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Adoção homoparental e visibilidade gay

No documento O Livro Da Maternagem - Thelma B. Oliveira (páginas 142-148)

Dra. Relva

O escritor Ítalo Calvino legou-nos um testamento literário, que ele denominou de Seis Propostas para o Milênio, a saber: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade. Não deixou a que seria ‘consistência’. O argentino Ricardo Piglia se propôs escrever a sexta, não a de Calvino, mas o que ele chama de desplazamiento, deslocamentos, “deslocamentos estratégicos, distâncias, que permitem um olhar enviesado, tornando possível medir diferentes direções e velocidades: o espaço e o tempo numa concepção que não ignora o que foi transmitido ou imposto pelo poder hegemônico, pelo Estado, e possibilita gerar descontinuidades, cortes, desvios, para além de uma relação causal e linear dada como hegemônica”. As propostas de ambos são para a literatura, mas bastante aplicáveis à vida.

Grupos ativistas da comunidade gay buscam visibilidade, organizando paradas, passeatas, movimentos de “orgulho gay” como ação a irmativa da diversidade. Deslocamentos estratégicos. Antes de prosseguir, aviso que o artigo não tem a intenção de discutir ‘causalidade’ ou ‘normalidade’ sexual. O foco é: por que o movimento gay busca visibilidade e inclusão, ou até mesmo constituir família, com ilho e tudo? Na vida o que mais se precisa é de uma testemunha de nossos atos. O amor que antes não ousava dizer o nome, agora quer proclamar-se de cima dos telhados, ou pelo menos nas ruas, nos cinemas, nos shoppings. Tanto é triste não poder amar quanto não poder demonstrar amor. Ou, para isso, ter que icar à margem da

sociedade. O principal motivo, entretanto, é que a invisibilidade é uma forma de negação. Negar é deixar de existir. Para Heidegger, “A ausência seria equivalente à morte. É a angústia dessa inexistência que faz com que o Sujeito tome consciência de si. A invisibilidade é insuportável, quiçá pior, porque é um existir sem ser visto. Daí a eterna busca por reconhecimento. Melhor ser visto como exótico, do que não ser visto”.

A psicanalista neozelandesa, Joyce McDougall, explica o que ela chama de invenção de neossexualidades: “Esses cenários eróticos, complexos e inelutáveis não servem apenas para salvaguardar o sentimento de identidade sexual (como o faz todo ato sexual), mas frequentemente mostram ser técnicas de sobrevivência psíquica, uma vez que eles são necessários para a preservação do sentimento de identidade subjetiva”. E continua: “Para enfatizar o caráter inovador dessas invenções eróticas, denominei-as neossexualidades. Por meio dessa terminologia, eu quis evocar alguma coisa semelhante às neorrealidades que alguns pacientes frágeis criam, a im de encontrar uma solução para uma dor mental que para eles se mostra inelaborável de outra forma. A libido homossexual serve, em primeiro lugar, para enriquecer e estabilizar nossa autoimagem narcísica”.

No caso da mulher, ela a irma em seus livros: “Em Defesa de Uma Certa Anormalidade” e “Conferências Brasileiras”: “O percurso da infância até a feminilidade adulta é in initamente mais complexo do que até Freud imaginava. Não só as raízes do erotismo feminino são estabelecidas no começo da infância, mas a identi icação com a mãe genital, mesmo quando a mudança de objeto para a heterossexualidade foi adequadamente realizada, deixa ainda em aberto muitas questões relativas à integração da libido homossexual feminina”.

Na homossexualidade feminina, encontram-se componentes da mesma ternura que há – ou deveria haver – na relação entre mãe e ilha, às vezes revivida na ligação com uma boneca, que faz o papel de ‘ ilha’ da dupla. Cássia Eller sacou bem o lance: “sou minha mãe, minha ilha, minha irmã,

minha menina”. As novelas insistem em que as duplas homo têm que optar por adotar um ilho, assumir responsabilidade de casal e amar com moderação. Na vida real, ninguém tem ilho por imposição ou obrigação. Nem existe uma compulsão irresistível em adotar crianças. As criações intelectuais e artísticas são meios conhecidos de sublimação, pois neles se pode ser homem e mulher ao mesmo tempo, e gerar filhos simbólicos.

Mesmo em tempos liberais, não é sem algum sofrimento, ou perplexidade, que se sai dos ‘armários’ do inconsciente. Nem é tudo sempre tão ‘gay’ assim, livre, leve, desencanado. Há uma contrapartida depressiva e até persecutória. E um preço social que a pessoa decide se quer – e se pode – pagar. E ainda extrair o devido proveito pessoal. Embora não seja desejo de todo gay inserir-se na sociedade ‘careta’, grande parte almeja incluir-se na vida comum de qualquer cidadão. Os ‘outcasts’ promovem deslocamentos regeneradores das margens, contestando a hegemonia e exclusividade do ‘normal’. O deslocamento espaço-temporal e discursivo inclui a ideia de transgressão, de desterritorialização, de confronto às identidades propostas pela tradição. “Deslocamentos estratégicos”, a sexta proposta de Ricardo Piglia.

Como se de ine uma família hoje? Christiane Collange responde: – Família “casulo”, família “clube”, família “moderna”, família “tradição”, família “monoparental”, família “reconstituída”, família “aberta”, família “invisível”, família “new look”, família “nuclear”, família “comunitária”, família “fragmentada”, família “parceira”, família “de fusão” ou “mosaico”. Como

ica a criança nesse novo universo de fronteiras deslizantes? No caso de adoção, o primeiro princípio é o do “melhor interesse da criança”, indicado no artigo 3.º da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989). O intuito é assegurar a precedência do bem-estar da criança ao dos pais. O segundo ponto é a regulamentação do artigo 227 da Constituição, Lei nº 8.069/90 ou Estatuto da Criança e do Adolescente, que assegura à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar e comunitária. Uma vertente importante é que a adoção não deve ser um prêmio de consolação a pais carentes, mas sim um ato de amor. Pais

podem prescindir de ilhos, ilhos sempre precisam de pais. Há um universo de abandonados esperando adoção, quando fogem do padrão estético ou etário desejado. A mestra do direito, desembargadora Maria Berenice Dias, é enfática: “A moderna doutrina não mais define o vínculo de parentesco em função da identidade genética. A valiosa interação do Direito com as ciências psicossociais ultrapassou os limites do direito normatizado e permitiu a investigação do justo buscando mais a realidade psíquica do que a verdade eleita pela lei. Para dirimir as controvérsias que surgem – em número cada vez mais significativo – em decorrência da manipulação genética, prevalece a mesma orientação. Popularizaram-se os métodos reprodutivos de fecundação assistida, cessão do útero, comercialização de óvulos ou espermatozoides, locação de útero, e todos viram a possibilidade de realizar o sonho de ter filhos. Nesse caleidoscópio de possibilidades, os vínculos de filiação não podem ser buscados nem na verdade jurídica nem na realidade biológica. A definição da paternidade está condicionada à identificação da posse do estado de filho, reconhecida como a relação afetiva, íntima e duradoura, em que uma criança é tratada como filho, por quem cumpre todos os deveres inerentes ao poder familiar: cria, ama, educa e protege.[...] Se a família, como diz João Baptista Villela, deixou de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, o que imprimiu considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade, torna-se imperioso questionar os vínculos parentais nas estruturas familiares formadas por pessoas do mesmo sexo.”

DIAS, Maria Berenice. Paternidade homoparental. Conteúdo Juridico, Brasilia-DF: 23/11/2009. Disponível em:

www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.25503. Acesso:

2/6/2010.

Ainda no campo do direito, diz a autora (*) de “Procriação Arti icial e Sucessão Legítima”: “O direito de família sofreu direta repercussão dos avanços tecnológicos na área de reprodução humana, mormente envolvendo as fontes de paternidade, maternidade e filiação. Todas essas transformações permitiram a ocorrência de um importante fenômeno, denominado “desbiologização”, ou seja, a substituição do elemento carnal pelo elemento biológico ou psicológico.” [...] “Há um misto de Bioética e Biodireito. De um lado, a evolução cultural e, do outro, a ética. Observando sempre o direito mais fundamental de todos os direitos, quer dizer o direito à vida, já que sem ele os outros seriam em vão”. (*) Vitorino, Catarina C. Lima. in: Justilex, Revista Jurídica, Ano V, nº 60, dezembro 2006, pp 46 a 53.

A imprensa tem noticiado um discreto baby boom gay, que pode ser um sinal da própria visibilidade em marcha. A justiça brasileira acaba de autorizar o registro da ilha de um casal gay, fruto de inseminação arti icial e ‘barriga de aluguel’. E há pleiteantes na ila de espera. Em Cannes 2009, foi premiado o ilme “The kids are all right”, com Julianne Moore e Annette

Benning, no papel de um casal lésbico que tem três ilhos. O título já diz o que realmente interessa: que as crianças estejam bem.

Entre constituir família e, eventualmente, integrar-se à sociedade; ou permanecer à margem da corrente; busca-se antes a irmação, valor como pessoa e voz própria. Luta-se pela promoção e defesa da igualdade de direitos de pessoa. Com ou sem um filho nos braços.

Canto de mim mesmo

No documento O Livro Da Maternagem - Thelma B. Oliveira (páginas 142-148)