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Parte I. Evolução da ocupação histórica do litoral português na época contemporânea:

A) História das representações do litoral

2. A invenção social da praia

2.2. Vivências, práticas e sociabilidades associadas ao usufruto do espaço marítimo

2.2.2. Os banhos de mar em Portugal: uma prática das elites

Em Portugal, o aparecimento do fenómeno da praia foi mais tardio do que no resto da Europa (do Norte), mas a sua introdução ficou a dever-se como naquela às iniciativas da família real e da aristocracia que frequentava a corte. O hábito da vilegiatura – «temporada passada fora da própria casa, para recreio, repouso ou tratamento»121 - era praticado já no tempo do Império Romano122 e nunca desapareceu por completo entre as classes sociais mais favorecidas. A partir do século XVII tornou- se comum as elites portuguesas passarem a estação calmosa nas quintas que possuíam, um pouco por todo o país, para fugir aos ardores do verão e às epidemias que grassavam nas cidades. No século XVIII, Sintra ganhou fama e prestígio como local de veraneio, assim como algumas importantes quintas edificadas na margem ocidental do Tejo, como a Quinta do Marquês de Pombal, em Oeiras, e a Real Quinta de Caxias. As notícias da Gazeta de Lisboa permitem constatar que a rainha e as suas damas passeavam com frequência de barco no rio e que a realeza costumava ir, por mar, até Belém, Paço de Arcos, Oeiras ou Carcavelos, pescar, caçar, visitar amigos ou divertir-se nas casas de campo que por ali existiam123. Quando do estrangeiro começaram a chegar ecos sobre os benefícios dos banhos de mar, a nobreza «saiu das suas quintas e palácios, nas liteiras, nas cadeirinhas (...) e foi até à beira do areal (...) mergulhar no rio», nas praias que ficavam «diante dos portões armoriados das quintas do arrabalde»124. Em 1783, o periódico lisboeta informava que «a Senhora D. Maria Francisca Benedicta, Princesa do Brasil, vem há alguns dias de Queluz ao sítio de Caxias tomar aí banhos do mar: o Príncipe seu Augusto Esposo principiou anteontem os mesmos banhos»125.

Algumas obras, datadas de finais do século XVIII e princípios do seguinte, dão conta da utilização da água do mar com fins terapêuticos (e não só), na Junqueira e Santa Apolónia (1786); da existência de barcas de banhos no Tejo (1811); e da frequência do sítio da Foz, durante a época estival, por parte da sociedade elegante do

121 Segundo o Dicionário prático ilustrado, Porto, 1961, p. 1296.

122 Segundo Pierre Grimal, na época de Augusto, era habitual os senadores possuírem villas em várias

regiões: casas de montanha para passar o verão e casas junto ao mar, mais próximas e acessíveis, para pequenas férias. La civilisation romaine, Paris, 1968, pp. 228.

123 Gazeta de Lisboa, n.º 27, 07-07-1718, p. 210; Id., n.º 33, 17-08-1719, p. 264; Id., n.º 41, 09-10-1721,

p. 328; Id., n.º 25, 22-11-1725, p. 376; Id., n.º 18, 01-05-1727, p. 144; Id., n.º 29, 17-07-1727, p. 232; Id., n.º 43, 21-10-1728, p. 384; Id., n.º 16, 20-04-1730, p. 128.

124 Branca de Gonta Colaço e Maria Archer, Memórias da linha de Cascais, Lisboa, 1943, p. 47. 125 Suplemento à Gazeta de Lisboa, n.º 28, 18-07-1783.

Porto, nos anos de 1824-25126. Em 1842, um aristocrata estrangeiro, de visita a Portugal, mencionava nas suas memórias que, em S. João da Foz e Matosinhos, existiam numerosas “casas de campo”, para onde os seus proprietários iam a banhos, embora faltassem ali «as requintadas comodidades e as necessárias provisões para o alojamento e recreio dos estrangeiros, coisas todas elas que t[inham] aumentado em grande escala em quase todos os países da Europa Ocidental»127. A maior afluência de banhistas ao litoral só se verificou, porém, na segunda metade de Oitocentos, quando a corte se instalou em Cascais durante o verão: este acontecimento, bastante conhecido e estudado, foi o catalisador da difusão da moda dos banhos em Portugal128. Em 1869, o Diário de Notícias descrevia assim o fenómeno balnear: «Interessante o espectáculo que nas manhãs destes dias, das 5 horas às 9, oferecem as margens do nosso belo rio. Espantosa quantidade de pessoas andam fazendo uso dos banhos. Na margem sul são concorridas as praias do Alfeite, Caramujo, Margueira, Cacilhas e Ginjal, e na do norte desde as mais económicas e populares barracas do Cais dos Soldados, praia de Santos, rocha do Conde de Óbidos e Alfarrobeira, onde vão muitos botes com banhistas, até às aristocráticas e elegantes da Junqueira, Belém, Pedrouços, Caxias, Paço de Arcos e Cascais»129.

A prática da vilegiatura marítima esteve nos seus primeiros tempos limitada àqueles grupos restritos que tinham posses para passar largas temporadas fora de casa, entregando-se ao ócio e ao lazer. Durante o período do exílio (em consequências das guerras liberais) ou em viagens de recreio, alguns titulares da nobreza portuguesa tiveram oportunidade de conhecer as praias da moda em Inglaterra e França, onde se familiarizaram com as regras, as práticas e as sensações associadas ao usufruto do espaço costeiro, cujos modelos introduziram nas estâncias balneares nacionais. O Marquês de Fronteira e de Alorna, que frequentou Dieppe, recordava nas suas Memórias alguns episódios de infância, quando toda a família se instalava junto ao mar, a conselho do médico. Em S. José de Ribamar, e depois em Pedrouços, reunia-se um conjunto de famílias conhecidas, que ali mantinham os seus hábitos sociais130. Logo pela manhã, «homens e crianças entravam na água com longos fatos de malha, colantes,

126 Matusio Mata, Op. cit.,; Anónimo, A barca dos banhos...; Anónimo, Os banhos de mar ou os olhos de

uma senhora banhados em lágrimas por se ver contrariada no desejo de ir a eles, Porto, 1825.

127 Félix Lichnowsky, Portugal. Recordações do ano de 1842, Lisboa, s.d., p. 175. 128 Margarida de Magalhães Ramalho, Uma corte à beira-mar, Lisboa, 2003. 129 Diário de Notícias, 14-09-1869, p. 2.

130 D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, Memórias do Marquês de Fronteira e d´Alorna, Lisboa,

às riscas horizontais brancas e pretas, joelhos cobertos e mangas abaixo dos cotovelos. E as senhoras arrastavam pela areia e pela água as pesadas caudas duns vestidos de castorina escura, avivada a nastro branco. Com luxo supremo usavam-se os vestidos de banho em alpaca preta bordada a soutache de seda branca»131. Depois do banho, que se tomava como remédio e não por prazer, fazia-se vida de sociedade: passeava-se a pé ou a cavalo, faziam-se merendas, serenatas, saraus, recitais e bailes (Fig. 5 e 6).

Fig. 5 Fig. 6

Figura 5. As elites na Praia da Figueira da Foz em 1899 (diasquevoam.blogspot.com/search/label/Figueira%20da%20Foz). Figura 6. As senhoras na praia no início do século XX, autor Paulo Guedes (AFCML)

Anos mais tarde, em Cascais, durante a época de veraneio da realeza e das famílias mais ilustres – os duques de Palmela, de Loulé, os condes de Ficalho, os Galveias, Atalaias, Redondos, Atouguias, Assecas e muitos outros –, a vila piscatória animava-se com a reprodução do fausto e da complexidade dos rituais da corte, tornando-se o centro mundano da distinção, da elegância e das boas maneiras. Cumpridos os deveres matinais na praia, a aristocracia ocupava-se em torneios de ténis, jogos de cricket, tiro ao alvo, piqueniques e saraus; passeios de charrete à praia da Adraga, ao Guincho, às quintas das redondezas 132. Este grupo selecto recebia os amigos em casa, convivia apenas com elementos pertencentes ao seu círculo e frequentava em exclusivo a Parada, clube reservado aos membros e com acesso restrito. A elite não transigia com a promiscuidade social, Cascais converteu-se no seu refúgio, depois de terem abandonado as praias mais próximas de Lisboa, à medida que estas foram sendo

131 Branca de Gonta Colaço e Maria Archer, Op. cit., p. 19. 132 Id., Ibid., pp. 339-341, 369.

invadidas pela burguesia endinheirada, «essa camada de recente lustro e tom, ansiosa de se aristocratizar com o trato da fidalguia»133.