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Sobre olhares e palavras: o que é conhecer arte?

É pena que uma pintura tão linda seja apenas para o padeiro – lastimou ela, um dia. (...).

O padeiro também gostou do quadro. O dia em que veio ver foi bem diferente da visita formal de van Ruijven e a esposa, meses antes. O padeiro trouxe a família inteira, incluindo várias crianças e uma ou duas irmãs. Era um homem alegre, com o rosto sempre vermelho pelo calor de seus fornos e o cabelo parecendo ter sido passado na farinha. Recusou o vinho que Maria Thins ofereceu, preferiu uma caneca de cerveja.

(...)

O padeiro participou que estava satisfeito com o quadro: Minha filha está bem e isso basta – disse ele.

Mais tarde, Maria Thins lastimou de novo que ele não olhava o quadro com a atenção que van Ruijven olharia e que tinha os sentidos embotados pela cerveja e a bagunça que o cercava. Discordei, mas não disse. Achei que o padeiro tivera uma reação sincera. Van Ruijven fazia um esforço quando via os quadros, com suas palavras melosas e caras estudadas. Tinha certeza de que havia uma platéia assistindo, enquanto o padeiro apenas disse o que achava. (Chevalier, 2002; pp. 129-130).

As observações de Griet, a criada do pintor Vermeer, ao pontuar e diferenciar a atitude de van Ruijven, o mecenas (diante dos quadros que encomendava ao pintor) e a atitude do padeiro (diante do quadro em que estava pintada sua filha), fizeram-me lembrar das palavras de Gombrich, ao final da introdução de “A história da arte”. O que ele diz? “Eu gostaria de ajudar a abrir olhos, não a soltar línguas”. (Gombrich, 1999; p.37) Desde que li a tal introdução, num tempo em que estava fazendo aulas de desenho, procurando meu traço perdido e esquecido não sei onde, encarando meu desajeitamento, aquelas palavras do historiador me acompanham, me provocam e, de certa forma, me encorajam a seguir minha aventura em busca de novos olhares, novas paisagens enfim, do cultivo da minha expressão sensível. Quando Gombrich fala da sua intenção com o livro, é como se ele me dissesse: no território da produção artística, vá e veja e ache o que quiser, mas veja! Ele me diz também que, para a apreciação, é importante o conhecimento histórico sobre arte, mas que uma coisa é o conhecimento, outra coisa é o olhar, estar diante da obra.

Tanto o historiador – com certas palavras no seu livro, quanto a empregada de Veermer – com seu comentário no romance, me falam de olhares. Mais que isso, me fazem pensar e falar também de olhares. Meus. Deles. Outros. Olhares negados, conquistados. Olhares passivos, ativados. Olhares apáticos, curiosos. Olhares que falam do encontro com a arte, do cultivo da dúvida contra as certezas pedagógicas. Olhares que

são experiências, que contam histórias de ser professora de professores. Para seguir nesta história, volto à “moça com brincos de pérola”, o romance. Lá está Griet, sensível e sincera, que compreendia o padeiro e sua atitude de aprovação diante do retrato da filha recém-pintado. O padeiro olhou o quadro, identificou no retrato sua filha e gostou do que viu. Pronto. Simples? Não. Que olhar foi o seu? Um olhar afetivo, amoroso, talvez... Um olhar que não precisou ser traduzido em palavras. O padeiro olhou. E era tudo. Satisfação. Pouco disse a respeito do que vira, apenas afirmou: “Minha filha está bem”. Qual o significado e abrangência dessas palavras? Revelariam o que lhe passava na alma e na mente ao olhar o retrato? Nem a fala nem a cara poderiam dizer-nos. O que se passa entre uma pessoa e uma obra sempre será mais secreto, mais complexo que o dizível. Maria Thins, refinada dama, senhora da casa, sogra do pintor, viu ignorância e descaso no padeiro. A criada, entretanto, percebeu satisfação e sinceridade; ele simplesmente disse o que achava. De toda forma, somente especulações.

O que mudaria para ele, para a sua vida e para as pessoas que lá estavam se houvesse proferido um discurso acerca da pintura, impondo-se aos presentes com um ar de experiente conhecedor de arte? Se empregasse maneiras “estudadas” ao ver e falar, o padeiro talvez ganhasse o reconhecimento da senhora. Ela, a julgar pelos seus comentários e atitudes, tinha poder para definir que pessoas eram dignas de consumirem arte; como que a partir de um distintivo de classe, determinante de um gosto e de um bom gosto, poderia classificar quem dispunha de modos apropriados e conhecimento adequado para apreciar uma pintura; enfim, aquela senhora poderia enquadrar quem possuía sentidos apurados para falar sobre arte. Eis uma intriga que tem me acompanhado e, por meio das cenas do romance, aqui destacadas, dou vazão: a apreciação de uma obra passa, necessariamente, por falar sobre ela? O ato da fruição só se completa com uma idéia formulada, uma palavra pronunciada? Para ver arte é preciso falar sobre arte? Por que é tão comum ouvirmos: “não entendo de arte, por isso não vou ao museu!”?

Entre professores, não só é comum essa afirmação, como a expressão ganha um sentido de queixa-denúncia. Parece até que a arte tem dono... Que o aprendizado ou o conhecimento que uma obra traz só pode ser traduzido com a palavra, com uma descrição, com a objetivação de um discurso coerente proveniente de um conhecimento pré-concebido, qual seja o conhecimento histórico, teoria da arte. Quem não domina tal saber não pode dizer, não entende, e por fim não pode entrar no museu para ver arte (no caso das artes visuais). Parece.

Assim como o romance “Moça com brinco de pérola” despertou em mim a sensibilidade e o pensamento para a intriga que envolve a apreciação da arte, desencadeando perguntas que me chamavam a refletir sobre a experiência do olhar, a leitura do livro “Esculpir o tempo”, já o título poesia, igualmente me levou para esse território. No livro de Tarkovski

(1998, p.45), leio que a arte é para ser sentida, causar impacto emocional através da “energia espiritual” impregnada na obra: “A arte atua, sobretudo na alma, moldando sua estrutura espiritual”. Neste caso, se é coisa da alma, para que falar? Para que discursar? (Estariam certos o padeiro e a criada...).

Quando afirma que a arte não ensina nada, apenas pode tornar a alma humana receptiva ao bem, oferecendo “alimento – um impulso, um pretexto para a experiência espiritual” (Tarkovski, 1998; p.55), causa-me espanto. Ao mesmo tempo, senti-me reconfortada ao pensar com ele a perspectiva da emoção, da espiritualidade, da inteireza do ser, que pode ser provocada e experimentada no encontro com a obra. “Ao se emocionar com uma obra-prima, uma pessoa começa a ouvir em si própria aquele mesmo chamado da verdade que levou o artista a criá-la.”( Tarkovski, 1998; p.49).

A arte é comunicada através de um “idioma emocionalmente contagioso...” (Tarkovski, 1998; p.61). Como pensar na corrente de comunicação produzida num idioma que contagia pela emoção, quando ativamos ou priorizamos a razão, por meio do discurso sobre a obra, coerente e linear, captado no âmbito da cognição?

Se o idioma da arte é do campo espiritual, só pode ser captado/partilhado à medida que a pessoa aceita o convite para entrar na obra, ativando seus sentidos, não deixando apenas a razão sobrepor-se, para permitir que também a emoção apareça e corra livre. O espaço da arte é o espaço de ser humano – tornar-se humano. E o humano não se define por exclusividades – ou isso ou aquilo. Na complexidade de ser, opostos se fazem presentes e há que acioná-los, torná-los conscientes, para que a experiência de ser humano se amplie, se complete.

Posso concluir, então, que não há uma linearidade no processo de olhar a obra para “fazê-la falar”. Não dá para delimitar: começa na razão, começa na emoção. Tudo se junta e, além de tudo, como somos diferentes uns dos outros – cada qual com sua história, cada qual com suas vivências e experiências – a porta de entrada para o encontro com a obra será também diferenciada. O que faz sentido para mim não fará, necessariamente, sentido para o outro. Se há na obra um significado, dado e atribuído pelo artista- produtor, haverá múltiplos sentidos, criados pelo receptor, no universo que se abre do contato com a obra.

Não será o caso de se pensar que apenas vale a emoção, sentir ou não a obra. Se falo que razão e sensibilidade estão em jogo na produção de sentidos, é porque o corpo inteiro está lá, trabalhando, agindo no universo simbólico provocado pela obra. O essencial, porém, está no campo da imaginação. Qualquer obra, para que seja dada à fruição, para que fale ao contemplador, puxa esse fio da imaginação. E qual será o labirinto que cada um vai percorrer para compreendê-la? Que relações fará? Que lembranças evocará? Que memórias acolherá? Que conhecimentos, que

dados, que informações identificará ou adicionará a seu acervo?

Nesta direção, não teria por que alguém dizer que não vai a exposições de arte, ou não visita museus porque não entende. De um modo ou outro “a obra está aberta” para a aproximação do espectador. Há o desejo? Então o encontro poderá acontecer e produzir acolhimentos diversos, resultando diferentes compreensões. Mas não é tão simples, sei..