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Aprendizes somos todos: o que a dança circular sagrada ensina?

Ao identificar a presença da criança atuando na roda da dança entre os educadores e ao tomá-la como símbolo de renovação e transformação, não posso deixar de falar da minha criança provocada e da dimensão-aprendiz em mim constelada. Meu reencontro com ela não começou propriamente na dança, mas as rodas dançantes fazem parte de um espaço-tempo a partir do qual minha criança foi convidada a aparecer com mais força, me conduzindo a lugares indizíveis dentro e fora de mim.

Marca de um tempo em que começava a tomar contato com outras partes de mim mesma, combatendo certa rigidez instalada no cotidiano, são os versos atribuídos a Fernando Pessoa, apropriados por mim como sinalização do necessário retorno:

A criança que fui, chora na estrada deixei-a ali quando vim ser quem sou mas hoje vendo que o que sou é nada quero buscar quem fui, onde ficou.

Desde que ouvi esse poema, perde-se a data na memória, nunca mais esqueci. Não sei precisar se são exatamente esses os versos que, apreendidos na oralidade, aparecem aqui sem citação de fonte. Significativo é o fato de continuarem a reverberar dentro de mim, de certa forma a criança me empurrando ao encontro com outras figuras que me ajudam a ma tornar o que sou. No capítulo dois falei do toque do Louco, sentido através de uma dança em especial. Percebo agora que essas preciosas figuras simbólicas estão me conduzindo às origens, à “Floresta de Ouro”, reino da imaginação através do qual perambulam.

O homem precisa voltar às suas origens, pessoais e raciais, e aprender de novo as verdades da imaginação. E nessa tarefa seus estranhos instrutores são a criança, que mal entrou no mundo do tempo e do espaço, e o louco, que apenas escapou dele. Pois somente esses dois estão, até certo ponto, libertados da pressão desapiedada dos acontecimentos diários, o impacto incessante dos sentidos externos, que oprimem o resto da humanidade. Esse curioso par viaja ligeiro e empreende jornadas distantes e solitárias, às vezes trazendo, ao voltar, um ramo luzente da Floresta de Ouro pela qual vagueou. (McGlashan apud Nichols, 1993; p.51)

Para trazer de lá, daquela floresta, um “ramo luzente”, é necessário sair em busca, aproximar e integrar o que insistimos em separar; é preciso saber-se ignorante, aprendiz, e entregar-se à aventura, à viagem conduzida pelo par. Gosto de pensar que o espírito novidadeiro e brincalhão da criança fez-me entrar na dança.

Antes, porém, de entrar na roda com os educadores, encaminhando a pesquisa, eu entrei em muitas outras rodas, experimentando, vivendo, aprendendo. Mesmo que os papéis se diluam no círculo, focalizar um grupo é deveras diferente de compartilhar das danças focalizadas por outrem. Numa e noutra situação, entretanto, estamos vivendo a polaridade mestre-aprendiz, sem dúvida.

Na trilha do encontro com a criança, na dança, outras tantas aprendizagens posso reconhecer. A coragem de encarar o não-saber e se entregar à aventura do não-sei-o-que-virá. Perceber e aceitar o erro, vislumbrando a possibilidade real do acerto. Aceitar a imperfeição e viver o momento- aqui-agora de estar em movimento, com o grupo, buscando a inteireza, mais que a perfeição. Eis a criança como símbolo: ela vai, não teme o tempo e a lei; vai, experimenta, cai, levanta e não se rende às dificuldades. Na dança circular, o reencontro comigo, reinvenção da minha vida, aproximando dimensões até então segmentadas ou negadas; sentimento, intuição. O renascimento do sagrado em mim, abertura para acolher os mistérios da vida. A descoberta da alma. A dança também me preparou para aceitar e compreender a morte: não negar a morte e celebrar a vida. Vida-Morte-Renascimento, ciclos da vida. É a roda que gira. É o círculo que move o mundo.

Mais que tudo, com as Danças Circulares Sagradas, eu aprendi a agradecer. Talvez esse tenha sido o aprendizado fundamental, o que me colocou em outro nível de relação e compreensão da dança e da vida.

Tão essencial aprendizado não se deu de imediato, assim como não foi imediatamente que compreendi seu conteúdo. Foi preciso um longo processo de entrega para que o efeito das rodas dançantes se pronunciasse e, depois, eu pudesse tomar consciência do acontecido. Como quem recebe uma graça, no toque sutil da dança, experimentei a expansão de meu ser na gratidão.

Sem medo de ser simplista, há, em mim, um antes e um depois das danças circulares. Tem um antes que reclama muito da vida. Vale de lágrimas e queixas. Peso, dificuldade, caminho tortuoso para conquistas, que pediam sempre um esforço redobrado. Nada chegava de graça. Era preciso pagar um alto preço pelos ganhos. Como todos, ao meu redor, eram contemplados pela bonança, facilmente? Todos, felizes. Eu, abandonada. O mundo é cruel. Pobre de mim. Ai. Ai. Esboço de auto-imagem: um ser com uma enorme falta, melancólico, cobrando da vida a falta de sorte. No depois, o auto-retrato que esboço não se sustenta. Há muito mais, posso ver. A vida é constituída de polaridades. Para além dos meus ais, identifico sinais de uma força que me impulsionava a seguir. A despeito da falta e da dificuldade, não me deixava desistir. E eu continuava. Não parava de caminhar. Só que eu não era leve. Abraçava a dor. Caminhava sobre pedregulhos. Dos presentes da vida, só conseguia perceber o quanto

custou ganhá-los. Sim, muito obrigada! Não agradecia com o coração pleno de felicidade. Não considerava, enfim, um presente da vida, a vida mesma.

Estou entrando por veredas delicadas, que talvez desvirtuem o sentido do texto. Mas considero importante apontar e localizar (até onde é possível perceber e sentir) as lições da dança circular sagrada, meu aprendizado e a inevitável transformação em mim. Claro que não foi apenas a dança, pois, hoje vejo, a vida é circular. Quando colocamos a roda a girar, se um aspecto que estava estagnado ganha movimento, tudo o mais também entra na roda, gira, em espirais ascendentes, rumo ao crescimento, ao equilíbrio, ao centro, à integração de ser. Sincronicidade. As danças me chegaram no momento em que podia ser receptiva a elas, num momento em que minha vida estava se transformando, tendo na base uma grande perda, embora eu não tivesse ainda consciência de tudo. De certa forma, a dança me escolheu e acolheu. Aprender a agradecer foi essencial para continuar.

Trago ainda comigo, feito marca profunda de preciosa descoberta, a sensação e o sentimento experimentados naquele dia, dançando a coreografia Cura, equilíbrio, agradecimento16. Foi um tempo, um instante que me aconteceu. No reino do conhecido, irrompe o inesperado. Todo o corpo sente. Choro um choro contido. A cada volta da roda, dançando ao som de Pachelbel, choro mais. O que se passava? Lá não era hora de procurar explicação. Vivi. Mas estranhava: a dança era uma “velha conhecida”, tantas vezes dançada, tantas vezes focalizada por mim, inclusive. Por que, então, depois de tantos e distintos tempos e lugares dançados, aquela reação? Espanto. Através da própria dança, que é longa, experimentei a volta à calma. No outro dia, voltando ao grupo com o qual eu participava de um curso de formação e no qual eu experimentara aquele “estranhamento emocional”, a revelação se deu: por tanto tempo eu não soubera agradecer! Não foi naquela dança e naquele dia que aprendi ou descobri a gratidão, mas foi através dela que tomei consciência do que as danças circulares vinham provocando em mim, com seus gestos rituais. A forma me levou ao conteúdo. Repetir a forma me levou à consciência. Reconheci fora o que estava agora dentro. A força que tem o gesto! Caminhar. Balançar. Parar. Recolher as mãos sobre o coração, cabeça e corpo levemente inclinados para a terra, devoção, humildade, agradecimento. A cura e o equilíbrio, como sugere o nome da dança, podem vir da gratidão. Tão profundamente simples que requer aprendizado. Viver é maior.

Só agora percebo outras conexões: essa dança foi uma das preferidas entre os grupos de educadoras com os quais dancei no processo da pesquisa. Era muito solicitada, confiro no meu caderno de campo. Além das minhas anotações, depois de ter estabelecido relações no tempo do agora, encontrei as palavras de uma aluna que entrou na roda e sentiu o toque da dança. Seus escritos soaram para mim como um verdadeiro testemunho da experiência.

16 A dança Cura, equilíbrio,

agradecimento é uma

coreografia de Maria- Gabriele Wosien e Bernhard Wosien para

Pachelbel Canon. Foi uma

das primeiras danças que aprendi no meu reencontro com as Danças Circulares Sagradas, em 2002. Fonte: Renata Ramos, São Paulo-

SP, com quem aprendi a coreografia e inúmeras vezes dancei.