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PARTE II OS DIFERENTES CONTEXTOS DA PRÁTICA DOCENTE

CAPÍTULO 4 HISTÓRIA DE VIDA DA PROFESSORA, FORMAÇÃO ESCOLAR E

4.3 A GRADUAÇÃO

Na graduação, duas realidades pareciam ocorrer em paralelo. Uma era a das aulas e conteúdos tradicionais que ofereciam um rol de informações sobre o campo de estudos da Biologia. Deste mundo, destaco a prática de muitos professores que procuravam desenvolver um ensino mais problematizador, como a abordagem comparativa e evolutiva do estudo dos vertebrados, das aulas analíticas de genética, das discussões de questões polêmicas na área de ecologia animal e as aulas participativas da disciplina de conservação de recursos naturais. Esta última disciplina promoveu uma excursão para uma estação ecológica, com acampamento em meio à mata atlântica e aula com uma liderança ambientalista da região. Em cada ponto visitado sentávamos em círculo para refletir sobre um tema gerador peculiar ao lugar. O professor desta disciplina estabelecia um relacionamento diferenciado conosco. Ele parecia acompanhar o desenvolvimento de cada aluno/a, respeitando as singularidades e os ritmos pessoais. Solicitava com suas atitudes uma co-responsabilização no processo de ensino-aprendizagem. Também me lembro de um projeto que desenvolvemos na disciplina de microbiologia. O tema e o método eram de escolha de cada grupo de alunos/as, contanto que realizássemos toda a parte prática com os devidos procedimentos esterilizadores. Escolhemos investigar a presença de

microorganismos nas patas de baratas. A captura e a manipulação das baratas vivas já bastariam para marcar esta experiência em grupo! A liberdade de escolha do que pesquisaríamos fez com que o grupo se motivasse e assumisse o projeto.

A outra realidade era vivenciada nas "bolsas trabalho" e de iniciação científica que possibilitavam um contato com múltiplas realidades e situações práticas. Participei de três bolsas, quais sejam: “Trilha da Natureza”, “Programa de Ensino de Botânica” e Melhoria do Ensino de Microbiologia”. Na primeira, eu conduzia excursões de escolas em uma área de cerrado da Universidade Federal de São Carlos. Apresentava fotos dos animais mais comuns e de outras belezas do cerrado e depois conduzia os/as alunos/as a uma trilha pré- planejada, ilustrando os conteúdos da conversa inicial com o que era visualizado no caminho. O sol era escaldante e do meio da trilha em diante os/as alunos/as, cansados, já não prestavam atenção em mais nada. Também identificávamos o cansaço dos/as professores/as. Os estudantes eram "entregues" aos nossos cuidados do início ao fim da atividade.

A segunda bolsa-trabalho consistia em acompanhar o ensino sobre microorganismos por professores de Biologia de uma escola estadual. Sistematizávamos as avaliações dos alunos envolvidos e acompanhávamos reuniões na escola, juntamente com uma pesquisadora da universidade. Por coincidência, esta escola era a escola em que tive a maior parte de minha formação básica. Ficava emocionada ao rever professores/as conhecidos/as e os prédios, salas de aula, pátio, anfiteatro, quadras de vôlei, lugares tão familiares. Porém, eu retornava a ela não mais como aluna, mas com um papel diferenciado. Muitas vezes os papéis se misturavam. Não era professora e nem aluna. Por isto, acredito que este estágio me possibilitou construir uma transição de papéis. Eu era provocada a desenvolver um olhar pedagógico de quem se preparava para ensinar. Pela primeira vez, tive contato com as concepções alternativas dos alunos sobre microrganismos e decomposição de materiais. No projeto, tais concepções não eram consideradas como errôneas, mas como parte de um processo evolutivo de aprendizagem conceitual. Incorporar esta concepção foi muito significativo para mim.

A terceira bolsa teve financiamento do CNPq e era relacionada à temática da Monografia de final de graduação. Desenvolvi um estudo de Ecologia Humana acompanhando um grupo de crianças coletoras de sobras de alimentos numa feira de São Carlos. Pude trabalhar com algo que fazia parte do meu cotidiano e que me incomodava, pois a feira acontecia todos os domingos em frente à minha casa. A pesquisa incluía acompanhamento da coleta nos dias de feira, visitas às residências das crianças e investigação sobre os impactos desta atividade na subsistência de suas famílias. Embora eu já soubesse do contexto de pobreza destas crianças, a convivência mais próxima das

rotinas familiares me revelava um mundo de lutas, violência, sofrimento e desigualdades. Por outro lado, revelava uma força tamanha naqueles que, sem opções, precisavam enfrentar os desafios e sobreviver.

Estas experiências práticas ampliavam minha formação, num sentido mais integral, e polemizavam os conhecimentos acadêmicos que se apresentavam desconectados desse contexto social.

4.3.1 Formação inicial de professores

“Levanta a mão quem aqui está fazendo licenciatura porque quer somente dar aulas?... Senhorita, você vai ter que explicar, já que só você levantou a mão, por que deseja fazer isto?"

Lembro-me desta fala de um professor da Licenciatura, em 1995, e a trouxe para dizer que desde o início do curso de Biologia, eu pensava em ser professora. Tinha uma visão idealizada da escola e da educação, e de minhas possíveis contribuições “missionárias” para esta instituição. Tanto que respondi a questão acima dizendo que a escola do ensino médio carecia de transformações urgentes e portanto necessitava de maior empenho e atenção de nossa parte, ao invés do campo da pesquisa. Portanto, eu iria direcionar meus esforços para a construção de uma sociedade melhor, em uma escola estadual de ensino básico. Por todo o curso de licenciatura mantive o anseio de enfrentar as dificuldades da escola e contribuir para aumentar a qualidade de ensino. Mais tarde fui perceber a importância de interligar as pesquisas educacionais ao processo de mudança da escola e também me dar conta do sucateamento de pesquisas dentro das universidades...

Na disciplina de “Prática de ensino de Ciências e Biologia”, na Licenciatura, fui despertada para a possibilidade de vivenciar situações prazerosas e inovadoras no ambiente escolar e não somente enfrentar obstáculos, num compromisso árduo de revolucionar o ensino. A professora da disciplina desenvolveu uma proposta didática que abordava a reflexão de nossas práticas em sala de aula. Estas reflexões ocorriam em grupos pequenos, sob sua cuidadosa mediação, durante encontros distribuídos pelo semestre letivo. Os encontros de reflexão eram dinâmicos, muitas vezes conflituosos, mas constituíam-se em momentos de apoio às nossas angústias perante o contato inicial com a realidade escolar. O nosso envolvimento nesta disciplina aumentava na medida em que

identificávamos nossos desafios e os abraçávamos como nossos, assumindo a busca de uma resolução que no momento nos fosse possível.

Também foi nesta disciplina que experimentei o uso do diário de bordo e da metacognição. Os nossos “caderninhos” eram bastante valorizados durante as aulas e encontros para análise de fitas das aulas, com espaços em todo início de encontro para quem quisesse expor trechos de seu diário. As emoções, sensações, angústias e aprendizagens relatadas por nós foram gerando no grupo um clima de muita confiança e abertura para expressão de subjetividades. Ao mesmo tempo, os diários ganhavam um sentido cada vez mais sagrado, por nos possibilitar revelações de tantas descobertas e aventuras.

Dedico este diário, com todas as minhas idéias lançadas aqui, às aranhas, que trabalham, com muita dedicação na interconexão dos fios da teia. É tal a ligação que, à menor vibração em qualquer ponto da teia, é sentida pela aranha. E qual a relação deste diário com uma aranha? Será pura coincidência? Considero bonita a analogia da teia de aranha com o trabalho que um professor pode fazer com os conteúdos de sua disciplina: conectá-los às outras disciplinas, estabelecer inter-relações ou melhor, trazer à tona essas ligações que já existem e que por vários motivos acabamos pôr separá-los. (Diário da disciplina de prática de ensino de Ciências, 1995. p.1)

No final da disciplina, continuamos muito interessados na problemática da “formulação de perguntas em sala de aula”, eu e alguns colegas resolvemos continuar estudando o tema. Já nos primeiros encontros deste “grupo de estudos”, agarramos o desafio de produzir um vídeo sobre formulação de perguntas em sala de aula, que pudesse levar reflexões sobre este assunto para os/as professores/as da rede de ensino. Este vídeo foi gravado numa classe de 5a série em que eu lecionava. Participei ativamente, reproduzindo uma aula sobre “flutuação dos corpos na água”, desenvolvendo questões problematizadoras com estes/as alunos/as.

Descobrir que a atuação docente é dinâmica, variada, aberta à criatividade, à inovação e ao exercício de autonomia da prática pedagógica levou-me a uma inserção apaixonada e responsável no campo da educação.