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Sobre gestar e parir

No documento O Livro Da Maternagem - Thelma B. Oliveira (páginas 65-70)

Roxana Knobel

A gravidez é uma verdadeira maravilha isiológica. Em apenas nove meses uma única célula torna-se um ser humano completo, capaz de viver autonomamente. O embrião cresce no ventre materno, sem necessidade de intervenções. O organismo da mãe se adapta para receber esse ilho e todos os seus órgãos, vísceras, ossos, todas as suas células se modi icam para gestar essa nova vida. A gestação ocorre e, na maioria dos casos, só temos que esperar que a natureza faça sua parte.

Mas, se tudo é tão isiológico, por que fazer ‘pré-natal’? Por prevenção. Hoje em dia sabemos que algumas doenças e problemas da mãe podem afetar sua saúde ou a do seu bebê. Precisamos de alguns exames e de acompanhamento no pré-natal. São exames de laboratório simples e acompanhamento clínico (pressão arterial, tamanho da barriga, peso da mãe) que são feitos pelos pro issionais de saúde e previnem complicações sérias. Por isso, é importante fazer o pré-natal. “A criança necessita de amor e compreensão, para o desenvolvimento pleno e harmonioso de sua personalidade; sempre que possível, deverá crescer com amparo e sob a responsabilidade de seus pais, mas, em qualquer caso, em um ambiente de afeto e segurança moral e material; salvo circunstâncias excepcionais, não se deverá separar a criança de tenra idade de sua mãe.” Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O processo de parto também é natural e fantasticamente complexo. Os organismos da mãe e do bebê preparam-se para a necessária separação. Há uma complexa rede de modi icações (hormônios, ossos, ligamentos, útero, sistema cardiorrespiratório) que deixam a mulher grávida apta a parir. O parto em que se respeita a isiologia (a normalidade do parto) é muito mais seguro para a gestante e para o bebê, porque todo o processo é uma cadeia de eventos. Assim como a gestação, na maioria dos casos, o parto deveria acontecer sem intervenções, teríamos que esperar... E a natureza faria sua parte.

Assim como no pré-natal, alguns problemas podem acontecer também no parto e colocar em risco a vida ou a saúde da mãe e do bebê. Por isso, é importante que um pro issional treinado acompanhe o parto para que, no caso de haver algum problema, este seja corrigido a tempo. Que a tecnologia e o avanço da ciência médica permitiram salvar vidas é indiscutível. O uso seguro de antibióticos, anestésicos, derivados de sangue e cirurgias – tudo isso diminuiu consideravelmente a possibilidade de acontecer algo grave com a mãe ou com o bebê.

O excesso de intervenção onde não há necessidade faz mais mal do que bem. Porque um fato interessante vem acontecendo. A maioria de nós, (não só os pro issionais de saúde, mas a população toda), deixou de acreditar no parto (e alguns até na gestação) como um evento isiológico. E passou a acreditar que o parto não é um processo normal em que a mulher dá à luz a um bebê, mas um momento “bomba relógio” em que algo ruim vai acontecer se intervenções não forem realizadas.

Como isso aconteceu é uma longa e tortuosa história. Há várias explicações históricas, culturais, de gênero, de capital e distribuição de recursos em que médicos, escolas de medicina, meios de comunicação, gestores e sociedade em geral têm sua parcela de culpa e que não cabe discutir neste pequeno texto.

encarada como estritamente necessária para todos os males femininos. Assim, além do acompanhamento clínico e dos exames laboratoriais básicos para acompanhar a gestação de baixo risco, começaram a surgir milhares de outros exames para ‘prevenção’.

Ela icava sujeita a intervenções como: jejum até de água durante o trabalho de parto, não poder movimentar-se ou gritar, raspar os pelos pubianos, fazer episiotomia de rotina. Essa troca de uma ‘possível’ complicação por uma intervenção rotineira não era questionada nem se sabia se era adequada ou prejudicial para a mãe e seu bebê.

O parto, que deveria ser um evento isiológico bem cuidado, passou a ser um evento médico, no qual uma intervenção leva a outra que leva a outra que geralmente culmina em um parto medicalizado (induzido, doloroso) ou uma cesárea. A mulher, tão maravilhosamente preparada pela natureza para gestar e parir, acaba sendo vista (e se vendo) como incompetente, incapaz e potencialmente nociva para seu bebê.

Mas essa situação pode ser revertida. Muitas mulheres vêm demonstrando o desejo de serem respeitadas e de protagonizar seu parto. Ao mesmo tempo, existe um processo de revisão cientí ica das práticas obstétricas que evidencia a efetividade e segurança de uma atenção ao parto com um mínimo de intervenção. Segundo este novo paradigma, qualquer intervenção sobre a isiologia só deve ser feita quando se prova criteriosamente mais segura e/ou efetiva que a não intervenção.

A mulher parturiente pode ser a dona do seu parto, a protagonista do evento. Ela pode caminhar, dançar, tomar banho, icar com seu parceiro (ou outras pessoas com quem se sentir segura e confortável), pode icar de cócoras, ou sentada, ou como melhor lhe parecer naquele momento. Esse parto assistido, mas sem intervenções desnecessárias e no qual a parturiente e seu ilho são o centro do evento, é chamado de parto humanizado.

alguns, parto humanizado é apenas aquele no qual a mulher não é maltratada, é chamada pelo nome ou pode movimentar-se. Outros consideram parto humanizado o parto sem dor. Aquele parto no qual a mulher “não sente nada”. Também há quem considere parir uma coisa animal, e o parto humanizado é sempre a cesárea. Há locais que apregoam que realizam partos humanizados e, na realidade, apenas enfeitaram as paredes e colocaram música ambiente.

Mas, se a gestante/parturiente/mãe não for a protagonista do seu parto, nada será diferente. Porque essa mulher não será sujeito, será objeto e não há humanização possível sem isso, é apenas “sofisticação de tutela”. Não existe um “pacote CVC” de parto humanizado no momento, como diz uma amiga minha. Por isso, a não ser que você conheça muito bem a equipe que vai acompanhá-la, é interessante fazer um “plano de parto” – esse é reconhecidamente um item que promove melhorias na assistência. Em primeiro lugar, conheça todas as opções possíveis. Depois, pergunte como são as rotinas do local em que você deseja parir e/ou as opiniões da equipe que assistirá seu parto (obstetra/parteira/pediatra) sobre as mesmas. Elabore, então, o plano que julgar mais interessante. Depois, discuta com a equipe a possibilidade de o seu plano ser executado. Se houver resistência por parte da equipe, estude as medidas que podem ser tomadas para contorná-la.

Veja quais pontos alegados são importantes para você. Converse, discuta. Sinta se o pro issional está lhe escutando, cuidando de dar respostas a suas inquietações ou reivindicações. Cuidado com respostas evasivas do tipo “na hora a gente vê”, “pode ser”, “na hora a gente tenta”... Se não houver diálogo com empatia, considere trocar de equipe.

Vale lembrar: nenhum procedimento pode ser imposto a você sem seu consentimento, a não ser que haja risco de vida. Não se sinta frustrada se tudo não sair exatamente como planejado. A ideia do plano de parto é permitir que a equipe de assistência (e até você mesma) conheça os seus

desejos e os respeite. Às vezes as coisas evoluem de maneira diversa do previsto e alguns itens terão de ser trocados. Isso não signi ica que seu parto será ruim ou menos satisfatório para você e o bebê.

Referências Bibliográficas

Diniz C. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos

de um movimento. Ciência &’ Saúde Coletiva 2005; 10(3):627-637.

Enkin M KM, Neilson J, Duley CCLD, Hodnett E, Hofmeyr J. A guide to

effective care in pregnancy. New York: Oxford University Press; 2000.

Green JM, Baston HA. Feeling in control during labor: concepts, correlates,

and consequences. Birth 2003;30(4):235-47.

Jones R. Memórias do Homem de Vidro – reminiscências de um obstetra

humanista. Porto Alegre: Ideias a Granel, 2004.284p.

OMS. Assistência ao Parto Normal: Um Guia Prático . In: Genebra, editor, 1996.

“Ao contrário do que vemos em filmes, que mostram as pessoas agitadas e gritando que se faça algo rápido na hora do parto, o

ideal é ‘não fazer quase nada e esperar’.” Laura Gutman / Crianza p. 53

As águas vão rolar...

No documento O Livro Da Maternagem - Thelma B. Oliveira (páginas 65-70)