantes de nossa tradição. Nenhuma brasileira. Parecia-me que, ao dançarmos, cantando cantigas brasileiras, conhecidas, não se constituiria aquela outra dimensão de que falei – ficaríamos no reino do conhecido, do seguro, do familiar e perderíamos a oportunidade de entrar

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no labirinto dos povos, percorrendo um lugar que não se sabe onde, nem o que é. Além do que, pretendia evitar a clássica expressão – Vou ensinar para as minhas crianças! – tão comum do professor que aprende uma cantiga.

Aprendendo a cantar a relação com as crianças é direta. Igualmente queria marcar: dançar, no círculo sagrado de que estamos falando, não é uma técnica, que se passa e repassa. É, antes, uma atitude que se vai conquistando. Por isso insistir em não ensinar as danças para as alunas, mas vivenciá- las. Como diria Friedel Kloke-Eibl (2003), é preciso trabalhar a dança, ao contrário de apenas ensiná-la. Neste sentido, tal qual entendo, ensinar é a técnica; trabalhar é o ritual, é abrir o canal para que o poder e a força da Dança Circular Sagrada sejam incorporados, na sua simbologia e na história do povo do qual é legado. É atitude, enfim, de abertura de todos os sentidos e, especial, do aprendizado do silêncio – na prática da “meditação ativa” proposta, possibilitando o encontro de cada um consigo mesmo.

Aprendizado do silêncio... Tal qual ocorreu com o grupo de educadoras de Blumenau, também aqui ficou evidente a dificuldade do grupo em fazer silêncio, em parar de conversar quando se entra na roda, dirigindo a atenção para um foco comum. O tema do silêncio me acompanhou durante todo o processo da pesquisa, foi reincidente em cada um dos grupos com os quais dancei. Por isso assinalo algumas passagens que encontrei no meu caderno de campo, sobre o caminho, lento, do encontro desse grupo com o silêncio.

O grupo já está mais solto, entrando mais na dança. Entretanto, ainda conversam um pouco durante as danças... Parece que é o caso em todo grupo que já se conhece, que convive: quando entram na roda da dança sempre há o que comentar...

Muito me impressiona a atitude das alunas (e de grupos que já se conhecem) na roda da dança – conversam, demoram a fazer silêncio, parecem fechadas para novas experiências, para o diferente, descentradas... Não é de todo esse grupo, claro! (mas tenho observado que é uma característica do pessoal “da educação”...).

(...)

É preciso muito trabalho para provocar a abertura. Minha curiosidade cresce. Quando será (e será que) a turma vai ouvir o silêncio, o seu silêncio?

Depois de um mês e meio de trabalho, no sexto encontro, pude vislumbrar um crescimento, maior integração do grupo entre si e com as danças. Parte do grupo, sempre é bom assinalar.

Parece que o espírito da dança está se evidenciando: na harmonia conquistada, no fluir dos passos, no recolhimento, no silêncio que tomou lugar na roda. Grande parte do grupo, eu sinto, já incorporou

Registro 2 de setembro 2003 Registro 9 de setembro 2003 Registro 23 de setembro 2003

esse espírito. Vê-se na atitude. Há uma turminha, alunas que parecem até visitantes, que ainda permanecem “à margem”. A dança circular ainda não tocou seu coração... Mesmo assim, nesse encontro estou contente – e com o processo todo.

Com o passar dos encontros, na soma das muitas rodas, o grupo, de modo geral, foi crescendo e integrando a simbologia das danças circulares. Nas rodadas de conversas, no início dos encontros, cada vez chegavam mais comentários, mais histórias, com impressões e sentimentos sobre as danças realizadas. Percebia uma ampliação de imagens, conteúdos simbólicos nas falas das alunas. O tempo é senhor, dizem os antigos. E, nesse caso, foi mesmo. Foi preciso dar tempo ao tempo para que a força e o significado da roda da dança pudessem se revelar e começasse a ser apropriado pelo grupo.

É preciso lembrar que nem todas as alunas estavam dançando por escolha. É certo, também, que a parte do grupo que estava mais ligada participava integralmente das danças. Havia, desta parte, uma entrega que fazia a roda girar com leveza e muita, muita harmonia. Normalmente depois do intervalo (que fazíamos em cada encontro, acompanhando uma dinâmica das “aulas comuns”) é que o grupo mais conectado se revelava. A turma diminuía. Nem todas as alunas voltavam para a sala e ficava fácil identificar a pulsação dos que permaneciam na roda. Era muita vibração e disposição para dançar, dirigidos por uma escolha, agora sim visível.

Há muito para pensar. Vida universitária, formação de professores. Tempo e espaço. Exigência e necessidade. Ruptura e criação. Experimentação. Ensaio. Como disse uma aluna, quando conversávamos justamente sobre o espaço, ou não espaço, da dança na universidade: “A dança circular toca lá no fundo, num lugar onde a academia não toca. Por isso é importante ela estar aqui.”

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