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Parte I. Evolução da ocupação histórica do litoral português na época contemporânea:

A) História das representações do litoral

1. O medo do mar e o povoamento da orla costeira

1.1. Os perigos do litoral português 1 Um visão fantástica do oceano

1.1.3. Naufrágios, tempestades e galgamentos oceânicos

As evocações negativas associadas ao oceano apoiavam-se nas situações concretas e tantas vezes pungentes da vida marítima: piratas e corsários não eram o único perigo da costa portuguesa, os naufrágios eram muito frequentes, especialmente quando a navegação era dificultada pelas características morfológicas da orla marítima e pelas condições atmosféricas. Os pontos negros do litoral, no que respeita a desastres com embarcações, eram sobretudo as barras de Lisboa e do Porto, Caminha, Viana do Castelo, Aveiro, Nazaré, S. Martinho do Porto, Figueira da Foz, Peniche, Vila Nova de Milfontes, Lagos, Portimão e Faro. Por si, os naufrágios não faziam com que as pessoas não quisessem viver no litoral – às vezes eram até uma fonte de rendimento para as populações locais que viviam da recuperação dos salvados -; contudo, contribuíam para instilar o medo do mar, já que a morte nas águas, não permitindo a administração dos últimos sacramentos e o cumprimento dos rituais cristãos de culto dos mortos por falta de um corpo, era profundamente temida estando associada à crença na danação eterna68.

Os incidentes que ocorriam junto à costa eram dramáticos: perder a vida no fim da viagem, à vista de terra e de populações que assistiam sem nada poderem fazer, devido à agitação marítima ou à falta de meios de socorro, era um momento terrível de agonia colectiva. De muitas embarcações nada se sabia até que os destroços surgissem na praia: «na força de uma violenta tempestade, um grosso Navio com o mastro grande partido, com as velas todas rasgadas, sem leme, e inteiramente à matroca e discrição das ondas, veio a ficar atravessado na Costa [do Furadouro]. Dos papéis que se acharam, constou, que era a nau Inglesa, John Palmer, (...), e vinha de Calcutá com uma carregação muito importante. Supõem-se, pelos mesmos papéis, que trazia 400 pessoas, as quais todas perecerão, tendo vindo ter a terra só quatro cadáveres até ao dia 15»69.

Os relatos de naufrágios foram muito populares junto do público entre os séculos XVI e XIX. Embora se desconheça a tiragem destes opúsculos, sabe-se que muitos deles eram impressos várias vezes e que as edições se esgotavam rapidamente. Por exemplo, a narrativa do naufrágio do vapor Porto, ocorrido em Março de 1852, teve três

67 Carlos Cunha, Op. cit., p. 5.

68 Alain Cabantous, Le ciel dans la mer. Christianisme et civilisation maritime (XVe-XIXe siécles), s.l.,

1990, p. 51.

edições nesse mesmo ano. Este tipo de acontecimento dramático emocionava profundamente a opinião pública e tinha grande procura por parte dos leitores: se numa primeira fase isto se deve ao envolvimento de uma grande parte da população na aventura ultramarina70; mais tarde, o empolamento da questão foi feito pelos jornais que viam neste tipo de notícias uma forma de aumentar as vendas (como ainda hoje acontece). A perda de vidas humanas e a dor das famílias, em particular aquelas que viviam da pesca, eram largamente exploradas nas primeiras páginas, como aconteceu em 1892: «Horrorosa desgraça na Póvoa do Varzim. Grande número de vítimas» ou «Tripulações inteiras, dezenas de homens, são devorados implacavelmente pelas ondas, (...). Nos anais dos naufrágios portugueses já há muito tempo que não se inscreve uma página tão dolorosa, tão pungente, tão trágica»71. Na tradição oral de algumas populações piscatórias também se conservava a memória de certos episódios, para lembrar a ameaça latente que pairava de forma permanente sobre a vida destas comunidades: «Em 25 de Março – houve uma grande paixão/ Dispaceram três rapazes – deste povo d´Armação/Té aqui não são chegados – nem à praia, à costa deram/(...)/Abalaram todos três – não levavam a certeza/ Que o mar que se levantava – da altura da fortaleza»72.

Os litorais são muito vulneráveis ao vento pelo que é frequente encontrar no registo histórico referências a ventos fortes (por via de regra associados a temporais no mar), inclusivamente a ciclones que, embora raros, aconteceram e permaneceram na memória das populações: «hoje às 11 horas da manhã foi vista uma tromba marinha no mar, ao sul desta vila [Póvoa do Varzim]. Do fenómeno só resultou um grande aguaceiro, vendo-se a tromba seguir por grande espaço de tempo na direcção de leste» ou «um grande tufão nesta costa [de Portimão] causou perda completa de sete barcas com carga»73. Os temporais afectavam não só os navegantes, mas também as gentes ribeirinhas: a fúria dos elementos impedia os pescadores de exercerem a sua actividade, condenando-os em alguns casos à miséria e à fome, e obrigava ao encerramento das barras, prejudicando gravemente o tráfego marítimo. Não raras vezes, as ondas invadiam o areal e destruíam as edificações que lhe estavam mais próximas, quer

70 Giulia Lanciani, Os relatos de naufrágios na literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, Amadora,

1979, p. 29-31.

71 Diário de Notícias, 29-02-1892 e 01-03-1892, p. 1. 72 J. Leite de Vasconcelos, Op. cit., vol. II, p. 472.

fossem simples cabanas de pescadores, quer povoações de pedra e cal e estruturas portuárias. O conhecido caso dos galgamentos marítimos em Espinho, nos finais do século XIX, causou impacte profundo junto da sociedade civil, porque se tratava de uma famosa estação balnear e várias das habitações destruídas, para além dos palheiros dos pescadores, pertenciam a gente influente e de recursos.

É preciso ainda lembrar que, por ocasião do terramoto de 1755, um maremoto devastou parte da costa portuguesa, atingindo sobretudo o litoral a sul de Peniche, submergindo várias povoações. Segundo os testemunhos da época, «o mar desta costa [Algarve] subiu tantas varas sobre a sua superfície, que entrando pelas ribanceiras inundou os campos; e quando retrocedeu levou consigo as Fortalezas que nela havia para impedir os desembarques dos Mouros, e com elas toda a Vila de Albufeira que lhe estava sobranceira na mesma costa, deixando nos matos um grande numero de peixes grandes, e pequenos»74. A destruição causada pela subida catastrófica do nível do mar terá, sem dúvida, deixado marcas significativas entre os sobreviventes e nas gerações posteriores.