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Alcoolismo e sexualidade: o artigo pioneiro de Abraham

No documento Adicções (páginas 190-197)

Abraham escreveu, em 1908, “As relações psicológicas entre a sexualidade e o alcoolismo”, o primeiro artigo psicanalítico inteiramente dedicado ao tema das adicções. O texto é den- so e abarcativo – mesmo que não muito extenso –, e ainda conserva algum valor aos olhos do leitor de hoje. Ele exprime exemplarmente a visão do tema a partir da teoria freudiana da sexualidade, que havia sido recentemente apresentada e sistematizada em Três ensaios. Assim, além do significado histórico e de seu pioneirismo, o trabalho interessa por ser um bom retrato de uma forma de compreender as adicções a partir

da teoria da sexualidade – o que, aliás, já se faz evidente no próprio título do trabalho.

É digno de nota que Abraham tenha se interessado por essa área da psicopatologia antes mesmo de ingressar nas fileiras da psicanálise, tendo então já publicado dois artigos sobre o assunto (ABRAHAM, 1902, 1904). Como ressaltou Jones,

Abraham mostrou um interesse especial pelos problemas da dipsomania e da toxicomania. Os quase únicos trabalhos que ele escreveu nos dias pré-analíticos, à exceção daqueles evidentemente inspirados pelos interesses de seu professor, foram sobre os efeitos do uso de drogas. Seu primeiro trabalho sobre as relações existentes entre alcoolismo e sexualidade mostrou a natureza essencial da conexão entre os dois e constituiu a base de todo o nosso conhecimento posterior sobre o assunto. Na verdade, a única contribuição posterior de importância sobre o tema tratou da relação inerente entre alcoolismo e homossexualidade, uma ligação que, de modo curioso, Abraham apontou apenas em relação às mulheres. (1926, p. 19)5

Ora, ser “a base de todo o nosso conhecimento posterior sobre o assunto” não é pouca coisa! É claro que Jones escreveu

5 A relação entre alcoolismo e homossexualidade, aqui aludida, foi proposta por

isso em 19266, o que exige, obviamente, uma atualização de

tal afirmação; o próprio Abraham avançou na discussão sobre o assunto posteriormente, especialmente no artigo de 1916 sobre a fase oral. Ainda assim, a importância do artigo não se perdeu, e é de se lamentar que ele seja tão pouco conhecido.

Abraham defendeu, em seu artigo, que na etiologia do alcoolismo deve ser considerado em primeiro lugar um “fator individual”, antes de qualquer “fator externo” (influências sociais, educação defeituosa, problemas hereditários, etc.), e que só é possível investigar o “fator individual” com êxito ao se levarem em conta as relações entre alcoolismo e se- xualidade. Após uma recapitulação da teoria freudiana da sexualidade, Abraham propõe que “[...] o álcool atua sobre a pulsão sexual suprimindo as resistências e aumentando a atividade sexual” (1908, p. 61). Por decorrência, as pulsões parciais e a sexualidade polimorfo-perversa da infância, que, usualmente, sucumbem ao recalcamento e à sublimação, vol- tam abertamente a dominar a cena: os produtos da sublimação

são suprimidos ou debilitados pelo efeito do álcool.

Em um plano mais geral, observamos a supressão das inibições mentais que resultam da sublimação da libido, e, de modo mais específico, diversos tipos de pulsões parciais ganham rédea solta, em uma espécie de “perversificação” da conduta.

6 Esse trabalho de 1926 foi escrito logo após a morte de Abraham. É uma excelente

fonte de pesquisa, já que apresenta um panorama amplo e equilibrado sobre a vida e a obra de um dos mais importantes representantes da época heroica da fundação da psicanálise.

A homossexualidade7 se manifesta na maneira com que os

homens tipicamente se relacionam nos bares, através de beijos e abraços, em uma intimidade corporal e em uma cumplicidade muito mais estreitas. O exibicionismo e a escopofilia também se exacerbam: à medida que a barreira da vergonha cai com o álcool, surgem as piadas obscenas e uma sedução grosseira. O sadismo e o desejo de domínio sobre o objeto são evidentes. Associados ao uso do álcool, testemunhamos brigas e crimes brutais e, nos festins coletivos, o surgimento da figura do “rei da bebida”. Encontramos, ainda, no artigo de Abraham, uma curiosa observação sobre um costume que é mais antigo do que poderíamos supor: nos rituais de “trote” com os estudantes calouros, os veteranos exigem submetimento e obrigam suas “vítimas” a beber, o que exacerba, em um ciclo vicioso, as atuações sádicas, e podem produzir “acidentes” sérios. E, no plano da intimidade familiar, observamos a barreira do incesto sendo derrubada pelo álcool, sobrevindo atuações por vezes muito dramáticas.

O segundo tipo de efeito do uso do álcool é o incremento da atividade sexual. O álcool produz a sensação de aumento de capacidade sexual e estimula o “complexo de masculini- dade” – uma espécie de “arrogância do macho” –, conectada, para Abraham, a uma fantasia de identificação do macho com o poder divino, o Criador. As sensações vividas durante o estado de embriaguez são facilmente associadas à excitação

7 A associação entre homossexualidade e perversão, proposta por Freud nos Três

sexual; daí os diversos significados do objeto-bebida, expressos em diversos mitos: a fonte de uma força vital, uma substância originária da “embriaguez amorosa”, o sêmen e uma “poção do amor”. Segundo Abraham, os homens tornam-se aficcionados ao álcool, pois este lhes proporciona um exaltado sentimento de hombridade, uma capacidade para a atividade e uma inicia- tiva enérgica. As mulheres, por sua vez, não necessitam tanto do álcool, já que são apreciadas por sua passividade e pela resistência à conquista amorosa; quando elas mostram uma forte inclinação para o álcool, isso se deve a um componente

homossexual marcado8.

Mas os efeitos do álcool não devem ser estudados apenas em si mesmos; é fundamental considerarmos também o quadro que resulta da cronificação do alcoolismo. Assim, os efeitos de remoção do recalcamento não são apenas momentâneos; eles se cristalizam na forma de traços de caráter: o bebedor compulsivo torna-se excessivamente emocional e grosseira- mente confiante, trata sempre os outros como velhos amigos, é sentimentalista e sem-vergonha. Quanto ao incremento libidinal, o álcool mostra-se, com o tempo, um “falso amigo”, pois a intoxicação, quando crônica, produz o efeito inverso, reduzindo a capacidade sexual do homem.

8 Essa é, obviamente, mais uma das afirmações que exigem uma atualização, dada

a revolução dos costumes, a grande transformação na divisão de papéis entre os gêneros e todos os avanços sobre a concepção de sexualidade feminina que se seguiram desde então.

A relação com o eixo neurose/perversão que, como vimos, é o que norteia a teoria da sexualidade de Freud da época, é evidente no artigo de Abraham. Ele vê uma semelhança entre o alcoolismo e as perversões em dois aspectos: em primeiro lugar, a pessoa se recusa a reconhecer os efeitos que o alcoolismo produz em sua vida e a deterioração que está em curso e, em segundo, ela não querer abrir mão do que deveria ser um tipo de “prazer preliminar” – o álcool ingerido para aumentar a virilidade – a fim de investir libidinalmente a atividade genital propriamente dita. O bebedor persegue e fica fixado na excita- ção dos sentimentos sexuais provocados pela bebida enquanto um fim em si mesmo – como uma espécie de prazer preliminar –, abandonando a atividade sexual normal. Por um desvio e uma fixação subsequente, o alcoolista deixa de lado as mulheres e dedica-se apenas ao álcool. O ciúme típico dos alcoolistas é atribuído por Abraham ao decréscimo da potência sexual: o alcoolista escolheu o “prazer sem aborrecimento” do álcool em detrimento das complicações da relação com as mulheres, mas, como se envergonha dessa troca, recalca e desloca a o

sentimento de culpa para a companheira9.

Ora, em analogia à formula enunciada por Freud sobre o sintoma neurótico, Abraham propõe que o alcoolismo é a

atividade sexual do bebedor. Como o neurótico que apresenta

falsos motivos para seu sintoma através da racionalização, o

9 Sobre a correlação entre ciúme, homossexualidade, paranoia e alcoolismo,

consultar os trabalhos de Freud (1911b, 1921b) e Ferenczi (1911a, 1911b), anteriormente citados.

alcoolista nega os aspectos mais difíceis que o conduziriam aos determinantes de fundo do problema, e se aferra a uma série de explicações e pretextos para o uso do álcool: “[...] pela mesma razão que o neurótico protege seus sintomas, o bebedor luta em defesa de seu alcoolismo” (ABRAHAM, 1908, p. 66).

Ao final do artigo, Abraham estende sua abordagem para a toxicomania e o uso de drogas, tecendo alguns breves comen- tários. Ele defende que a questão sexual se encontra subjacente também a eses casos. Assim, o medo e a intolerância de certos pacientes histéricos à prescrição de drogas psicotrópicas se devem à excitação sexual que elas evocam, desencadeando angústia neurótica e fenômenos conversivos; algo semelhante ocorre com a intolerância de certas pessoas ao álcool. E, tam- bém nos psicóticos, a correlação entre sexualidade e o uso de narcóticos fica clara: alguns pacientes dese tipo interpretam a injeção de morfina com um ataque sexual, e a seringa e seu conteúdo segundo um simbolismo sexual, à maneira de uma equação simbólica.

Temos, assim, nesse artigo de Abraham, um bom exemplo de aplicação da teoria da sexualidade ao problema do alcoolismo. O que está em causa neste tipo de adicção é um desmanche do

trabalho do recalcamento e da sublimação, resultando em uma

espécie de “perversificação” da conduta. A ingestão contínua e compulsiva do álcool se torna a atividade sexual do neurótico, e fortes resistências se erguem para salvaguardar a “escolha” do indivíduo por essa forma de gozo. Desta forma, ocorre uma evitação do desafio envolvido na psicossexualidade adulta,

que é substituído por um desvio. Como em uma perversão, a organização da vida libidinal em torno do genital é abandonada, e em seu lugar surge uma fixação exacerbada a um objeto que retém o sujeito nos prazeres preliminares. O “fator individual” que Abraham defende como predominante na etiologia do alcoolismo se refere, pois, ao casamento que se estabelece entre a droga e a constituição psicossexual do indivíduo, levando a um tipo de formação psicopatológica singular que fica entre a neurose e a perversão.

No documento Adicções (páginas 190-197)