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A “droga mágica” na vida íntima do jovem Freud

No documento Adicções (páginas 91-98)

Se a cocaína foi uma “droga mágica” no sentido de prome- ter fama e acesso à mulher amada, ela também o foi por seu efeito direto no humor de Freud. A cocaína foi utilizada por ele como um antidepressivo. Durante muitos anos, Freud sofreu de depressões, fadiga e apatia, sintomas reconhecidamente de natureza neurótica que ganharam depois a forma de ataques

de angústia, e que foram ulteriormente dominados com a au- toanálise. O nosso conhecimento atual sobre a ação da cocaína e seu efeito euforizante, semelhante a uma reação maníaca, não deixa dúvida quanto à necessidade de alguns indivíduos de recorrer a esse tipo de “defesa química” a fim de debelar suas angústias depressivas. Assim, o próprio jovem Freud es- creveu: “[...] em minha última grave depressão, tomei coca de novo e uma pequena dose levou-me às alturas, de um modo maravilhoso. Agora mesmo estou ocupado a coligir a literatura para uma canção de louvor a essa substância mágica” (carta a Martha de 2 de junho de 1884, apud JONES, 1953, p. 95). Esta descrição não difere de certos depoimentos de usuários de cocaína; notemos aqui, sobretudo, que não se trata de uma simples descrição objetiva e “científica” dos efeitos da droga, mas também de um entusiasmo eufórico e tendencioso em relação ao objeto-droga, típico dos encantados pelo “canto da sereia” da mesma. Alguns anos depois, durante sua estada em Paris, em 1886, Freud usava cocaína ao frequentar as recepções na mansão de Charcot, já que se sentia desajeitado e inseguro de sua fluência no francês; ao retornar de um desses encontros sociais, escreveu a Martha: “Graças a Deus, acabou. [...] Um tédio de matar, foi só aquela pitada de cocaína que me segurou”

(GAY, 1989, p. 62)4.

4 Segundo Scheidt, no período de Paris, Freud não receitou cocaína aos pacien-

tes por influência de Charcot, mas usou-a com frequência em si mesmo. Pelo menos quatro cartas escritas a Martha sofreram influência da droga – como se depreende por seu conteúdo, pelo tipo de letra e pela forma exaltada de expressão. Ao mesmo tempo, a depressão de Freud era de fato marcante: “Os cinco meses

Ao lado da euforia mental, Freud também experimentava um aumento de vigor físico e libidinal que parecia apreciar. Algumas cartas à noiva foram escritas sob efeito da droga, o que provavelmente lhe permitiu descrever-se de modo de- sinibido como “[...] um grande e selvagem homem que tem cocaína em seu corpo”, e dizer: “[...] vou beijá-la até você ficar com as faces bem vermelhas [...]” (GAY, 1989, p. 62). Em sua monografia, Freud havia assinalado o efeito afrodisíaco da cocaína, e chegou a considerar o seu uso terapêutico como remédio para a “fraqueza funcional”: “[...] dentre as pessoas a quem administrei a coca, três relataram uma violenta excitação sexual que atribuíram, sem hesitação, à droga” (FREUD, 1884, p. 73). Ora, sua libido era liberada em seu romance epistolar com Martha, ao “destravar-lhe a língua”, como na carta de 2 de fevereiro de 1886: “[...] a pitada de cocaína que acabei de tomar está me pondo tagarela, minha mulherzinha [...] o que mais desejo é possuí-la – e possuí-la tal como você é” ( RODRIGUÉ, 1995, v. 1, p. 201).

Uma indagação que permanece em suspenso é o grau de envolvimento de Freud com a cocaína. Como vimos, a droga certamente ocupou um lugar significativo em sua vida subje- tiva por um período de tempo que não foi curto; mas, ao que

passados em ambiente estranho devem lhe ter dado um insuportável sentimento de abandono, solidão e distanciamento” (SCHEIDT, 1975, p. 39); para Scheidt, este é um dos motivos para a publicação de uma parte tão pequena das cartas do período (a maior parte foi censurada). Na carta de 2 de fevereiro de 1886, após tomar uma pitada de cocaína em um dia em que iria à casa de Charcot, escreveu: “Estive tão fora de forma o dia todo que praticamente não trabalhei” (apud SCHEIDT, 1975, p. 42).

tudo indica, Freud não se tornou um adicto de cocaína. Jones (1953) assinalou que, quando Freud disse que não pôde de- tectar sinais de grande anseio pela cocaína em si próprio, por maior que fosse a frequência com que a tomava, “[...] estava dizendo a verdade estrita: como sabemos agora, é preciso uma predisposição especial para que se desenvolva um vício em drogas, e felizmente Freud não tinha essa predisposição” (JO- NES, 1953, p. 92). Jürgen von Scheidt (1975) – especializado no tratamento de toxicômanos – opinou que, embora experi- mentasse a euforia do tóxico, Freud não poderia ser acusado de adicto. Assim, as auto-observações de Freud não devem ser interpretadas como resultantes da negação típica dos adictos; tratava-se, tão somente, de um caso de não desenvolvimento de adicção devido à sua estrutura de personalidade. Aqui Jones demonstra – diga-se de passagem – estar atualizado em relação à concepção psicanalítica das adicções, especialmente no que concerne à teoria de uma “personalidade pré-morbida”. Aliás, não é de se estranhar que Fleischl tenha se tornado tão rapi- damente adicto à cocaína, já que – como seu apego anterior à morfina indica – provavelmente havia nele tal “predisposição” (em que pese o “fator atual” da dor física insuportável). Vale lembrar ainda que, após testemunhar as reações de Fleischl, Freud advertiu Martha contra o risco de aquisição do hábito.

Peter Gay afirmou, também, não existirem provas de que Freud – ou Martha – tenha chegado algum dia a adquirir o hábito da cocaína. No entanto, ele enfatizou que este foi um dos episódios mais perturbadores da vida de Freud: “[...] seus

sonhos revelam uma preocupação constante com a cocaína e suas consequências [...] não admira que estivesse decidido a minimizar os efeitos do caso sobre ele” (GAY, 1989, p. 57). Rodrigué, por sua vez, colocou algumas objeções à versão de Jones. Ele questionou a afirmação de que Freud não teria predis- posição ao vício lembrando seu tabagismo, e acrescentou: “[...] concordo com Jones que ele não se tornou cocainômano, mas entrou sem dúvida na proposta da droga” (1995, v. 1, p. 199). Para Rodrigué, o tratamento do tema por Jones foi ao mesmo tempo “valente e medroso”. Ora, o que seria este “entrar na proposta da droga”? A preocupação desse biógrafo é ressaltar o papel considerável que teve o encontro de Freud com a cocaína na origem da psicanálise: “[...] talvez se possa dizer que, se os sonhos constituem a via régia para o inconsciente, a cocaína eletrificou suas trilhas” (RODRIGUÉ, 1995, v. 1, p. 199). Essa posição é ousada e instigante; ela supõe que o entusiasmo de Freud com a “droga mágica” tenha estimulado-o a procurar, através da indução de um estado de consciência alterado, uma chave para o autoconhecimento.

Cesarotto também criticou Jones, e considerou que sua denominação de “episódio da cocaína” foi uma estratégia de- fensiva para minorar o envolvimento de Freud com a droga: “[...] a ênfase no aspecto contingente do interesse freudiano pela cocaína tem valor de álibi, pois o que é alegado como incidental tem profundas implicações sobredeterminadas”

(CESAROTTO, 1989, p. 25)5. Ele defendeu – próximo à

5 Devemos ressaltar que aqui Cesarotto comete um pequeno engano em relação

posição de Rodrigué – que aquilo que se deu entre Freud e a cocaína em um tempo dito pré-psicanalítico caracteriza um passo prévio indispensável para se chegar à descoberta do inconsciente. Assim, segundo Cesarotto, a monografia sobre a cocaína foi “[...] o movimento inaugural de um progres- sivo afastamento do caminho conhecido da fisiologia, para aventurar-se no ‘desconhecido’, concebido inicialmente como uma substância química” (CESAROTTO, 1989, p. 42). Além da “substância do inconsciente”, a substituição da necessidade pela contingência e a desnaturalização inerente ao conceito de pulsão estariam prefiguradas nas ideias de “Sobre a coca”; já o ponto de vista econômico da metapsicologia encontrar-se-ia em estado nascente no pequeno artigo “Contribuição ao co- nhecimento da ação da cocaína”, de 1885, estudo experimental no qual Freud relatou uma tentativa de quantificar objetiva- mente os efeitos da droga com o uso de um dinamômetro e do neuramebímetro de Exner.

Em uma posição mais radical, Eyguesier propôs que o en- contro de Freud com a cocaína indica a porta de entrada na experiência psicanalítica de uma forma tão decisiva quanto a autoanálise de Freud. Esta teria, inclusive, um papel secundário em relação aos insights obtidos por influência da droga, e o seu efeito teria fornecido um dos paradigmas da teoria psicanalítica. Ora, como assinalou Cesarotto, Eyguesier – analista do campo

como sua versão em português – não implica necessariamente o caráter secun- dário e não fundamental do acontecimento; trata-se, sobretudo, de um evento distinguível que pode ser separado, apesar de pertencer a uma série maior.

lacaniano – é assumidamente identificado com os usuários de cocaína, dedicando grande parte de seu trabalho para exaltar as virtudes do “Vinho Mariani”, à base de coca. É curioso como argumentos parecidos são utilizados por apaixonados e adver- sários da psicanálise! Assim temos, do outro lado da corda, um autor como Thornton, típico difamador da psicanálise; ele afirmou taxativamente que o inconsciente não existe, e que as teorias psicanalíticas são infundadas e aberrantes, já que Freud criou sua disciplina em um estado de confusão psicótica

provocado pela cocaína (apud CESAROTTO, 1989)6...

Em meio a tantas opiniões diferentes, uma conclusão se sobressai: a relação de Freud com a cocaína não foi nem super- ficial e nem ocasional, e ficou profundamente marcada em sua vida subjetiva. Isso fica claro a partir de uma leitura atenta da monumental A interpretação dos sonhos, que contém as pegadas mais evidentes que conhecemos de sua autoanálise e de sua vida mental mais profunda. O tema da cocaína aparece e reaparece em diversos sonhos, tanto no conteúdo manifesto como no trabalho associativo, entrelaçando experiências profissionais, pessoais e fantasmas inconscientes. Só para começar pelos dois exemplos mais conhecidos: a culpabilidade pelos ataques sexuais, agressivos e megalomaníacos se faz presente no “Sonho da injeção dada a Irma”, enquanto que o desejo de ambição emerge da análise do “Sonho da monografia botânica”, aproxi- mando o trabalho científico com a cocaína àquele da teoria dos

6 Cf. Eyguesier, P., Comment Freud devint drogman, Paris: Seuil, 1983, e Thornton,

sonhos – ambos tendo representado, em momentos diferentes da vida de Freud, a “grande descoberta” almejada. Mas outros sonhos também contêm material relacionado à cocaína: um dos sonhos de Roma (o do “Sr. Zucker”), os sonhos das “Três Parcas” e do “Conde Thun”, o “Sonho da equitação”, os sonhos “Meu filho, o míope” e “Non vixit”, o “Sonho da dissecação da parte inferior do meu próprio corpo”... Enfim, se quisermos, temos aqui um amplo e sugestivo material para mergulhar no

sentido subjetivo do episódio da cocaína para Freud7.

Bem, mas o principal motivo de relembrarmos esta polêmica e as diversas especulações que a cercam é buscar compreender, a partir do envolvimento do homem Freud com a cocaína, qual é o possível papel desse encontro pouco discutido – Ce- sarotto nomeou-o de affair – na origem da psicanálise e, mais particularmente, qual a sua possível influência no curso do desenvolvimento de uma concepção psicanalítica das adicções.

No documento Adicções (páginas 91-98)