PARTE II OS DIFERENTES CONTEXTOS DA PRÁTICA DOCENTE
CAPÍTULO 9 CONDUÇÃO E SUSTENTAÇÃO DO PROCESSO DE ENSINO E
9.1.1. O convite inicial e o desenvolvimento da “escuta sensível”
O contrato didático inicia-se já no planejamento da primeira aula, no qual a professora tinha o objetivo de romper com uma relação linear de poder entre ela e os/as alunos/as e iniciar um pacto de compromissos e, conseqüentemente, uma partilha de responsabilidades em relação ao ensino e à aprendizagem. A professora refletiu,
primeiramente, sobre suas idéias e indagações e depois buscou partilhar com os/as alunos/as sua proposta de trabalho.
A primeira conversa não implicou, inicialmente, a inserção de acordos propostos pelos/as alunos/as, mas antes um convite para se envolverem com o processo.
Aprendi que quando demonstro claramente aos alunos que a) desejo que minha disciplina seja algo significativo para todos nós; que promova aprendizagens; b) estamos juntos neste processo, pois tanto a professora aprende e ensina, como os alunos aprendem e ensinam e que, c) acredito na capacidade que todos possuem para esta ensinagem; conquisto parte de seus corações e mentes para o processo que viveremos. (Diário, 22 out. 2002, p. 171)
A aposta da professora centra-se no poder que o convite inicial pode exercer para que o/a aluno/a aceite aventurar-se na disciplina. No caso do contexto de vida de seus/suas alunos/as do supletivo noturno, pode fornecer, inclusive, um suporte para o desenvolvimento da auto-estima. Muitos deles demonstravam não se sentir capazes de aprender, sendo esse sentimento bastante reforçado pela visão do senso comum de que “quanto mais velho o ser humano, mais difícil fica a aprendizagem”. Soma-se a isso o fato de que só voltaram a estudar depois de um intervalo grande de tempo, pressionados pela exigência do mercado de trabalho e/ou porque necessitavam ajudar os/as filhos/as com as tarefas da escola.
Aprendi que o convite apaixonado e explícito para o processo ensino- aprendizagem deve ser feito pelo professor, diversas vezes na disciplina. Este convite não deixa de ser o do vínculo com parceria professora/alunos para que a aprendizagem ocorra. O vínculo pessoal se dá nas negociações e revisões de compromissos quando os alunos se colocam, explicitando suas dificuldades, por trabalharem a noite, por estarem doentes, com depressão, com filhos doentes, ou seja, colocam- se humanamente, até com fugas, mentiras, disfarces. E eu, como professora, tenho que lidar com estas situações, aprendendo a enxergá- los como humanos, que possuem uma vida e um círculo de relações maior e mais complexo do que a escola, do que com a disciplina e comigo. (Diário, 22 out. 2002, p. 171)
Assim que a professora escolheu a escola e a sala de aula, no inicio do ano, se pôs a pensar no que iria fazer no primeiro dia de aula e a se questionar se devia ouvir as expectativas de seus/suas alunos/as.
[...] aplico um questionário para conhecer melhor meus alunos? Para saber como concebem a escola? O que esperam dela? Me adiantará isto?... Darei conta de atender estas expectativas? Devo levantá-las mesmo considerando que posso não atendê-las? (Diário, 06 fev. 2002, p.1)
As expectativas iniciais dos/as alunos/as foram ouvidas pela professora, numa “escuta sensível”, elaborando, inicialmente, um diagnóstico sobre o “desejo” dos/as alunos/as em relação ao saber escolar. Pediu a eles/as que formassem um círculo e contassem um pouco de suas origens, histórias de vida, expectativas com relação à formação escolar e “por que resolveram voltar a estudar”.
ELA – É de Getulina; (voltou a estudar) para ensinar os filhos; FLOR – Campo Largo; para trabalhar;
SOL – Paraná; para melhorar o currículo; CLAU – Baiano; adoro estudar;
ALE – Araraquara; sem estudo não vamos a lugar nenhum; para trabalho;
MAR – Borborema; Toalha São Carlos; hoje se exige estudo;
NEI – Bahia; 2 anos em São Carlos; gosto de estudar. (Diário, 07 fev. 2002, p. 4)
Um outro movimento de construção da escuta aos/às alunos/as é realizado por ocasião da avaliação relacionada à disciplina que a professora propõe, no final do 1o bimestre, proporcionando uma auto-avaliação tanto para a professora como para os/as alunos/as. As respostas foram lidas uma a uma e agrupadas pela professora, fazendo um movimento de escuta concreta aos/às alunos/as.
As aulas foram boas porque... - assuntos interessantes; - entendi coisas sobre o corpo; - falou sobre sexo;
- houve explicações e diálogo; - aula em horário bom;
- professora que gosta do que faz;
- aprendemos mais sobre o corpo humano;
- aprendemos sobre métodos anticoncepcionais e reprodução; sistema reprodutor; prevenção;
- aprofundei assuntos interessantes que não sabia; - aprendi sobre células, genitália masculina e feminina; - tenho curiosidades;
- aprendi sobre herança genética, sobre genética.
Seriam melhores se...
- aprofundassem mais o assunto;
- os alunos participassem mais e fizessem menos barulho; - falássemos sobre as partes da mulher;
- houvesse mais silencio;
- a avaliação fosse com consulta;
- aprender mais sobre o corpo e se os alunos tivessem mais interesse em aprender;
- eu tivesse mais participação e freqüência;
- falássemos mais vezes e soubéssemos a opinião de cada pessoa; - se os professores colocassem em prática o que vê no outro professor;
- se houvesse menos trabalhos em grupo;
- se a turma que chega atrasada nesta aula chegasse no horário; esta turma esta muito folgada;
- se tivesse mais materiais, tipo vídeo;
- se todos os assuntos forem tratados com discussões e trabalhos em grupo;
- se eu pudesse assistir as duas aulas; falasse sobre gravidez, doenças sexualmente transmissíveis.
No 2o bimestre, gostaria que... - falasse sobre gravidez, DST;
- brincássemos mais e conhecêssemos mais a maquina humana e seu sistema ;
- a classe colaborasse mais e estudássemos assuntos interessantes; - meu desempenho fosse melhor;
- falássemos sobre sexo ou outro assunto ligado a sexo; - tivesse mais trabalho;
- não mudasse os professores e que todos nos alunos déssemos o máximo de nos;
- a matéria fosse interessante;
- trabalhássemos em conjunto e avaliação prática; - que fosse bom como no primeiro;
- eu entendesse melhor;
- continuasse debatendo os assuntos e fazendo perguntas aos alunos.
Meu desempenho foi... porque...
- maravilhoso, os assuntos foram interessantes; - regular, Biologia é muito difícil;
- muito bom, as aulas foram organizadas;
- regular, não consigo guardar quase anda na cabeça; - ruim, porque não consegui fazer a avaliação;
- médio, não tive um professor que explicasse bem a matéria no ano passado, aos poucos, vou aprendendo mais;
- bom, prestei atenção nas aulas e fiquei sabendo vários assuntos que eu não conhecia ainda;
- o máximo que consegui dar de mim, foi ate eu conseguir entender; - bom, aprendi o que foi ensinado;
- mais ou menos, porque eu estava com problemas;
- não foi muito bom, tive algumas faltas por causa do trabalho;
- muito bom, é importante aprender esta matéria. (Diário, 30 abr. 2002, p. 51)
Promover a avaliação da disciplina era algo novo para os/as alunos/as. Podiam expressar seus descontentamentos com o processo, mas ao mesmo tempo, se comprometiam com este processo ao participar dele. Envolvia escolhas que implicavam ao/à aluno/a aprender a criticar de forma responsável a disciplina de Biologia e ainda a olhar para o próprio desempenho.
Villani e Cabral (1997) apontam para a necessidade de lançar apelos, mesmo que implícitos, para estimular os/as alunos/as a se responsabilizem pelo conhecimento alcançado e a realizarem escolhas a partir do conhecimento adquirido e aceito. auxiliando- os no domínio do saber e na avaliação crítica sobre seu próprio processo.