• Nenhum resultado encontrado

Parte I. Evolução da ocupação histórica do litoral português na época contemporânea:

B) Práticas e consequências da intervenção humana no litoral

1. A antropização do espaço costeiro

1.1. A transformação das povoações do litoral: dos palheiros às grandes urbanizações turísticas

1.1.2. A descoberta das praias e a construção dos primeiros equipamentos balneares

A partir do século XIX, pequenas povoações piscatórias ou áreas desertas foram pouco a pouco crescendo com o aparecimento de novas casas, hotéis, estabelecimentos comerciais e todo um vasto leque de infra-estruturas essenciais à instalação de uma massa humana específica. Os guias propagandísticos destinados aos banhistas, de finais de Oitocentos/inícios do século XX, valorizavam sobretudo – em detrimento da paisagem e das condições naturais - os meios de comunicação e os equipamentos disponíveis em cada localidade: o que mostra claramente que os transportes, os serviços de apoio e as formas de ocupação dos tempos livres eram factores relevantes na escolha da praia.

Assim, as estâncias balneares mais conhecidas tinham quase todas estação própria ou apeadeiro, estando o seu desenvolvimento na maioria das vezes associado à difusão do caminho-de-ferro, que permitiu torná-las acessíveis a um maior número de indivíduos. A grande afluência inicial às praias mais perto de Lisboa e Porto resultou da construção da Linha de Cascais e da expansão dos carros eléctricos até Leça e Matosinhos. Depois, a instalação das Linhas do Norte, do Minho e da Póvoa propiciou a divulgação e dinamização de praias como a Granja, Espinho, Âncora, Moledo, Vila do Conde e Póvoa do Varzim287 (rever Fig. 8). Em certos casos, a ausência de meios de

284 Diário do Governo, 15-07-1885; Augusto Pinho Leal, Op. cit., II, p. 97; Raúl Brandão, “Costa de

Caparica”, Guia de Portugal, vol. I, pp. 636-637; A praia da Costa (Caparica). Estância balnear, de

cura, de repouso e de turismo, Lisboa, 1930.

285 Raúl Proença e Santana Dionísio, “Excursões na Ria”, Guia de Portugal, vol. III, 1993 [1.ª edição de

1944], p. 530.

286 Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, vol. VI, Lisboa, 1975, pp. 194-196.

287 Joaquim Baginha, Guia do excursionista e banhista com indicação dos pontos dignos de visitar nas

transporte ou a falta de serviços regulares condicionou o acesso a determinados trechos do litoral, que por esse motivo só passaram a ser concorridos numa época mais tardia. Falamos da costa alentejana e do Algarve, onde o caminho-de-ferro só chegou no início do século XX, estando a sua frequência limitada durante muito tempo aos povos da região. A partir dos anos 40, com a melhoria da rede viária e dos transportes automóveis, a maioria das localidades costeiras passou a ser servida também por carreiras regulares de autocarros.

Nestas povoações do litoral bem depressa surgiram hotéis, pensões e casas para alugar. Nos primeiros anos da emergência do fenómeno balnear, as estruturas de apoio aos banhistas eram diminutas, pelo que estes se instalavam nas casas dos pescadores, que arrendavam durante o verão. Depois, a construção imobiliária desenvolveu-se de forma a acompanhar a procura crescente. Aqueles que tinham mais posses mandavam edificar vivendas e chalets junto à costa, os outros ficavam nos hotéis ou alugavam casas já mobiladas. Em 1888-89, Espinho, pequeno aglomerado de palheiros, possuía já hotéis e prédios para alugar; em 1918, contava com «numerosas hospedarias e casas de pensão, muitos prédios em que se alugam compartimentos e sete hotéis»288; e, na década de 60, havia três hotéis, três pensões e quatro hospedarias289. Na Nazaré, modesta povoação de pescadores, «desde Janeiro até Abril de 1875 construíram-se mais de 20 prédios, para residência de banhistas»290. Na primeira década do século XX, havia um

número considerável de habitações mobiladas naquela praia, que se alugavam por preços variados. Quanto a hotéis existiam três: o Lúcio, o Grande Hotel Clube e o Central. Em 1927, eram cerca de 600 as casas para alugar291. Na Figueira da Foz, como a afluência de banhistas se tivesse tornado importante, formou-se, em 1861, uma companhia para se erigir um novo bairro, junto ao forte de S. Catarina: «[era] o afamado Bairro Novo, (...), o lugar mais animado da Figueira, onde se v[iam] propriedades muito bem construídas e de elegante arquitectura. (...). O desenvolvimento progressivo do comércio, o aumento considerável da população, que desde 1850 se t[inha] notado e as grandes edificações [...] feit[as] depois de 1834, tornaram a Figueira de tanta

Propaganda de Portugal,Op. cit.; Santos Quintela, Guia do Excursionista em Portugal. Cidades

principais, praia, termas. Explicações úteis aos forasteiros, Porto, 1929.

288 Sociedade Propaganda de Portugal, Op. cit..

289Santana Dionísio, “Espinho”, Guia de Portugal, vol. IV (I), 1994 [1.ª edição de 1964], pp. 75. 290 Augusto Pinho Leal, Op. cit., vol. VI, 19-25.

291 Nazaré. A melhor praia de banhos de Portugal, Nazaré, s.d.; Silva Teles, Guia de Portugal, vol. II, pp.

importância que, em 1882, alcançou os foros de cidade»292. A Companhia Edificadora Figueirense parece ter sido a primeira empresa portuguesa criada para urbanizar um determinado espaço à beira-mar, à semelhança do que já se fazia nas costas de Espanha e França, com grandes lucros para os investidores293.

No Bairro Novo de Santa Catarina da Figueira da Foz, os primeiros equipamentos construídos, além das residências para habitação, foram a Assembleia Recreativa, o Teatro-Circo Saraiva de Carvalho e o Casino Oceano, sendo inaugurado, dois anos depois, o Casino Peninsular. Tratava-se de infra-estruturas essenciais para dar vivacidade às estâncias balneares, já que estas procuravam promover-se não só enquanto “praias”, mas também como lugares de lazer, recreação e festa. As localidades mais movimentadas possuíam casinos, teatros, cinematógrafo, praça de touros, clubes, associações recreativas, desportivas e cafés. Outras apenas algumas destas distracções. De qualquer forma, a vida social era muito animada durante a estação: organizavam-se bailes, concertos, espectáculos de variedades, corridas de bicicletas, regatas e outros desportos náuticos. Eram ainda frequentes os passeios aos arredores, as burricadas e os piqueniques. Na Póvoa do Varzim, por exemplo, «dois grandes e belos cafés, com óptimos bilhares, grandes espelhos, muita luz, abr[iam] as suas portas sobre a Rua da Junqueira. À noite esses cafés ench[iam]-se inteiramente. Homens, senhoras, banhistas de todas as classes, viajantes de todas as procedências, ocupa[va]m todos os bancos, aglomera[va]m-se em volta de todas as mesas»294. Em Vila do Conde, em 1888, havia apenas um clube e um restaurante. Anos mais tarde, a Sociedade Propaganda de Portugal anunciava a existência de um casino com café, confeitaria e restaurante. Faziam-se soirées semanais, concertos à tarde, festas no Clube de Ténis, sessões de animatógrafo, jogos florais, garden-parties, construções na areia, gincanas, pic-nics, burricadas, regatas e exposições. Na década de 1960, naquela localidade, proliferavam os restaurantes, cafés e pastelarias, havia um cinema, vários clubes desportivos, bem como um museu e uma biblioteca295.

A importância económica do fenómeno balnear para as cidades e povoações costeiras determinou a organização intencional do espaço urbano e turístico. O facto de a vivência da praia se fazer essencialmente através do usufruto de equipamentos

292 Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, Portugal. Dicionário histórico, biográfico, bibliográfico,

heráldico, corográfico, numismático e artístico, Lisboa, 1906-1915, vol. III, pp. 460-465.

293 Francisco José da Cruz de Jesus, Op. cit., pp. 19, 26 e 35. 294 Ramalho Ortigão, Op. cit., p. 91.

295 Sociedade Propaganda de Portugal, Op. cit.; Santana Dionísio, “Vila do Conde”, Guia de Portugal,

urbanos – hotéis, clubes, cafés, restaurantes, esplanadas, avenidas marginais, passeios marítimos -, teve como reflexo o despontar de uma preocupação com o arranjo e o embelezamento dos núcleos populacionais e das áreas envolventes, sobretudo dos terrenos mais próximo do mar. Desta forma, nas pequenas povoações do litoral tornou- se premente promover o desenvolvimento e progresso da terra. Como dizia um dos correspondentes do semanário Vilacondense, em 1910: «o forasteiro que vem à nossa praia não passa o tempo todo à beira-mar. Ele também passeia por essas ruas e avenidas, atravessa jardins e praças, (...). (...) a praia deve ser debuxada à moderna; e a vila, que está feita, essa deverá ir melhorando»296: «Esta bela estância balnear tem de progredir», reiterava o jornalista junto dos seus conterrâneos297.

Espinho foi um dos exemplos mais relevantes destas transformações: no início da segunda metade de Oitocentos, esta povoação tinha pouco mais do que alguns palheiros de pescadores e duas ou três casas de pedra e cal. Vivia essencialmente da pesca e, no verão, era frequentada por algumas famílias ilustres das redondezas. A partir do momento em que foi construída a linha férrea e passou a ser servida por um apeadeiro (depois estação) tudo mudou. A Câmara Municipal da Feira introduziu ali grandes melhoramentos: transformou o vasto areal em largas ruas macadamizadas, regularizou praças, construiu um mercado fechado e deu início aos trabalhos de abastecimento de água298. Em 1918, «a vila conta[va] muitos edifícios elegantes e confortáveis, lindas vivendas e rendilhados chalêts, bons hotéis, ruas e avenidas espaçosas, teatros, cinematógrafos, casinos, cafés (...) e grande abundância de estabelecimentos comerciais de todos os géneros. [Era] iluminada por luz eléctrica e acha[va]-se ligada ao Porto pelo telefone da rede geral»299.