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O químico, o sexual e a experiência de prazer

No documento Adicções (páginas 157-162)

O parentesco entre adicções e neuroses atuais recoloca em pauta uma questão controvertida: o quimismo do sexual.

Ferenczi (1911b) propôs que, no estado maníaco, se dá uma “produção endógena de euforia” que é análoga ao efeito de intoxicação por drogas psicoativas. (ele se apóia em tra- balho anterior de Gross). Também Freud, em seu conhecido comentário sobre o uso de drogas em O mal-estar na cultura, abordou o paralelo entre a intoxicação química e os processos psiconeurológicos de prazer/desprazer:

[...] em nosso próprio quimismo devem existir, da mesma maneira, substâncias que cumprem uma finalidade análoga [análoga às substâncias psicoativas que, ingeridas, provocam sensações de prazer e anulam sensações desagradáveis], pois conhecemos pelo menos um estado patológico – a mania – no qual se produz uma conduta similar à embriaguez, sem incorporação de droga alguma. Também em nossa vida psí- quica normal a descarga de prazer oscila entre a facilitação e a coerção, diminuindo ou aumentando a receptividade para o desprazer. É bastante lamentável que esta raiz tóxica dos processos mentais tenha ficado obscura até agora para a investigação científica. (1930, p. 3026)

O quimismo da intoxicação exógena pode ser aproxima- do, assim, de um quimismo endógeno: o quimismo do sexual e o quimismo do prazer, ambos interligados no pensamento freudiano. Mesmo que a teoria da psicossexualidade tenha revelado uma independência da sexualidade humana em re- lação aos processos biológicos e às determinações somáticas, a correlação entre somático e psíquico nunca foi negligenciada por Freud – ainda que algumas leituras unilaterais de sua obra tenham tentado expurgar o biológico e o somático da psica- nálise. Muito ao contrário, vemos Freud até o fim lamentando a falta de conhecimento psiconeurológicos e desejando uma complementação da investigação psicanalítica com aquela derivada desse campo científico vizinho. A proposição da pul- são como um conceito-limite entre o somático e o psíquico e a

teoria das neuroses atuais são exemplos dessa preocupação de Freud, às quais podemos acrescentar, certamente, a psicanálise das adicções.

Ora, as intuições de Freud anteciparam muitas das des- cobertas ulteriores da neurologia e da farmacologia e abriram caminho para o trabalho de diversos psicanalistas criativos. Nessa direção, Byck (1974) assinalou o pioneirismo de Freud para campo da farmacologia, já no período da cocaína. Cou- vreur (1991), por sua vez, nos lembra uma descoberta recente que é, também, sugestiva: em casos de transtornos do compor- tamento alimentar, se verificou a produção intracerebral de substâncias opioides de efeito morfínico ameno, confirmando o paralelismo entre quimismo exógeno e quimismo endógeno, assim como o parentesco entre as toxicomanias e outras adic- ções sem drogas. Ao mesmo tempo, a correspondência entre o efeito euforígeno de certas drogas e o estado maníaco tem se consolidado, também, como uma espécie de exemplo-modelo desse paralelismo.

Alguns autores veem na suposição de Freud da existência, no organismo, de substâncias químicas de natureza libidinal uma antecipação da descoberta dos hormônios sexuais. Em suas especulações, Freud manifestou uma dúvida sobre se se trataria de duas substâncias diferentes – uma masculina e outra femi nina – ou uma única. De fato, as pesquisas posteriores reve- laram uma situação complexa: os hormônios da hipófise (FSH e LH) atuam em ambos os gêneros, enquanto que a testoste- rona, produzida nos testículos, está associada aos caracteres

masculinos, e os estrogênios e a progesterona, secretados pelos ovários, atuam no sistema feminino. Os estrogênios são respon- sáveis pela formação das características primárias e secundárias femininas, e a progesterona está relacionada à preparação do útero e das mamas para o processo reprodutivo, ou seja, mais ligada à maternidade. Em suas incursões especulativas na in- terface somatopsíquica, Freud antecipou, também, a estrutura do neurônio (no Projeto de uma psicologia para neurologistas), assim como a heterogeneidade fundamental da qualidade do funcionamento cerebral entre os estados de sono sem sonho e os períodos de sonho (sono REM).

Radó (1926, 1933) trabalhou com a hipótese de um “or- gasmo farmacológico” análogo a um suposto “orgasmo alimen- tar”, aproximando, assim, o quimismo do toxicômano com a economia libidinal e seu suposto quimismo endógeno. Este modelo condensa vários elementos: ele atrela intrinsecamen- te o prazer e a sexualidade na figura do orgasmo, aproxima o circuito alimentar, o erotismo oral e o circuito genital, e se permite, sobretudo, uma circulação bastante livre entre as dimensões somática e psíquica de tais experiências humanas. Wulff (1932) fez, também, uma curiosa observação concernente à fronteira psicossoma para o campo das adicções. Segundo ele, muitos neuróticos se tornam toxicômano devido ao sono/sonho artificial que a droga lhes proporciona, dando livre acesso às delícias da satisfação pulsional inconsciente. Essa ideia parece muito simples, mas se torna bastante sugestiva quando Wulff nos mostra que, em alguns casos de histeria, a atuação adictiva

surge como um substituto perfeito dos ataques histéricos. Tais ataques se situam, por si mesmos, no limite entre o somático e o psíquico, pois são ao mesmo tempo a derivação catártica e direta, em ato, do sexual, e a representação simbólica, de forma encenada, de certos enredos ligados à história psicossexual pregressa; mas, ao se transformarem em um sintoma propria- mente toxicomaníaco, eles radicalizam a queda em direção ao somático própria das neuroses atuais.

Em seu cuidadoso estudo sobre a adicção bulímica, Brusset (1991) ressaltou alguns destes aspectos, sublinhando o interesse de uma “biologia do prazer”.

A existência de endorfinas como substâncias opioides produzidas no cérebro em certos comportamentos abre o caminho da biologia do prazer e do gozo (e correlativa- mente o da dor). As endorfinas proporcionam euforia e apaziguam (a serotonina intracerebral parece desempenhar um papel de paraexcitação). Novos modelos permitirão talvez proporcionar uma teoria renovada das relações da representação psíquica em suas fontes somáticas, bem como explicar os efeitos da atividade representativa no corpo na dupla perspectiva da patologia psicossomática e do gozo. (1991, p. 159)

Vê-se como aqui se descortina um projeto de pesquisa científica bastante ambicioso, e que necessariamente reco- loca as questões sobre a correspondência, o paralelismo, a

determinação e a derivação recíproca entre o somático e o psíquico, à maneira do espírito mais aberto de Freud. Sem cair no organicismo, os psicanalistas podem reconhecer que

[...] a anorexia mental, a bulimia e a toxicomanias implicam processos fisiológicos que não são apenas consequências, mas também causas: a causalidade, implicando a recursividade em todos os níveis, vai, assim, do psíquico ao somático e ao comportamento, do comportamento ao somático e do somático ao psíquico. (BRUSSET, 1991, p. 159)

No documento Adicções (páginas 157-162)