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Parte I. Evolução da ocupação histórica do litoral português na época contemporânea:

B) Práticas e consequências da intervenção humana no litoral

1. A antropização do espaço costeiro

1.1. A transformação das povoações do litoral: dos palheiros às grandes urbanizações turísticas

1.1.4. Afirmação do turismo de massas e seu impacto sobre a faixa litoral

Os anos 50 do século XX assinalaram uma viragem em termos do fenómeno turístico. O crescimento económico que se seguiu ao pós-guerra permitiu o aumento do poder de compra e das regalias sociais dos trabalhadores. Pela primeira vez o desenvolvimento dos transportes – especialmente da aviação - fez com que fosse fácil, seguro e barato viajar a longas distâncias. Esta realidade influenciou de forma determinante a evolução quantitativa (e qualitativa) do turismo. Simultaneamente, o produto “Sol e Mar” tornou-se moda, e por conseguinte altamente procurado, sobretudo por indivíduos do Norte e Centro da Europa, que viam no clima soalheiro e nas águas quentes do Sul um destino de eleição. Os números do turismo eram então elucidativos: os estrangeiros entrados em Portugal passaram de 55 mil, em 1950, para 352 mil, em 1960310. Nas décadas que se seguiram observou-se também o crescimento do turismo interno, à medida que a melhoria do nível de vida e a aquisição de determinados direitos sociais (como vimos em pormenor em I.A.2.2.4) se foram generalizando ao conjunto da população. A democratização dos tempos de lazer e a consequente intensificação da procura das praias tiveram consequências profundas a nível da ocupação e transformação do litoral.

Com efeito, «a valorização social e económica da praia e a sua integração nos circuitos de comercialização internacional levou a que muitas áreas, (...) eminentemente agrícolas ou piscatórias, se transformassem em territórios estruturados a partir do

309 Francisco José da Cruz de Jesus, Op. cit., p. 58. 310 Sérgio Palma Brito, Op. cit., vol. II, pp. 708-709.

turismo e para o turismo»311. Visto que esta actividade funciona como um poderoso catalisador de impactes, marcando indelevelmente o espaço onde se desenvolve, sobretudo a nível das estruturas socioeconómicas e das formas de povoamento e de ocupação do território. De acordo com Eunice Gonçalves, a massificação dos destinos balneares implicou uma rápida e ampla disseminação dos usos turísticos, o que se reflectiu no aumento das áreas urbanizadas através da expansão dos aglomerados pré- existentes e/ou na criação de novos espaços edificados. A partir dos anos 60, a concentração da população na faixa litoral, para efeitos de fruição e lazer, de uma forma sazonal, deu origem a grandes transformações funcionais e urbanísticas, consubstanciadas na formação de um novo sistema de aglomerados, em que pequenos povoados costeiros foram convertidos em “cidades de frente de mar” ou “cidades especificamente turísticas”. A nova realidade territorial sobrepôs-se à previamente existente determinando os potenciais usos do solo e instituindo-se como factor regulador dos preços deste, mediante uma hierarquização dos terrenos, definida em função da sua valorização turística. Unidades de alojamento, infra-estruturas e equipamentos variados, segundas residências, habitações para a (crescente) população local, comércio e serviços de apoio, todos estes elementos concorreram entre si para criar um dinamismo que se assemelhava ao mercado predial e imobiliário do tipo urbano das grandes cidades e suas periferias. O carácter depredador do turismo em relação ao recurso “solo” foi responsável pela modificação das formas de organização do espaço litoral, mediante a sua sujeição à pressão dos valores imobiliários (e demográficos); tendo-o transformado também em pomo de discórdia, tensões e conflitos, motivados pelos múltiplos e divergentes interesses (económicos, sociais, ambientais, etc.) que ali se passaram a desenvolver312.

Na segunda metade do século XX, surgiram pela primeira vez grandes projectos de promoção turística para determinadas zonas do litoral313 envolvendo a construção de enormes empreendimentos, compreendendo a edificação de raiz de alojamentos, infra- estruturas de lazer, comércio e apoio e vias de comunicação, sob o patrocínio de empresas privadas e com a tutela do Estado e /ou das autarquias. É de ressalvar que os conhecimentos sobre dinâmica costeira e riscos associados ao mar eram quase inexistentes, pelo que os projectos elaborados não tiveram minimamente em

311 Eunice Gonçalves, "O desenvolvimento dos territórios turísticos: o caso das áreas balneares",

Investigações em turismo: ciclo de debates - 2001: livro de actas, Lisboa, 2003, p. 83, 92-93, 97.

312 Id., Ibid., pp. 92-93 e 97-99.

consideração estes factores. Em muitos casos os erros (sabemos hoje que o são) então cometidos estão na origem de alguns dos principais problemas do litoral português. Maria da Graça Briz refere que estes planos, «inéditos entre nós e de ambição comparável, ou mesmo superior, ao que então se fazia nas costas mediterrânicas europeias», inauguram o aparecimento das “cidades” vocacionadas para o turismo, caindo em desuso o termo “estâncias balneares”, por demasiado redutor314. Foi neste contexto que surgiu o projecto de urbanização da península de Tróia (na década de 70) que previa a instalação numa faixa de areia, praticamente deserta, de um complexo turístico capaz de albergar (segundo o Plano Andersen de 1965) 78.000 pessoas, em hotéis, habitações unifamiliares e blocos de apartamentos (de média a grande dimensão - 3, 6, 9 e 19 andares). Este conjunto residencial seria servido por uma série de equipamentos – piscinas, esplanadas, restaurantes, vestiários de praia, recintos desportivos, campo de golfe, marina, rodovias e parques de estacionamento315.

Este foi também o período em que se assinalou a descoberta do litoral sul do país, com a conquista e ocupação das praias do Algarve pelo turismo balnear de massas. Entre 1962 e 1965, assistiu-se ao crescimento contínuo do número de turistas ingleses, que se concentravam sobretudo nas praias entre Albufeira e Faro. Nos anos seguintes, aumentou a procura por parte dos alemães que se instalavam preferencialmente a barlavento, em Lagos, Portimão e Sagres. O desenvolvimento dos transportes modernos foi essencial para projectar a imagem desta província: a abertura do aeroporto de Faro (1965) permitiu integrá-la nos circuitos turísticos internacionais aproximando-a dos grandes centros emissores de clientela. A par e passo com a evolução da procura cresceu também a capacidade da oferta e recepção: em 1958, foi construído um centro de férias da FNAT em Albufeira, atraindo os lisboetas a estas praias e, em 1960, surgia em Monte Gordo o primeiro grande hotel do Algarve.

À medida que o fluxo de visitantes se intensificava, as velhas povoações costeiras foram sendo progressivamente renovadas e equipadas, surgindo paralelamente novos centros turísticos criados de raiz fora dos núcleos urbanos316 – por exemplo os resorts das Areias de S. João, da Penina, de Vale de Lobo e da Quinta do Lago. Entre estes destacou-se, sobretudo, a “cidade turística” de Vilamoura, construída nos terrenos da Quinta de Quarteira, explorada de forma agrícola até perto dos anos 60.

314 Maria da Graça Briz, Op. cit., p. 362. 315 Id., Ibid., pp. 371, 376,

A febre de construção não se ficou pelo Algarve atingiu quase toda a orla costeira portuguesa, ainda que em menor escala (em termos de número de turistas, de construção e de impacto sobre as populações ribeirinhas, o que se passou na região algarvia não teve paralelo com nenhuma outra zona marítima de Portugal). António Carlos Matos, no seu estudo sobre o impacto do turismo no litoral de Caminha, constatou in situ e a partir da análise da evolução histórica daquela localidade que, nos anos 60, com o aumento da procura, a subida do preço dos terrenos e a progressiva escassez da área disponível, se verificou a diversificação das tipologias de ocupação do solo, «surgindo as primeiras soluções optimizadoras da ocupação do espaço, nomeadamente o aparecimento dos primeiros edifícios de vários pavimentos»317. Daí em diante, o processo de urbanização avançou com rapidez, quer através de iniciativas privadas, quer por determinação camarária, sendo que a proliferação de loteamentos para construção aumentou a pressão sobre os terrenos, quer da orla litoral, quer de interesse agrícola. Na costa do Fão observou-se uma situação semelhante: Joaquim Martins Sampaio refere que o número de residências secundárias aumentou extraordinariamente nos anos 40, mas a generalização deste fenómeno só aconteceu a partir dos anos 70/80. De facto, a década de 60, época da afirmação de Esposende como destino turístico, marcou a viragem na construção urbanística do concelho, com a edificação dos primeiros bairros de residências secundárias unifamiliares, de entre os quais se destacou o Aldeamento da Bonança (1967), edificado sobre as dunas de Ofir, assinalando o início do interesse dos promotores turísticos por aquela praia. O decénio seguinte foi pautado pela construção das Torres e do Hotel de Ofir e alguns blocos habitacionais de carácter multifamiliar (Fig. 36): estruturas com volumes de dimensões consideráveis e por isso mesmo constituindo marcos de referência territorial. Daí em diante, o ritmo construtivo acelerou, sendo que «em 1970, Esposende contava somente com 385 alojamentos familiares clássicos de uso sazonal, em 1981 registava 1278, em 1991 passaram para 2383 e em 1997 foram contabilizadas 3004 residências secundárias»318.

317

António Carlos Menezes Matos, Op. cit., p. 41.

318 Joaquim Martins Sampaio, A residência secundária em Esposende. Estudo sobre o impacte da

residência secundária na dinâmica e organização do território de um concelho do Litoral Norte de Portugal continental e periférico à Área Metropolitana do Porto, Tese de Mestrado em Geografia – Dinâmicas Espaciais e Ordenamento do Território, FLUP, Porto, 1998, pp. 107, 109-111.

Figura 36. As Torres de Ofir e os blocos multifamiliares construídos em cima do cordão dunar (Alveirinho Dias, Estudo de avaliação da situação ambiental..., p. 69)

Foi também nesta época que a explosão do turismo se tornou responsável por inúmeros atentados urbanos, arquitectónicos, paisagísticos e ambientais, contra a orla marítima portuguesa, fruto de uma especulação imobiliária desenfreada e mal controlada, sobretudo durante o período de instabilidade governativa que se seguiu ao 25 de Abril de 1974319. Esta realidade, já descrita (em termos teóricos) por investigadores como Rebollo e Eunice Gonçalves320, prende-se com a forma como a massificação dos destinos balneares foi responsável pela introdução de um modelo depredador de implementação turística no território, em frequente contradição com as aptidões do meio físico e humano. Um pouco por todo o lado, o litoral português viu-se alvo dos «assaltos de uma edificação urbana que (...) avança[va] desconforme, por vezes horrenda, sem dimensão humana e enquadramento paisagístico capaz, ao assalto dos poucos terrenos ainda vagos desta bárbara invasão dos tempos modernos»321.

Simultaneamente, a intensificação da procura e a pressão exercida sobre a orla costeira davam origem a conflitos diversos, em torno dos diferentes interesses que norteavam o acesso e o usufruto do litoral: se por um lado, o elevado preço dos terrenos tendia a converter este espaço num local reservado aos privilegiados; por outro, as populações reivindicavam o direito ao usufruto de um bem comum, ocupando terras indevidamente e fazendo proliferar uma construção clandestina de má qualidade, consentânea com o seu nível económico. Desta forma, a ocupação da linha de costa evoluiu rapidamente para a situação em que se encontra hoje - fortemente humanizada e

319 Maria da Graça Briz, Op. cit., p. 403.

320 José Fernando Vera Rebollo, “Turismo y territorio en el litoral mediterraneo español”, Estudios

Territoriales, 32, 1990; Eunice Gonçalves, Op. cit.

urbanizada -, revelando em certos locais uma frente contínua de vários quilómetros. As consequências desta intensa antropização do litoral serão analisadas no próximo capítulo.

1.2. Grandes obras e intervenções humanas com reflexos na orla