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Parte I. Evolução da ocupação histórica do litoral português na época contemporânea:

B) Práticas e consequências da intervenção humana no litoral

1. A antropização do espaço costeiro

1.1. A transformação das povoações do litoral: dos palheiros às grandes urbanizações turísticas

1.1.1. As povoações piscatórias: os núcleos primitivos do litoral

Como dissemos no capítulo anterior, durante muitos séculos grande parte dos litorais expostos portugueses permaneceram esquecidos e inabitados - com excepção de alguns povoados piscatórios de carácter permanente e/ou sazonal -, ao contrário do que acontecia nas zonas costeiras abrigadas, ocupadas desde cedo. A fixação permanente de gente nos primeiros era contrariada pela falta de condições de habitabilidade da costa,

onde não havia água potável, terrenos agricultáveis ou estradas, que permitissem retirar o sustento do solo ou comunicar facilmente com os núcleos agrícolas do interior, donde provinham as populações que se instalavam junto ao mar na época da safra. A escassez de materiais de construção – como a pedra e o adobe –, bem como a dificuldade em transportá-los por caminhos trilhados na areia, o carácter temporário da estadia e a instabilidade própria do solo, determinaram o tipo de habitações edificadas pelos pescadores para lhes servir de albergue durante a temporada da pesca. As povoações de palheiros ou barracas274 nasceram fruto da adaptação e do engenho do homem às especificidades do meio, sendo constituídas por casas de madeira e telhados de colmo assentes em estacas enterradas na areia ou directamente no chão. As estacas podiam atingir a altura de um homem ou mais, para permitir a passagem das areias e impedir que as construções ficassem rapidamente soterradas. Erigidos geralmente no alto da duna, que acompanhava a orla da praia, na vertente protegida do vento, os palheiros podiam ser erguidos do seu nível primitivo ou deslocados para o interior, para fugir as marés e às movimentações das areias na zona mais perto do mar. Para tal, o edifício era levantado em alçapremas, colocado sobre toros de madeira e puxado por bois para o sítio escolhido, onde era montado novamente sobre esteios275. Os palheiros e barracas foram durante muito tempo a única espécie de casa da beira-mar (Fig. 34).

Figura 34. Palheiros da Cova de Lavos, a sul da foz do Mondego no século XIX (Rocha Peixoto, “Habitação. Os palheiros do litoral”, Portugália. Materiais para o estudo do povo

português, tomo I, fascículo 1, 1899, p. 15)

274 Na Beira estas construções receberam o nome de “palheiros”, na Estremadura e Algarve eram

chamadas “barracas”.

275 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, Palheiros do Litoral Central português, Lisboa, 1964,

No litoral minhoto, os conjuntos de barracas que mesclavam a praia constituíam, na maioria das vezes, simples abrigos onde os homens que iam à apanha do sargaço guardavam os utensílios, os barcos e as jangadas. Era o que acontecia em Moledo, Caíde, Moinhos do Bispo, Costa do Fão, Gramadoira e Sedovem: nestas últimas duas localidades erguiam-se arraiais com cerca de 35 e 56 barracas, onde se reuniam na época própria as pessoas da freguesia que exploravam as águas fronteiras276. Em outros lugares da costa, os aglomerados de palheiros serviam de residência temporária ou permanente para os pescadores e suas famílias, falamos, por exemplo, do Furadouro, Torreira, S. Jacinto, Quiaios, Buarcos, Pedrogão, Costa da Caparica, Quarteira, Fuzeta, Cabanas de Tavira, Culatra ou Monte Gordo. Algumas destas povoações chegaram a atingir dimensões consideráveis: em Monte Gordo, em 1774, «as diferentes ruas das cabanas ocupavam mais de uma légua de distância, desde a ponta da barra até perto do sítio aonde foi a antiga vila de Cacela. Aqui estavam já estabelecidos com as suas famílias muitos pescadores e salgadores espanhóis, além dos portugueses, que também residiam na mesma praia, (...), de forma que (...) ajuntavam-se na sobredita praia mais de 5 mil homens entre pescadores, salgadores, e vivandeiros»277.

No decurso do século XIX, estes lugares começaram a ser frequentados pelas gentes que iam a banhos. De início, em pequeno número, os banhistas instalavam-se nas casas dos pescadores, mediante o pagamento de uma renda, fazendo uma vida simples, sem provocar alterações significativas na fisionomia destas povoações. Contudo, com o desenvolvimento da moda dos banhos e o aumento da procura das praias, foi necessário dar resposta às necessidades de uma população crescente, criando condições para receber e albergar os que vinham em busca dos efeitos terapêuticos do sol e do mar. Os veraneantes trouxeram consigo a (r)evolução material e o espírito utilitário da época, além de uma série de conceitos e ideias sobre novas formas de ocupação/fruição do espaço marítimo e aproveitamento dos tempos de lazer. A construção do caminho-de- ferro e de estradas permitiu pela primeira vez tornar acessíveis alguns povoados que até então eram apenas alcançáveis por caminhos praticamente intransponíveis ou por mar. Concomitantemente, esta melhoria significativa das acessibilidades fez aumentar a

276 A. A. Baldaque da Silva, Op. cit., pp. 99-100; Rocha Peixoto, Op. cit., p. 9-10.

277 Constantino Botelho de Lacerda Lobo, “Memória sobre a decadência da pescaria de Monte Gordo”,

Memórias económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das rates e da indústria em Portugal e suas conquistas (1879-1815), dir. de José Luís Cardoso, tomo III, Lisboa, 1991, p. 253. Estas cabanas foram incendiadas pouco tempo depois a mando do Marquês de Pombal com o intuito de incentivar o povoamento da recém-fundada Vila Real de Santo António. Monte Gordo só voltou a recuperar no início do século XIX, sendo que em 1837 já existiam naquela praia 64 barracas e 4 casas. Augusto Pinho Leal, Op. cit., vol. IX, pp. 915-926.

afluência de pessoas ao litoral, determinando o crescimento dos núcleos populacionais aí localizados sob a pressão das necessidades de alojamento e distracção geradas pelos habitantes sazonais das praias.

Desde logo, uma das primeiras modificações no viver primitivo das povoações da costa foi a introdução de novos materiais de construção278, mais baratos e resistentes, que substituíram a madeira, dando origem ao aparecimento de casas de alvenaria, ordenadas em arruamentos definidos, condenando o velho caos dos palheiros a uma morte lenta por definhamento e falta de manutenção. Também assim, os proprietários daquelas estruturas pitorescas foram sucessivamente empurrados para as franjas periféricas dos novos espaços urbanos, à medida que as actividades piscatórias iam sendo secundarizadas frente à afirmação da feição balnear dos pequenos aglomerados.

Em 1960, Raquel Soeiro de Brito publicou os resultados do seu estudo sobre a evolução de Palheiros de Mira, povoação que ficava no cordão de dunas que se prolongava de Aveiro até ao Cabo Mondego. Num espaço de 50 km existiam apenas «três postos isolados da Guarda Fiscal, um local de pesca sem casas de habitação (Praia da Vagueira), duas povoações temporárias de pescadores (Palheiros de Quiaios e Praia da Tocha) e um único permanente – Palheiros de Mira. E[ra] pois um dos maiores desertos humanos do país, começado a ocupar tardiamente»279. Em meados dos anos 40, este núcleo piscatório, constituído por um conjunto cerrado de palheiros, começou a ser invadido por pequenas casas de tijolo de areia e depois por prédios de cimento. Segundo aquela geógrafa, em 1948, das 417 habitações existentes não havia mais de 30 de alvenaria e até 1956, o seu número não era suficiente para quebrar a harmonia arquitectónica do núcleo primitivo de palheiros. Um ano depois, as casas de pedra e cal representavam já um terço do volume edificado. A comparação entre o número e o tipo de construções realizadas neste período de dez anos permitiu concluir que o rápido crescimento urbanístico de Mira foi acompanhado da diminuição gradual das estruturas relacionadas com a pesca, reflexo da perda de importância desta actividade na povoação. O desaparecimento dos palheiros foi também incentivado pela Câmara Municipal que proibiu a realização das reparações necessárias à sua conservação, condenando-os inevitavelmente à ruína por falta de manutenção. Com esta medida as

278 O aparecimento da indústria conserveira em meados do século XIX também contribuiu para a

alteração da fisionomia das povoações costeiras, já que, em vários locais, as fábricas de conservas e os edifícios associados foram das primeiras casas de alvenaria a surgir.

279 Raquel Soeiro de Brito, Palheiros de Mira. Formação e declínio de um aglomerado de pescadores;

autoridades camarárias procuravam incentivar a substituição progressiva das habitações, de modo a acelerar a implementação do plano de urbanização delineado para aquela praia, com o intuito de fomentar as práticas turísticas. Em projecto, estava a construção de uma série de moradias na entrada da povoação e a edificação de blocos para habitação e comércio a sudoeste da duna grande. Mais perto da praia ficavam as novas casas, pensões, hotéis e a repartição de turismo280.

Orlando Ribeiro, no prefácio da obra de Raquel Soeiro de Brito, sintetizou em poucas palavras o processo de descaracterização desta povoação de palheiros: «com a elevação do nível de vida (ou melhor: do nível de exigências) que se seguiu à guerra como efeito retardado, os veraneantes começaram a olhar para as casas de pau com desprezo e a Câmara Municipal de Mira com interesse para população flutuante. (...). E aos primeiros ataques isolados à unidade da aldeia, (...), sucedeu a sua destruição sistemática e acelerada: a pesca sacrificada ao veraneio, os pescadores deslocados para um local desabrigado, (...), a multiplicação do cimento, o desprezo da arquitectura de madeira e até a pretensiosa mudança de nome da terra»281, que passou a chamar-se “Praia de Mira”.

O que sucedeu em Mira ocorreu em quase todas as pequenas povoações do litoral, que aos poucos foram sucumbindo às novas modas introduzidas pelos forasteiros, modificando de forma radical as suas características. Âncora, em 1860, contava apenas com algumas casas velhas, sendo que dez anos depois tinha crescido significativamente com a afluência de banhistas, para quem se construíram muitas e belas casas282. Armação de Pêra, em 1820, era apenas uma pobre aldeia, composta exclusivamente de pescadores, mas em 1873 apresentava-se já como «uma bonita povoação, com boas casas»283. A Costa da Caparica foi até 1884 um lugarejo habitado por pescadores que viviam em barracas de madeira, cobertas de junco, pouco confortáveis e de aspecto desagradável. Destruídas por um incêndio, estas barracas foram substituídas por pequenas casas de tijolo e telha, mas em 1927 ainda havia grande número de exemplares das primitivas habitações. Nos anos 30, à falta de casas para alugar, os veraneantes mandaram construir residências para as férias e surgiram dois

280 Id., Ibid., pp. 49-51 e 91-93.

281 Orlando Ribeiro, “Prefácio”, Id., Ibid., p. 12. 282 Augusto Pinho Leal, Op. Cit., IV, 15-16. 283 Id., Ibid., p. I, 238-239.

bairros novos a Sul e a Norte da antiga povoação284. Já na Costa Nova do Prado, as construções em madeira perduraram até perto dos anos 40, data a partir da qual a povoação se foi modernizando e urbanizando e «os palheiros que ainda há poucas dezenas de anos, se alinhavam à beira da ria, foram substituídos por casas de alvenaria»285. A título de exemplo refira-se ainda que Buarcos, Quiaios, Costa de Lavos e Leirosa eram povoações quase exclusivamente compostas de palheiros até 1916. A praia do Furadouro estava ainda cheia deles em 1922 e na Torreira subsistiram alguns para além de 1942286.

1.1.2. A descoberta das praias e a construção dos primeiros equipamentos