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Sobre um dia em que a dança esbarrou no espaço

Naquele dia, 7 de agosto, reencontrei o grupo com quem vinha dançando uma vez por mês, desde o semestre passado. Estávamos em espaço e tempo diferentes dos outros encontros: outra escola, numa sala de aula e no período vespertino. Pode parecer que não faz diferença dançar aqui ou ali, mas faz. E muita!

Ao lembrar daquela tarde, não sei dizer bem o que aconteceu... Mas, enfim, o que foi que se passou? A roda não andava. E era calor: Liga o ventilador! E era o barulho das cornetas da fanfarra da escola em ensaio (Não dava pra mandar desligar...): Vamos lá, deixemos o som lá de fora lá fora mesmo! E dava pra deixar? Tentemos!

O grupo estava disperso, desencontrado. E eu, espantada! Entre um passo e um descompasso pensava: como este grupo não tá dançando harmonizado hoje? Já caminhamos/rodamos bastante. Fizemos tantas rodas legais e fortes. Como análise do já compartilhado e vivido, eu sentia um crescendo no ritmo grupal. E naquela tarde... parecia marco zero!

Fiquei intrigada. Estava paralisada, passada, mexida com a tarde e seus acontecimentos misteriosos, que deixaram marcas evidentes, que desandaram a roda, mas não diziam por que e o que estava influindo... É difícil encarar a falta de sintonia, o não-fluir, a amarração, o peso, a coisa entravada, a falta de jeito, a desarmonia enfim.

É claro que estava mexida com um episódio ocorrido no grupo da manhã, envolvendo uma pessoa isoladamente, logo no início da roda (ou, antes de começá-la), que demandou de mim uma atitude mais pontual, firme e nem tanto simpática. É ruim fazer esse papel, não é? Mas é do mesmo modo necessário... principalmente quando se refere a hábitos e atitudes. Como é difícil construir uma outra postura educativo-profissional! (Pra não deixar muito no ar, o episódio envolveu a questão: liga ou não liga o celular durante as danças!!!). Tudo o que apontei até aqui é uma parte da questão. Acho que tem mais. Sim, e como tem! Tinha, por exemplo, um espaço escolar que oprimia... É, posso identificar uma espécie de opressão que emanava daquela sala – uma sala de pré-escola, repleta de desenhos mimeografados e coloridos pelas crianças. Uma decoração com cartazes estereotipados de menininhos e menininhas, se me recordo bem, colados na parede/lousa. E, principalmente, tinha lembrancinhas confeccionadas para os pais. Podíamos admirar uma série de “camisas” de cartolina, com suas gravatinhas pintadas todas iguais, formando um cartão para homenagear os pais. Na lousa ainda

Registro do dia 15/8/2003

permanecia a frase que certamente todas as crianças copiaram no cartão: pai amo você. Que dor que me deu olhar tudo aquilo! Só ao final, na conversa/avaliação com a equipe, pude compreender um pouco do papel que jogou aquele espaço para o desandar da roda. Foi incrível e assustador perceber como o ambiente estava pesado, carregado: a organização daquele espaço revelava, de certa forma, o tipo de interação que tinha lugar lá dentro; dava pistas da relação pedagógica lá vivida. Que tristeza! Então é isso que estão ensinando às crianças no Pré? É só feiúra... repressão pura da beleza.

E assim vai-se educando esteticamente os meninos e meninas... roubando as expressões, as linguagens e colocando no lugar uma pobreza de expressão e imagem que não alimenta a imaginação de ninguém. Apenas amarra, prende, padroniza... atrofia! E depois, como discutir o gosto? Como pensar que alguém poderá escolher entre isso e aquilo, se na pequenez é submetido a estas barbaridades?

De que adianta falarmos disso e daquilo, de escola sem fronteira, de cidadão crítico, de formação de professores, de ciclos, de repertórios, etc., etc., se não conseguimos problematizar e colocar no centro do processo de construção de outra educação as barbaridades que vem se repetindo dia após dia, ano após ano nas escolas, pré-escolas, CEI’s? Não é possível! Chega de feiúra no mundo!

Como equacionar estes disparates?

A dança é um caminho que vejo – para os adultos. Por isso acredito na proposta que estou desenvolvendo (e pesquisando). Dançando pode-se chegar a amolecer o corpo, a flexibilizar, a tocar o coração para fazê-lo abrir-se pra vida – tão mais rica e ampla e misteriosa que um desenho mimeografado... que os rituais impostos às crianças no dia a dia educativo... que o certo, o formatado, o único, o modelo. Eu confio na dança, no espírito do círculo da dança: já caminhamos bastante. Só temos que cuidar mais do espaço, do tempo, para conquistar a harmonia, o fluir dos movimentos, a inteireza da presença na roda, no embalo da música. Esta é a principal lição tirada daquela tarde.

Nada se dá por acaso, vejam só! Justamente hoje li sobre Shiva, divindade hindu que é o benigno, o grande senhor da criação e da destruição, que, com sua dança frenética, faz o universo se movimentar, do caos à ordenação. Shiva o Deus da dança... fez-me lembrar que a dança foi para aquela sala, naquele dia para que estivéssemos de cara, frente a frente, com os processos arcaicos, forças antigas que precisam ser renovadas, reordenadas. Na dança da educação, renovar os espíritos, movimentar os corpos, despertar a criação. Não parece uma boa leitura para o turbilhão que se abateu naquela tarde sobre o grupo? Não é uma imagem forte essa de Shiva?

Tínhamos que estar lá para ver de perto, para sermos provocadas mais uma vez, até a indignação – que impulsiona a tomada de atitudes. (...)

Tem também as palavras de James Hillman, “deixemos que o coração seja tocado”, pois o pensamento que passa pelo coração pulsa e se expande com mais força! O coração junta e distribui toda a energia da razão e do sentimento como dimensões essenciais de ser humano. Fundamental: ele clama por beleza!

Nos encontros seguintes, fomos para um lugar mais apropriado à dança. Aliás, fomos para uma sala de dança, no Teatro Municipal de Blumenau. Que diferença movimentar-se num lugar bonito, com espelhos, piso de madeira, acolhedor. Retomamos, no novo espaço, o ritmo fluido da dança e foram intensos os encontros lá compartilhados. Nem sempre alegria e sintonia, mas o entorno chamava ao encontro e à sintonia.

Lembro especialmente do dia em que dançamos “a criança de cada um” – trabalhando com objetos pessoais ligados ao tempo de criança de cada um, dançando cantigas de rodas e coreografias que traziam ou evocavam o sentimento da infância. Igualmente foi especial o dia que dançamos “diferentes tradições religiosas” – Budismo, Hinduísmo, Cristianismo e Judaísmo – com coreografias que traziam para a roda povos distintos e seus deuses.

Encontros com muitos povos e com o círculo