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PARTE II OS DIFERENTES CONTEXTOS DA PRÁTICA DOCENTE

CAPÍTULO 7 ESTRUTURAÇÃO DAS SITUAÇÕES DE ENSINO

7.2 ADMINISTRANDO OS TEMPOS

O tempo se constitui no coração do trabalho docente. Além de ser um forte condicionante da prática do/a professor/a, representa também a forma como os administradores e políticos da educação entendem o trabalho docente (CALDEIRA, 1993).

Os/as professores/as podem lidar de formas diferenciadas com o tempo: podem esticá-lo ou encolhê-lo e/ou podem vê-lo como algo fixo e imutável.

O tempo estrutura o trabalho docente e ao mesmo tempo é estruturado por ele. O tempo não é simplesmente um obstáculo objetivo e opressivo, senão também um horizonte subjetivo que possibilita ou limita (HARGREAVES, 1992 apud CALDEIRA, 1993).

O tempo na educação parece abarcar “vários tempos”. Os/as professores/as em geral se deparam com o choque dos “tempos internos” – das pessoas, dos processos, das aprendizagens, com os “tempos externos” – dos programas institucionais, da escola, das exigências administrativas, dos planos de ensino, dentre outros. O tempo interno é mais imprevisível, particular, subjetivo, instável, diverso, ora veloz e ansioso, ora lento e necessitado de uma parada para consolidar conhecimentos e habilidades. Como precisar, por exemplo, o tempo que cada classe levará para aprender fotossíntese? Como precisar o tempo de cada aluno/a para produzir um saber específico? Do universo dos saberes da Biologia, o que é essencial de ser ensinado num dado período de tempo, considerando a diversidade cultural, econômica e social de cada escola, classe e aluno/a?

Porém cada professor/a, impossibilitado/a de atender a todos os tempos diferenciados — tantos os seus, como dos alunos e da instituição escolar – se vê no papel de administrar os diferentes tempos ("interno e externo") do processo. É preciso fazer escolhas, abandonar alguns objetivos e priorizar as demandas essenciais.

Essa dimensão é marcante nos registros da professora. Sua prática exigia um movimento constante de aprender a lidar com essa variável. Trata-se de um saber em mobilização e transformação cotidianas.

“Meu Deus! Que pouco tempo para tanto conteúdo e trabalho em sala de aula!“ (Diário, 04 jun. 2002, p.81).

A professora revela relações diferenciadas com o tempo: quando reflete sobre a prática e quando reflete-na-ação, ou seja, quando está no “calor” da prática.

No decorrer das aulas (gravadas em vídeo), a professora ficava concentrada em desenvolver as atividades planejadas e seus objetivos, em conjunto com os/as alunos/as. Fazia adaptações e ajustes em diversos momentos, atrasava o conteúdo, fazia escutas e prorrogava os tempos dos trabalhos dos/as alunos/as em pequenos grupos. Quando percebia que a aula estava terminando e as tarefas não tinham se desenvolvido como imaginava, fazia negociações e combinava com os/as alunos/as quando terminariam a atividade.

As aulas revelavam uma distribuição equilibrada do tempo entre desenvolvimento de conceitos específicos e de habilidades, orientações sobre procedimentos, momentos reflexivos no coletivo ou em pequenos grupos, pesquisas de texto e alguns conteúdos atitudinais.

Dentre outras atividades, a professora utilizava parte de seu tempo em aula para:

- explicar o sentido das atividades que propunha,

- dar um retorno da avaliações/produtos dos/as alunos/as;

- construir o roteiro de visita de campo em conjunto com os/as alunos/as;

- desenvolver dinâmicas de integração e postura investigativa entre os/as alunos/as;

- ouvir apresentações dos/as alunos/as;

- promover situações efetivas no ensino para que os/as alunos/as: i) se reunissem e planejassem a continuidade do trabalho em grupos; ii)

confeccionassem cartazes sobre seus projetos; iii) realizassem análise e interpretação de textos; iv) plantassem mudas de árvores nativas na escola, e V) aprendessem a usar a filmadora, dentre outras ações.

Essas ações refletem a diversidade de estratégias ligadas ao uso do tempo das aulas e, ao mesmo tempo, proporcionavam um certo equilíbrio de participação de alunos/as e professora. As duas primeiras se relacionavam a uma atuação predominante da professora, enquanto as duas seguintes abordavam ações em conjunto com os alunos e as ações finais exigiam uma postura ativa dos alunos e alunas.

As visitas de campo (projeto do rio) contribuíram para romper com as medidas de tempo de aula, pois foram realizadas em finais de semana. Para ampliar esse tempo da aula, a professora teve que "convencê-los, pois muitos reclamam(avam) de falta de tempo para trabalhos extras" (Diário, 30 jul. 2002, p.118), envolvendo uma habilidade para capturar o interesse do/a aluno/a, por meio de um convite ao projeto, até que estes/as pudessem entender a proposta (diferenciada do projeto) e assumi-la com maior autonomia nos passos seguintes.

Durante esse projeto também emergiram questões de gênero relacionadas ao "uso do tempo". A rotina das mulheres interferia diretamente na participação delas nas ações planejadas. As alunas trouxeram uma queixa para a professora relacionada à dificuldade de tempo para participarem das visitas aos rios do bairro. Elas tinham de cozinhar, fazer compras, limpar a casa e cuidar dos filhos no final de semana. A professora refletiu naquele momento da ação que deveria conversar sobre esse assunto com a classe, até para que as mulheres não desistissem do projeto e para que essa dificuldade não fosse misturada com um outro problema enfrentado pelos grupos, que era o descompromisso de alguns (homens e mulheres) com o trabalho:

[...] então esse negócio do grupo exigir, exigir assim, compreender o outro também, você pode compreender por um lado, "eu tive que trabalhar", "aquele dia eu não pude ir visitar o rio", "eu posso fazer outra coisa no grupo, eu posso passar a limpo, fazer uma pesquisa sobre o tema do rio e escrever para vocês" (apêndice B, aula, 05 nov. 2002)

O tempo, na ação, era vivido com flexibilidade e certa abertura ao improviso. Porém, quando a professora refletia-sobre-a-ação, expunha uma série de angústias e lamentações relacionadas ao tempo. Suas ansiedades aumentavam porque se via no compromisso de trabalhar o rol de conteúdos planejados no início do semestre letivo.

Esse movimento de aprendiz traçava um caminho de ir e vir constante nos planos de ensino. A professora faz diversos exercícios de avaliar o que lhe parecia essencial e, portanto, o que devia ser escolhido e o que devia ser abandonado, nas poucas aulas que lhe restavam.

[...] estou numa sinuca de bico! Pouco tempo para terminar o conteúdo de Mendel e avaliar e ainda, ter espaço para os trabalhos dos alunos... tenho cerca de 4 aulas para terminar o semestre, e, portanto, o 2o colegial16 com estes alunos. Nestas 4 aulas, terão que caber uma avaliação individual sobre Mendel e a avaliação dos trabalhos em grupo (extras). Ainda, TATI, colega de turma do mestrado, que acompanha minhas aulas, pediu espaço para explicar o questionário de entrevista dos alunos de minha sala, ou seja, fico mais ainda sem tempo. 1) Há vários alunos que não freqüentaram o 2° bimestre e tentarão voltar agora para tentar passar na disciplina”. Me incomodo muito com alunos folgados, que só vêm para fazer as tais provas individuais, colando; 2) não quero deixar de acompanhar o que realmente aprenderam sobre Mendel, suas pesquisas e conclusões. Abandonar este assunto e não avaliar significa morrer na praia! Mas como fazer tudo isto em tão pouco tempo? (Diário, 11 jun. 2002, p. 81)

A angústia de ter que abandonar alguns conteúdos e atividades é constante em seu diário de bordo. A escolha do que fica e do que sai do processo não acontecia de forma simplista, pelo contrário, a professora fazia escolhas baseadas em seus objetivos, princípios e visão de ensino.

A habilidade de gestar a grande quantidade de demandas e situações cotidianas dentro de um tempo escolar e institucional parece ser aprimorada e as angústias diminuídas com a maturidade dos docentes na carreira docente. Vão ocorrendo a aquisição do sentimento de competência e o estabelecimento de rotinas de trabalho, levando à edificação de um saber experencial, que se transforma em certezas profissionais, em modelos de gestão da classe. Ao longo de um tempo, o/a professor/a acaba consolidando “truques do oficio” para administrar seus objetivos no tempo e no espaço de ensino (TARDIF, 2000a).

Por outro lado, esses dilemas poderiam ser trabalhados e minimizados de outra forma no espaço escolar. Quais os recursos que a escola oferece para que essa professora tenha um espaço para discutir, refletir sobre suas questões? Para que possa

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partilhar essa angústia e tomar decisões em conjunto com seus pares? Não será esse um dilema de muitos/as professores/as novatos/as ou em diferentes fases da carreira?17

Tardif (1991) discute essa questão relacionada à crise do profissionalismo do professor – crise da ética profissional, dos valores que deveriam guiar os profissionais. Quem poderá ajudar o/a professor/a? O/a professor/a, em geral, insiste em alguns valores profissionais em que acredita, mantendo um esforço e determinação pessoal. Porém, até quando o ânimo de muitos/as professores/as sobreviverá nesse sistema, sem um processo partilhado/coletivo/reflexivo de ensino na escola?

Embora se espere do/a professor/a (mais do que de qualquer outro profissional) que construa comunidades de aprendizagem, crie a sociedade do conhecimento e desenvolva inovações e mudanças, ele tem recebido, com maior freqüência do que nunca, menos suporte, respeito e oportunidades para ser criativo, inovador e flexível (HARGREAVES, 2001).

O papel da escola parece confuso para todos os seus atores — professores/as, alunos/as e direção escolar. Os/as alunos/as faltam às aulas, a direção não toma parte disso e a professora tem que avaliá-los e resolver o que faz com essa situação. Muitas vezes, a instituição facilita a dispensa de alunos/as e a dispersão das aulas e até perpetua procedimentos que atrasam a chegada de alunos/as nas aulas, como por exemplo, a demora na entrega da merenda nos intervalos, ocorrida várias vezes nos dias de aula da professora.

As angústias, de certa forma, mobilizavam a professora para planejar alternativas e saídas. A professora identificava o que considerava imprescindível e organizava seu tempo para realizá-lo. Ela invertia a situação de “sinuca de bico”, em muitos momentos, para uma situação de maior autonomia sobre o uso do tempo. E fazia todas as adaptações possíveis.

Vamos planejar...

11/06 – falar com os alunos sobre este assunto; TATI – questionário; exercícios sobre Mendel;

18/06 – (seminários) grupo sangüíneo e anomalias genéticas; 25/06 – clonagem, engenharia genética;

03/07 – DST, AIDS e Alimentos Transgênicos

Acho que vou fazer o seguinte: nos dias 18, 25 e 03/07, cada aluno terá que responder uma questão sobre os trabalhos a serem apresentados e outra sobre Mendel. Os alunos ficarão fulos da vida, imagino eu! Fulos! Mas, pretendo com isso: ter uma idéia sobre o que pegaram dos

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trabalhos/seminários e o que aprenderam sobre Mendel. Será que possuem o conceito da 1ª Lei de Mendel? Compreenderam como Mendel elaborou este conceito? Sabem como as características genéticas são herdadas? Pelo menos estas regidas por monoibridismo/herança simples? (Diário, 11 jun. 2002, p. 84)

Ao fazer suas escolhas, assumia seu papel de professora, que visualizava um objetivo para além daquilo que poderia agradar ou não seus/suas alunos/as. Vai construindo uma percepção sobre o risco que corria ao tentar atender todas as demandas externas. Ganhava-se na quantidade, mas perdia-se na qualidade. Aos poucos, mobilizava um saber valorizar o processo, o “entre”...

[...] não dá tempo de trabalhar todo o rol de conteúdos durante o semestre ou ano letivo! O tempo dos alunos, das aulas é diferente do tempo externo (Diário, 22 out. 2002, p. 171).

Paciência, digo para mim mesma. Caso eu corra ansiosa, não aproveito o momento (Diário, 04 jun. 2002, p.81).

Em todo o diário, os planos eram construídos, interligados e conduzidos aula após aula, numa relação dinâmica com o tempo. As avaliações do processo lhe possibilitavam parâmetros para articular os conteúdos no tempo e priorizar o que deveria ser retomado.

Nas avaliações deste 1º bimestre, percebi que meus alunos não aprenderam fotossíntese/nutrição vegetal, cadeias alimentares como eu achava que tinham aprendido. Vou retomar estes conteúdos novamente, sob outros “títulos” e estratégias, mas vou retomá-los! Vou retomá-los por eu achar que são conteúdos centrais de ecologia, juntamente com teias alimentares e ciclos biogeoquímicos e por desejar que aprendam sobre isso. Na falta de tempo, não trabalharei sucessão ecológica, a biosfera e suas divisões, populações naturais. Mas posso trabalhar superficialmente alguns tópicos desses temas maiores, nas aulas, integrados a ciclos e cadeias alimentares. (Diário, 22 out. 2002, p. 171)

Há duas falas centrais da professora que mostram o dilema com o “ter de cumprir o conteúdo num dado tempo" e os critérios que utiliza para fazer algumas escolhas: primeiramente, de ordem racional e que tem a ver com a forma como vê o conhecimento biológico, e a segunda, de natureza subjetiva é: “por desejar que aprendam sobre isso”.

O "outro institucional", nessa fase da docência da professora, configurava uma pressão externa para ela, que, na verdade, era assumida como uma pressão interna, num processo de aculturação ao discurso do cotidiano escolar. Aos poucos a professora

reproduzia um discurso que subjazia ao ambiente e que sustentava a justificativa de alguns de seus dilemas.

[...] tem uma programação para o colegial, dos conteúdos que o Estado segue, para que todo mundo que estuda no colegial tenha todo o conteúdo. E o conteúdo do primeiro colegial é ecologia, e no segundo colegial é citologia e genética e no terceiro colegial é a classificação dos seres vivos. Teria que entrar reprodução humana e dos seres vivos e evolução. Nunca dá tempo de terminar... (apêndice B, 22 out. 2002)

A forma como a professora se relacionava com as exigências externas (da escola18, com o sentimento de ter que cumprir o rol de conteúdos pré-planejados) também interferia no espaço dado por ela no sentido de valorizar a realidade de seus alunos.

“[...] neste semestre acabei não dando espaços reais para as temáticas de interesse dos alunos ...” (Diário, 11 jun. 2002, p. 82)

Souza (2004) discute que, em geral, um fator limitante do trabalho com situações do cotidiano é o dilema tempo versus conteúdo preestabelecido.

[...] de certa maneira, trabalhar com situações cotidianas compromete o conteúdo programático, pois diminui o tempo para se trabalhar com o conhecimento científico, então (o/a professor/a) prefere deixar de lado o trabalho com o cotidiano (SOUZA, 2004, p. 6).

A relação da ação no tempo também remete a uma característica do trabalho docente que é a falta de controle do/a professor/a sobre diversas situações cotidianas e que exigem uma habilidade de "improviso", "intuição" e a mobilização de saberes da experiência durante a ação. Por outro lado, reflete a rotina atarefada da maior parte dos/as professores/as brasileiros/as e a distância freqüente entre escolas e universidades.

O SABER DA PROFESSORA

Se por um lado a tomada de posição diante do saber organizar o espaço se dá sem maiores conflitos, o mesmo não acontece em relação ao tempo. Administrar esse

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Embora os PCNs recomendem uma abordagem interdisciplinar e transversal de alguns conteúdos e eixos, a instituição escolar demora a incorporar e a apresentar estes materiais aos/às professores/as. E quando isso acontece, eles sofrem adaptações e até deturpações da proposta inicial.

aspecto não ocorre sem uma luta entre a internalização da importância do conteúdo tradicional que fora consolidada durante a longa inserção no ambiente escolar, e a sua concepção de uma educação libertadora. Assim, parece que na aprendizagem de gerir o tempo, o conflito é o elemento mobilizador, e resolvê-lo ainda significa adequar o conteúdo ao tempo da melhor forma, sem ter necessidade de romper com a estrutura tradicional. A professora vai traçando um caminho de recuos e avanços e construindo lentamente esse saber. Mas ainda parece prisioneira da obrigação de cumprir os conteúdos tradicionais.

Em contrapartida, parece amenizar esse desequilíbrio ao utilizar estratégias de ensino em que ora ela é o centro, ora são os alunos e ora há uma interação. Esse saber implica em identificar o que é prioridade em um dado momento e para um grupo, inclusive identificar se é o caso de decidir em conjunto com os alunos ou sozinha.

Por isso, esse saber evoca três aspectos bastante freqüentes nos registros de dados:

1) o quanto a professora se vê obrigada a cumprir todo o conteúdo da Biologia daquela série num dado tempo;

2) a relação que a professora estabelecia entre o cotidiano/realidade dos alunos e o conhecimento cientifico e

3) as maneiras de lidar com o tempo “interno e o externo” nos processos educativos.

Há que se redimensionar a quantidade de conceitos trabalhados num determinado tempo, pois nos parece que na maior parte das vezes os/as professores/as não dão conta de terminar esses conteúdos. Por outro lado, não se trata de proporcionar um equilíbrio entre conteúdos científicos e a realidade dos alunos, para superar o dilema do “tão pouco tempo”, mas de contextualizar e dar significado de investigação e estudo à realidade do/a aluno/a. Nessa perspectiva, os temas atuais da ciência podem ser debatidos criticamente numa dimensão ética, política e histórica, estabelecendo conexões entre tecnologia, sociedade e construção histórica do conhecimento.

A professora parece viver um momento de transição, oscilando entre a angústia de lidar com todo o rol de conteúdos da Biologia numa série e entre tentativas criativas para desenvolver um certo conteúdo. Na insegurança, refugiava-se em justificativas e comportamentos antigos, relacionados a como foi educada, mas ao mesmo tempo as incertezas a mobilizavam para rever seus planos e tentar algumas mudanças.

Nos parece plausível encontrar um ponto de equilíbrio entre respeitar os caminhos particulares de cada aluno/a, classe e escola, e saber identificar durante o processo as mudanças que se fazem necessárias ou não, em função de um plano partilhado e pactuado no coletivo escolar ou entre os pares da mesma área de ensino.