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Através da dança: expressão, celebração, participação

“Que aconteceria se, em vez de apenas construirmos nossa vida, tivéssemos a loucura ou a sabedoria de dançá-la? Talvez seja esta uma das perguntas mais importantes formuladas pela juventude, em sua contestação dos objetivos do mundo que lhe estamos legando” (Garaudy, 1980, p.13). Assim o filósofo francês inicia seu livro Dançar a vida, ao que ele segue se perguntando: a dança moderna e a nova dança, do início do século 20 aos anos 1960, com Isadora

Duncan, Ruth Saint-Denis, Martha Graham, Doris Humphrey e outros, não seria um começo de resposta para esse problema vital? Afirmando que a dança é um modo de viver, o filósofo francês reputa à dança moderna a retomada do que foi a dança para os povos, em todos os tempos.

A ‘dança moderna’ retoma assim – depois de quatro séculos de ‘balé clássico’ e vinte séculos de desprezo do corpo por um cristianismo pervertido pelo dualismo platônico – o que foi a dança para todos os povos, em todos os tempos: a expressão, através de movimentos do corpo organizados em seqüências significativas, de experiências que transcendem o poder da palavra e da mímica. A dança é um modo de existir. Não apenas jogo, mas celebração, participação e não espetáculo, a dança está presa à magia e à religião, ao trabalho e à festa, ao amor e à morte. Os homens dançaram todos os momentos solenes de sua existência: a guerra e a paz, o casamento e os funerais, a semeadura e a colheita. (Garaudy, 1980, p. 13)

O livro referido aqui é de 1973 (edição francesa) e, certamente, de lá para cá muitas mudanças e transformações aconteceram no mundo da dança. Entretanto, não é meu objetivo discutir o percurso e a história da dança como linguagem artística. Basta-me identificar essa matriz de significados ligados a ela e tão bem descrita por Garaudy: antes de ser arte e espetáculo, a dança era celebração da existência, expressão da relação do homem com a natureza, a sociedade e seus deuses. O filósofo chama a atenção para a raiz da palavra dança, nas línguas européias. Danza, dance, tanz são derivadas de tan: tensão, em sânscrito. A dança era a vida vivida, intensa, inteira, compartil-

hada, na tensão entre os mistérios humano e divino. “A dança concede uma resposta tanto à chamada da vida, como à da morte, afirmando o misterioso

como uma das dimensões da existência” (Wosien, 1997; p.16)

Em tempos remotos, por meio da dança o homem identificava-se com os ritmos da natureza. Reconhecia e imitava os movimentos e as forças nela presentes.

Treze soldados executando uma dança circular.

Vasilha de cerâmica pintada. Atenas, cerca de 775-750 a. C. Antikensammlungen, Munich (WOSIEN, Maria- Gabriele. Danças Sagradas um encontro com os Deuses,

No Egito de seis mil anos atrás, quando a noite chegava ao final e, com a madrugada, se apagavam os astros cuja dança celeste era a própria imagem da ordem da natureza, o homem, angustiado por não mais perceber esta imagem, entrava em cena para manter a ordem celeste, imitando-a: começava então a dança da estrela da manhã, com suas rondas; e este balé simbólico, contemporâneo do nascimento da astro- nomia, ensinava aos filhos do homem, pelo movimento figurado dos planetas, as leis que regiam o ciclo harmonioso dos dias e das estações, as leis que permitiam prever e portanto controlar as cheias do Nilo, tornando-as já não destrutivas, mas fecundantes, com a preparação, em tempo útil, de diques e canais. (Garaudy, 1980, p.14-15)

Mais do que apenas expressão e celebração da íntima relação entre homem e natureza, a dança evoca nas suas origens um caráter comunitário, ligado a todos os aspectos da sobrevivência do grupo, seja no trabalho, seja no culto explícito aos deuses. Por indicar claramente a evocação do trabalho na dança, cito outra passagem de Garaudy, em que ele se reporta a Atenas, quando ainda era uma pequena aldeia de agricultores:

... todo o trigo era trazido à praça para a debulha e as uvas para a pisa. Os feixes de trigo eram dispostos sobre uma eira de pedra e os cachos de uvas acumulados em enormes lagares, para serem es- magados com os pés. Para tornar-se mais coordenado, o movimento se fez rítmico: os pisadores deslocavam-se em ritmo, formando uma ronda escandida por seus próprios cantos. (...) Os pisadores que iriam substituir os que estavam em ação ficavam sentados à volta, em bancos de pedra. Em torno destes, o resto da população formava uma segunda fileira sentada em degraus, e outras sucessivamente, para participar dessas danças, desses cantos, dessa possessão divina. (Garaudy, 1980, p. 17).

A dança, antes de ser uma arte independente, esteve estreitamente vinculada a conteúdos e práticas religiosas e de cultos – parte de rituais e cerimônias de caráter místico e religioso.

As danças e danças de roda eram um bem comum de um grupo social e, como elemento de cultura, eram passadas de geração a geração, como a transmissão da linguagem se dá de pais para filhos desde os tempos mais antigos. (Wosien, 2000).

Esse mesmo caráter vamos encontrar nas manifestações de povos que preservaram suas raízes, guardando vivas, na tradição, as velhas danças de seus antepassados, quando todos dançavam. É dessa constatação que vou partir para destacar alguns aspectos das Danças Circulares Sagradas que, se podem ser consideradas um movimento recente, trazem em suas raízes esse passado longínquo, a ancestralidade das danças dos povos, de caráter comunitário e gregário. Relembram o tempo em que dançar era celebração, participação, encontro e reafirmação da vida. Reencontram e

Dança da vindima.

Peça em terracota Mirene, Ásia Menor, época romana. (WOSIEN, Maria- Gabriele. Op. cit.).

recuperam a dança como comunhão e transcendência, quando o homem, através do movimento do seu próprio corpo, da música e da repetição de passos comunga com a essência, o indizível, o espiritual, o sagrado. Vem daquele tempo o círculo dançante, onde todos participam: pois nas Danças Circulares não há platéia. Qualquer um pode dançar. Basta entrar na roda e abrir-se para o encontro além da palavra.

Entre a realidade das tradições, das velhas danças dos povos, preservadas em algumas regiões do planeta e a realidade contemporânea, em constante mudança, está o homem desenraizado e, ao mesmo tempo, desejoso de restabelecer a conexão com dimensões negadas da existência, que se es- condem ou foram esquecidas no passado. É assim que renasce no homem a necessidade e o desejo de dançar – abrindo canais de contato com a alma dos povos – movimento que vai abrindo o contato com sua própria alma. Ao falar dessa necessidade e desejo renascidos, lembro das palavras que Maurice Béjart escreveu no prefácio do livro Dançar a vida, citado anterior-

mente: “É um sinal dos tempos ver um filósofo como Roger Garaudy, que é ao mesmo tempo homem de ação, de repente voltar-se para os problemas da dança e tratá-los, a um só tempo, com clareza, rigor e autêntico lirismo.” (Béjart in Garaudy, 1980, p.07). Ao ler as palavras é um sinal dos tempos, me

dei conta dos tempos: o livro é de 1973, como já fiz referência; em 1974 Maria-Gabriele Wosien publica Danças Sagradas: o encontro com os Deuses e

em 1976 Bernhard Wosien vai à Findhorn levando um conjunto de danças para apresentar e compartilhar com a comunidade do norte da Escócia. De repente, quando reuni as datas, ressoaram com mais força as palavras de Béjart. Não pude deixar de exclamar ah! e fiquei a imaginar que estava aí um caso de sincronicidade. Só podia mesmo ser sinal dos tempos!

Ao nos referirmos às Danças Circulares sempre associaremos pelo menos dois nomes: Bernhard Wosien e Findhorn – um homem e uma comuni- dade. Nomes que significativamente marcam a origem do movimento hoje conhecido como Danças Circulares Sagradas. Como dizemos no círculo das danças: Bernhard Wosien foi o pai e a Comunidade de Findhorn foi a mãe que recebeu as danças, acolheu a semente, semeou em seu solo e compartilhou os frutos com outras regiões da Europa e, mais tarde com o mundo. (Ramos, 2002)

Bailarinos acrobáticos.

Mural.

Tumba de mehu, Sakara, Egito.

Cerca de 2500-2350 a. C. (WOSIEN, Maria- Gabriele. Op. cit.).