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Da queda da sedução ao nascimento da fantasia

No documento Adicções (páginas 178-184)

Além do conhecido trecho da carta a Fliess citado no capí- tulo anterior que propõe a masturbação como o “vício primário” (FREUD, 1897c), outras duas cartas desse período anterior aos Três ensaios... merecem ser aqui lembradas. Quase um ano antes, em 11 de janeiro de 1897, Freud escreveu uma carta em que tentou discriminar, a partir de alguns exemplos clínicos, a etiologia da psicose, da neurose e a da perversão segundo os princípios da teoria da sedução. Um homem perverso-sedutor passou a sofrer de graves ataques de dipsomania [alcoolismo] a

partir dos cinquenta anos; segundo Freud, tais ataques sempre começavam

[...] com diarreia, ou ainda, com catarro nasal e rouquidão (sistema sexual oral!), quer dizer, com a reprodução das próprias vivências passivas. Até a época de sua doença, no entanto, este homem havia sido um perverso, quer dizer, uma pessoa sã. A dispomania se produz por uma intensificação – ou melhor, pela substituição – do impulso sexual por aquele outro, a ele associado (o mesmo acontece provavelmente com o velho F., com sua mania de jogo). (FREUD, 1897a, p. 3558)

Aqui vemos Freud, novamente, tecendo breves comentários sobre uma situação de adicção, o que nos faz ver que o assunto não lhe passava totalmente despercebido. O alcoolista mencio- nado na carta é tio de um paciente de Freud. Este investiga as relações familiares a fim de descobrir o evento de sedução que produziu os diversos distúrbios psíquicos; este tio perverso – já que sedutor – foi agente de um trauma sexual que produziu uma histeria em seu paciente, e este último teve relações com sua própria irmã, que se tornou psicótica. Nesse momento de suas reflexões, Freud considera que o que produziu tal psicose é o fato de o trauma sexual ter se dado quando a menina era muito pequena (menos de dois anos), em contraste com os casos de neurose O tio se tornou alcoolista apenas com cin- quenta anos; antes ele era “são”, apesar de perverso-sedutor.

Nesse momento, seus impulsos sexuais foram substituídos pela adicção ao álcool, com duas características específicas: a mobilização do erotismo oral e a reprodução de experiências passivas (segundo a teoria da sedução, os “sedutores” foram, um dia, eles mesmos objeto de um ataque sexual no qual as- sumiam uma posição passiva). Vemos, aqui, dois aspectos que irão perdurar nas concepções sobre a adicção: a ideia de uma substituição do sexual pela conduta adictiva e a importância do erotismo oral.

Nessa época, Freud procurava a etiologia da neurose nos traumas sexuais ocorridos na infância. O relato clínico da carta parece um tanto grotesco justamente pelo caráter anacrônico de tal princípio, e pela forma convicta e acrítica com que Freud o adota. Ora, na famosa carta da “queda” da teoria da sedução, escrita oito meses depois, nos encontramos com um outro Freud. Ele declara não acreditar mais em tal teoria sobre a etiologia das neuroses, enumera os motivos de sua mudança de opinião e demonstra um espírito crítico extremamente aguçado. Admira-se de não se encontrar deprimido:

[...] mas como me encontro justamente no estado oposto, devo considerar minhas dúvidas o resultado de um trabalho intelectual e enérgico, podendo me sentir orgulhoso de ainda ser capaz de exercer semelhante autocrítica, depois de já ter me aprofundado tanto em meu ponto de vista. Serão estas dúvidas apenas um episódio no meu progresso em direção a novos conhecimentos? (FREUD, 1897b, p. 3579)

Ora, sabemos que sim; o mundo psicanalítico será sempre grato a esta capacidade de Freud para a autocrítica.

Podemos comparar esse momento de “queda”, aliás, com outros dois, anteriores a ele e menos conhecidos: o aban- dono da cocaína e da hipnose. Todos esses episódios foram muito produtivos, dando ensejo a um processo de elaboração fundamental; em uma palavra, foram “quedas” de natureza depressiva, no sentido kleiniano do termo. Freud abandonou, primeiramente, a busca de uma panaceia para todas as dores na forma da farmacoterapia, que muitas vezes atrai os médi- cos como um canto de sereia, e que pode neles despertar um “monstro” adormecido. Esse abandono teve um correspondente pessoal: o abandono de devaneio de uma “solução final” para as próprias privações, garantindo-lhe fama e sucesso. Ao deixar a hipnose, Freud afastou-se um pouco mais ainda das soluções mágicas; estas não se encontravam mais em uma droga mágica, mas no poder mágico da palavra. Ele não abandona a cura pela palavra, mas procura desvesti-la ao máximo da aura de magia, e tomá-la como um veículo de sentidos latentes e como um instrumento de interpretação da realidade psíquica que daí emerge. Em lugar da magia, o trabalho psíquico.

Com a queda da teoria da sedução, também um grande trabalho psíquico pessoal estava em curso:

[...] era tão atraente a perspectiva da eterna fama e do bem- -estar garantido, a independência plena, viajar, poupar meus filhos das graves preocupações que me impediram de apro-

veitar a juventude! Tudo isto dependia de que o problema da histeria fosse resolvido. Agora tenho que me acostumar novamente a silenciar e ser humilde, a me preocupar e a economizar, poupar, e ao falar isto me lembro de um pequeno conto que tenho em minha coleção: “tire o vestido, Rebeca, que o casamento terminou.” (FREUD, 1897b, p. 3580)

Como no período da cocaína, Freud continuava esperando fazer uma “grande descoberta” que lhe desse fama e dinhei- ro, libertando-o, imaginariamente, de todas as privações e sofrimentos. Isto é muito próximo da solução mágica da far- macotimia: um objeto euforizante que afasta magicamente a depressão advinda do sentimento de pequenez do Eu. Creio, assim, que um grande trabalho psíquico – a um só tempo pessoal e intelectual – estava em curso.

A carta na qual Freud propõe a masturbação como o protó- tipo de todos os vícios foi escrita três meses depois. É evidente, assim, que entre ela e a carta de janeiro – que relata o caso do tio alcoolista de um paciente – Freud vivera uma reviravolta, que se refletiu claramente em seu pensamento sobre as adicções. A mensagem é clara: o fator exógeno de um trauma sexual sofrido é substituído por um fator inerente à sexualidade, e, portanto, o problema volta-se para o próprio sujeito e sua história. Ao invés de enfocarmos um tio sedutor e perverso, devemos olhar para a relação do sujeito com sua própria história psicossexual. Freud refere-se, também, ao seu “grande obstáculo”: “[...] a importância que esta adicção [a masturbação] tem na histeria

é imensa, e talvez se encontre aqui, no todo ou em parte, o meu grande obstáculo, que ainda não pude esclarecer” (FREUD, 1897c, p. 3594). Nesse momento, ele se lança novamente ao trabalho e, de fato, como dito na carta anterior, suas dúvidas quanto à teoria da sedução fizeram-no progredir em direção a novos conhecimentos. Mas ele continua procurando uma “solução” para seu “grande obstáculo”: o esclarecimento do enigma da histeria, mas também a “cura” mais eficaz dela. Por que, afinal, os tratamentos enfrentam tantas dificuldades? Acompanhamos, assim, através de suas idas e vindas, a cons- trução paulatina do pensamento freudiano; ora, é a teoria da sexualidade que veio a ocupar o lugar da “grande descoberta” anteriormente almejada.

Em sendo o vício primário da masturbação um obstáculo intransponível, os limites do analisável ganham um novo contorno. Pois a nova dúvida que surge é “[...] se tal adicção é curável ou se a análise e a terapia devem deter-se aqui, conformando-se em converter a histeria em neurastenia” (FREUD, 1897c, p. 3594). A cura pela palavra só tem poder no âmbito da psiconeurose, detendo-se quando se trata de uma neurose atual. Nesse sentido, o tratamento psicanalítico das adicções fica posto em questão: será que os vícios “secundários” podem ser abordados pela psicoterapia analítica? A histeria pode ser tratada, mas curar um vício... Como tantas vezes já ocorreu na história da psicanálise, também aqui o incurável

Ao se colocar a masturbação no centro da psicanálise das adicções, ocorre uma mudança essencial em relação ao ponto de vista da teoria da sedução: agora se trata, sobretudo e literal- mente, de uma questão do sujeito com sua própria sexualidade, com seu próprio corpo. Esse hábito é primário; tal afirmação é de grande importância, já que ela contrasta vivamente com a concepção que será desenvolvida por alguns autores das relações de objeto, para os quais a masturbação compulsiva é

secundária e resultante de perturbações nas relações objetais

– estas, sim, primárias. É importante lembrarmos, ainda, que a masturbação não se restringe ao plano somático, já que ela é a “executora da fantasia”. A fantasia, que habita o reino intermediário entre o prazer e a realidade, é o veículo de um desenvolvimento da vida psíquica para além do somático e do operatório, mas é também a matéria-prima da psiconeurose.

Ora, com o abandono da teoria da sedução, é justamente a fantasia que vem ocupar o seu lugar. É essa grande mudança que

abriu caminho para os Três ensaios sobre a sexualidade.

No documento Adicções (páginas 178-184)