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Adicções, psicossoma e “técnica ativa”

No documento Adicções (páginas 170-178)

Bem, no que se refere às adicções, percebemos que as breves notas de Freud sobre o tema, publicadas nesse período – quando

compreendidas sob o pano de fundo da teoria das neuroses atuais –, nos permitem reconhecer aqui uma espécie de gênese do estudo das adicções sob a ótica da articulação psicossomática.

Em Psicoterapia, Freud lembrou a interferência das drogas psicotrópicas no circuito psiquessoma, assinalando que a in- trodução de tóxicos no cérebro perturba as funções psíquicas e pode “[...] despertar determinados estados patológicos” (1890, p. 1015). As drogas, assim, ao agir no aparelho somático, produzem efeitos no psíquico, “despertando”, inclusive, sua dimensão patológica. É claro que essa simples descrição não abarca o enigma central: o que faz um indivíduo sucumbir à compulsão ao objeto? Mas, ainda assim, ela é importante por conter uma intuição sobre uma das dimensões fundamentais do problema: as toxicomanias implicam um apelo a um circuito direto – um “curto circuito”, uma “ligação direta” – do soma à psique, que só é passível de ser atingido por uma intoxicação química. Essa ação única e específica é possibilitada, como indicam as pesquisas, por uma espécie de mimetização da ação de substâncias existentes no próprio sistema nervoso. Ao produzir efeitos psíquicos pela ação direta no somático, o

curto- circuito dessa ligação direta tem como corolário a atrofia

progressiva e sistemática da elaboração psíquica das excitações,

em uma espécie de ataque ao trabalho do pensamento4. Assim,

o toxicômano obriga o psicanalista a recolocar na ordem do dia a dupla face – somática e psíquica – dos caminhos da libido,

4 Essa afirmação é abusiva em sua generalização, mas nos serve aqui, por ora, em

e resgatar a hipótese um pouco empoeirada do quimismo do

sexual e da toxicidadade da libido5. O apelo ao somático não

pode ser mais ignorado.

Também levamos algumas lições e indagações, oriundas des- se período, em relação à terapêutica da adicções. Freud já havia defendido, em 1890, o tratamento psicoterápico das adicções. Este se assenta no poder sugestivo da palavra do médico, e com- preende sempre o risco dos efeitos colaterais: a dependência em relação a ele. Neste aspecto, a hipnose é, segundo Freud, “uma faca de dois gumes”. Em 1898, Freud enfatizou que as “curas de abstinência” só serão bem-sucedidas se partirem de uma compreensão de sua etiologia sexual e se, portanto, aplicarem uma terapêutica que se dirija a esse fator. Esta continua sendo psicoterápica e dependendo do poder mágico da palavra do médico, mas toma a forma de uma prescrição educativa sobre os hábitos sexuais. Pelo fato de as adicções serem assimiladas ao modelo das neuroses atuais, a indicação de tratamento será médico-psicoterápica (Freud não fala mais no uso de meios químicos, abandonados com o declínio do projeto cocaína), mas não psicanalítica. Esta última, concebida então exclusivamente como um trabalho de desvendamento de sentidos simbólicos ocultos do sexual psíquico, não se prestaria ao tratamento das neuroses atuais e, por dedução, das adicções.

5 Deve notar-se que o modelo da neurose atual, ao colocar o assento no quimismo

do sexual e na toxicidade da libido, adequa-se mais à toxicomania – portanto, a

uma das formas de adicção. À medida que avançamos, na história das ideias, para

o modelo da relação de objeto – seja em Freud ou depois dele – notamos que tal modelo nos permite compreender melhor as adicções de modo mais geral, mesmo que nele se conserve o fundo sexual e o pulsional do investimento objetal.

Ora, estas proposições nos fornecem, por um lado, uma direção inicial para a compreensão e para a terapêutica da adicções, mas representam também um freio na investigação psicanalítica das adicções. Pode compreender-se o relativo desinteresse sobre o tema que perdurou por muito tempo; além das enormes dificuldades enfrentadas pelo clínico que se propõe a tratar de pacientes adictos, a concepção de adicção aparentada

às neuroses atuais contribuiu para uma certa proscrição do tema.

Com o passar do tempo, conforme o valor do “fator atual” foi sendo resgatado e a concepção da terapêutica psicanalítica ampliada para abarcar modos de funcionamento psíquico não psiconeuróticos, esse estado de coisas pôde se alterar.

Algumas noções fundamentais desse período podem, assim, ser resgatadas hoje, ganhando, a posteriori, uma significação mais clara. Em primeiro lugar, deve-se cuidar de não aplicar o modelo do sentido sintoma psiconeurótico para o sintoma adictivo. O fator atual e o curto-circuito da ligação direta psique-soma parecem cumprir nesses casos, em contraste, um papel proeminente. A noção de hábito é também aqui funda- mental; ela pode ser pensada segundo o modelo dos “hábitos sexuais” e seus desvios, formulação que se baseia em uma concepção higiênica (a existência de um “regime saudável”) que é por muitos criticada.

Esta será uma via trilhada por Ferenczi (1925) muitos anos depois, em seu estudo sobre a “metapsicologia do hábito” e a “técnica ativa”. As decorrências de sua proposta para uma pos- sível terapêutica das adicções é notável: certos “maus hábitos”,

conforme se cristalizam, podem exigir do analista uma “técnica ativa” que almeje, através de proibições e injunções, liberar a libido estancada e indisponibilizada para servir ao trabalho de análise. É curioso notar que, se a “mudança de hábito” era buscada, logo no início, pela influência hipnótica, essa mesma meta foi, em certo momento, abraçada pela “técnica ativa”. No lugar da hipnose – e nos momentos em que a associação livre parece mostrar-se impotente –, surge a técnica ativa, indicando que uma vez mais o poder mágico da palavra do médico precisa ser invocado ali onde o trabalho de interpretação é ineficaz.

A aproximação entre técnica ativa e adicções procede em vários sentidos, especialmente em relação ao problema crucial da abstinência. A técnica ativa procura instaurar uma absti- nência para pôr em movimento uma análise estagnada; mas e quando a impossibilidade de abstinência é o cerne do problema e a alma do sintoma, como nas adicções? O tratamento das adicções instaura necessariamente uma crise do dispositivo psica-

nalítico da cura pela fala, o que nos obriga a apelar a outras forças

de influência “direta” do terapeuta. Afinal, a abordagem psica- nalítica pode fazer frente ao apelo da ligação direta do somático ao psíquico, ou deveríamos decretar mais uma inanalisibili- dade? Recordemos que, sobre isso, Freud escreveu a Ferenczi que os viciados não são muito adequados para o tratamento psicanalítico, pois qualquer dificuldade na análise leva-os a

recorrer novamente à droga6. Ora, o problema da abordagem

terapêutica das adicções através da psicanálise permanece na ordem do dia. Podemos afirmar, hoje, com segurança, que as adicções se inscrevem em uma série de problemáticas clínicas que têm desafiado o dispositivo clássico da psicanálise, e que têm colocando aos analistas a tarefa urgente de adaptar sua “técnica” às novas circunstâncias que se apresentam.

* * *

A aproximação entre adicções e neurose atual nos leva a olhar com desconfiança para todo esforço de compreender o “sentido do sintoma” adictivo. Ela nos leva, também, a ratificar e, ao mesmo tempo, a retificar a crítica que tem sido feita nos últimos anos sobre o “esquecimento”, no interior da própria psicanálise, do papel da sexualidade na etiologia das neuroses e na constituição psíquica do homem. Trata-se de reafirmar o papel importante desse fator, mas também de ressaltar que um certo tipo de apagamento do sexual se deu, sobretudo, em relação à etiologia atual e ao somático da libido. Os modelos biológicos – como aquele utilizado por Freud em Além do

princípio do prazer, ou a “metabiologia” de Ferenczi – são em

geral tomados como alegorias metafóricas do psíquico, e um pensamento sobre a face somática strictu sensu ficou obscureci- do. Ora, uma abordagem psicanalítica das adicções que leve em conta a dupla face psiquessoma em jogo contribui certamente para resgatar esses valores. Afinal, qualquer um que queira se aproximar da clínica das adicções não pode negligenciar o

poder químico do tóxico em atacar diretamente a articulação somatopsíquica, e talvez se sinta impelido a revisitar a dimen- são da teoria freudiana que concebe o somático e o químico imbricados no psíquico e no sexual.

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exualidade e adicções

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neurose e a Perversão

No capítulo anterior, acompanhamos a gênese de um pen- samento psicanalítico sobre as adicções baseado no modelo das neuroses atuais. Mas ainda que esse modelo hoje nos pareça interessante e sugestivo, ele não faz parte do campo hegemô- nico da psicanálise; as menções seguintes de Freud às adicções estão apoiadas mais no psíquico do sexual, e sugerem uma aproximação com a psiconeurose – e, mais particularmente,

com seu negativo, a perversão7.

A abordagem freudiana da sexualidade que ficou mais consagrada foi aquela que surgiu na primeira década do século XX, e que se traduziu na publicação dos Três ensaios sobre a se-

xualidade. Aqui reconhecemos uma verdadeira teoria do sexual.

Ora, ao definir a neurose como o negativo da perversão, Freud abriu um novo caminho para a psicanálise das adicções. Pois

7 Nessa discussão, é sempre bom levar em conta as observações de Freud sobre

as “neuroses mistas”: afinal, as neuroses comportam uma complexidade tal que a distinção estrita entre duas formas psicopatológicas “puras” – atual ou psiconeu- rose – se mostra por demais limitadora.

o fenômeno adictivo pode ser referido, por um lado, à intensi- dade particularmente persistente de certos erotismos parciais e, por outro, à desarticulação da organização sexual genital calcada no trabalho do recalcamento. Essa visão foi abraçada por Abraham, que escreveu o primeiro trabalho inteiramente dedicado ao estudo da adicções da história da psicanálise. O álcool desfaz o trabalho do recalcamento e as sublimações, revelando a sexualidade perversa que ali estava subjacente; eis a hipótese de base do trabalho. O que acrescentamos aqui é que Abraham negligenciou justamente a forma de perversão que mais nos fala de perto ao fenômeno adictivo: o fetichismo, pois tanto nele quanto nas adicções estamos diante de uma fixação exacerbada que subverte, de saída, a lei da contingência do objeto.

No documento Adicções (páginas 170-178)