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neurociência O que é ‘maternagem consciente’

No documento O Livro Da Maternagem - Thelma B. Oliveira (páginas 39-45)

Ligia Moreiras Sena

O que determina as características de personalidade de uma pessoa e, consequentemente, de um grupo social? O que determina que uma pessoa se torne deprimida, ansiosa, paranoica ou que desenvolva outro transtorno emocional? A constituição genética? O ambiente? As vivências ao longo da vida? O suporte emocional que recebe? O grau de afeto auferido na infância? Coisas que ainda não sabemos e que a ciência ainda não explica? Sim, tudo isso. Qual desses fatores tem maior ou menor peso nessa misteriosa e inexata matemática?

Eis uma pergunta para a qual não se tem uma clara resposta.

Como saber, então, de onde vêm as mazelas que assolam o ser humano? Não sabemos ao certo, de forma que não podemos controlá-las. Mas se sabemos que determinadas práticas, situações e experiências contribuem decisivamente para que elas não apareçam, então passamos a nos apoderar desse conhecimento na tentativa de evitar o sofrimento. Não é garantia de que iremos conseguir, mas estaremos assumindo a parte que nos cabe nesse vasto e complexo latifúndio.

para nossos ilhos. Não sabemos, em termos de constituição biológica, quem são ou o que há dentro deles, qual o gatilho que está pronto para ser acionado – de bom ou de nem tão bom assim. Mas podemos, pelo menos em parte, no dia-a-dia, dentro de casa, nas experiências cotidianas da família, selecionar ambientes e experiências aos quais queremos expô-los ou não.

Aí entra a criação com apego, tradução pouco precisa para o termo em inglês attachment parenting . E que vem recebendo críticas descabidas de gente que não faz a menor ideia do que está falando. Num mundo onde o apego emocional vem sendo ridicularizado na mesma intensidade que se incentiva e se fortalece o apego material, ainda em tenra infância. Virou piada você dizer que amamenta um ilho de mais de dois anos, ou que procura compreender seus anseios e inseguranças no lugar de agir autoritariamente, ou que evita deixá-lo a chorar.

Pessoas presas a seus preconceitos e ligadas ao que o senso comum propaga como sendo verdades inquestionáveis, ainda que fruto da ignorância, tendem a associar a criação com apego à falta de limites, à permissividade, construindo em suas cabeças um falso per il dos pais que assim criam seus ilhos como sendo seres irresponsáveis, criando ilhos sem limites. Como se a oferta de apego e amor fosse contribuir para pessoas naturalmente sem respeito pelo espaço alheio, ísico e emocional, numa clara e clássica inversão pós-moderna de valores, marcada pela predominância do automático sobre o intuitivo, do mecânico sobre o emocional, do arti icial sobre o natural. Quando o que se vê na realidade é claramente o oposto: jovens sem limites justamente por não terem recebido nenhum grau de atenção em casa, que não tiveram a presença carinhosa dos pais, ou que foram vítimas de maus tratos emocionais ou físicos.

O termo attachment parenting foi utilizado pela primeira vez pelo médico William Sears, com base na teoria do apego, que leva em consideração o

fato de que a criança, durante sua infância, tende a criar um vínculo emocional bastante forte com seus cuidadores, que gera consequências

durante toda sua vida. A criança busca proximidade com o outro e quer

se sentir segura quando ele está presente. Suas ideias e práticas subentendem que os pais ou cuidadores estejam emocionalmente disponíveis de forma a promover o desenvolvimento sócio-emocional da criança de maneira segura e amorosa e a evitar que a criança desenvolva o que se chama de apego inseguro, aquele que é baseado no abandono, no apegar-se porque não se teve.

Em 1951, o psicólogo, psiquiatra e analista John Bowlby sugeriu que a privação materna durante a infância poderia levar ao desenvolvimento de adultos deprimidos ou hostis ou, ainda, com problemas para se relacionar de maneira saudável com outras pessoas. Isso nos anos 50, quando muito pouco ainda se sabia sobre como o cérebro processava a depressão, a ansiedade e outros transtornos afetivos.

Com o andar da carruagem, alguns pesquisadores, na década de 1970, começaram a divulgar resultados de pesquisas comportamentais com primatas, mostrando que o rompimento da ligação entre mãe e ilhote levava a comportamentos violentos e agressivos no primata adulto. Mas, a inal de contas, isso era apenas um estudo experimental e as pessoas tendem a repelir o que não é feito em humano, ainda que toda a nossa psicologia comportamental, neuropsiquiatria e neurobiologia tenham sido construídas sobre observações comportamentais de animais e extrapolações biológicas.

De acordo com a Attachment Parenting International (API) , uma organização sem ins lucrativos que busca “orientar pais e cuidadores para uma educação segura, empática, rica em afeto e amor, visando criar laços familiares mais estreitos e, assim, um mundo mais compassivo”, existem 8 princípios que promovem o apego saudável e seguro entre o cuidador e a criança, que são chamados de Princípios para uma Educação Intuitiva:

preparar-se verdadeiramente para a gravidez, parto e maternidade/paternidade alimentar seu filho com amor e respeito responder às solicitações da criança com sensibilidade estar atento à qualidade do toque prezar pela qualidade física e emocional do sono da criança de forma que ela se sinta segura dormindo sustentar atitudes carinhosas praticar a disciplina positiva, baseada no reforço das boas atitudes buscar o equilíbrio na vida familiar Embora outras práticas tenham sido associadas, atualmente, à criação com apego – como o parto natural, o parto domiciliar, a cama compartilhada, a amamentação prolongada, a desescolarização precoce, a vida comunitária, entre outras – não existem regras, nem normas, nem padrões rígidos. Não há ditadura, ao contrário do que dizem os que não querem nem saber do que se trata. Há liberdade de escolha por práticas que tenham a ver com a cultura familiar e que, ainda assim, promovam o apego seguro entre pais e crianças.

Recentemente, o periódico PNAS (Proceedings of the National Academy of

Sciences of the United States of America ) publicou os resultados de um

estudo que mostra que o bom cuidado materno na infância leva ao aumento de uma estrutura cerebral chamada hipocampo. De acordo com

esse estudo, há uma clara relação entre os fatores psicossociais da infância e alterações no tamanho do hipocampo e da amígdala, estruturas cerebrais relacionadas à memória de curto e longo prazo e ao comportamento emocional, respectivamente. Isso mostra que existe, realmente, uma ligação entre as experiências afetivas que a criança vive na infância e a forma como seu cérebro se desenvolve.

Os pesquisadores estudaram, por meio de técnicas de neuroimagem que permitem visualizar o cérebro sem procedimentos invasivos, as características cerebrais tanto de crianças em idade pré-escolar deprimidas quanto de crianças emocionalmente saudáveis. E concluíram que o cuidado materno recebido na primeira fase da infância teria, sim, ligação com o tamanho do hipocampo, o que levaria, inclusive, a diferentes padrões de respostas ao estresse. Crianças emocionalmente saudáveis apresentaram hipocampos maiores, comparados aos hipocampos de crianças deprimidas, e isso pôde ser correlacionado ao grau de cuidado materno recebido quando eram menores. Embora quase a totalidade dos cuidadores do estudo tenham sido as mães, os autores acreditam que isso possa ser extrapolado para qualquer cuidador que seja o principal responsável pelos cuidados afetivos com a criança (mãe, pai, avós ou outros).

Já faz tempo que a ciência mostrou que a modi icação de um comportamento muda, também, o cérebro do indivíduo, causando, consequentemente, uma nova modi icação do comportamento. É nisso que se baseia, por exemplo, a psicoterapia cognitiva-comportamental. A mudança de comportamento altera a estrutura cerebral e essa alteração muda seu comportamento. Um círculo sem fim.

Sabendo disso, é fácil compreender, então, que a forma como se trata uma criança altera seu cérebro. E que esse cérebro, assim alterado, promoverá comportamentos relacionados. Quando você cria com apego seguro, você

está moldando um cérebro para que ele possa atuar com toda sua potencialidade, sem amarras, sem más resoluções, sem entraves.

Num mundo onde o apego material tem sido reforçado e incentivado, prefira o apego emocional seguro, fruto da abundância. Não da falta. Ligia Moreiras Sena é mãe da Clara. Bióloga, mestre em Psicobiologia, doutora em Farmacologia, 2º doutorado em Saúde Coletiva, estudando a ocorrência de violência no parto. Autora do blog Cientista Que Virou Mãe, Fundadora do Bazar Coisas de Mãe (Florianópolis, SC) e criadora do grupo de discussão no Facebook “Maternidade Consciente”.

No documento O Livro Da Maternagem - Thelma B. Oliveira (páginas 39-45)