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2 O LUGAR DA FRONTEIRA AMAZÔNICA BRASILEIRA NA AGENDA

2.2 AGENDA LIBERALIZANTE E REFORMA DO ESTADO BRASILEIRO: A

É importante salientar que, em meados dos anos 70 e início dos 80, a ditadura civil- militar definhava e emergia uma sociedade civil mais pulsante cultural e politicamente no país. Constituia-se, assim, o campo democrático popular, um campo contra-hegemônico, heterogêneo e tenso internamente, mas que era a expressão, nos termos gramscianos, de uma sociedade civil mais complexa, contraditória e conflitiva, haja vista a emergência de novos atores sociais na cena e arena pública, novos aparelhos privados de hegemonia, que passavam a influenciar, decisivamente, no processo de redemocratização94 do país, na disputa pela direção hegemônica dos rumos da sociedade, do Estado e da economia (COUTINHO, 2008; DAGNINO, 2004a; 2004b; OLIVEIRA, 2007).

Instala-se um processo contraditório e conflitivo mais intenso e aberto no país: de um lado, a ressaca moral e política da desilusão desenvolvimentista autoritária, que mergulhou o país, de fato, numa drástica crise econômica e social, aprofundando as desigualdades socais e regionais; e, de outro, esse processo de redemocratização, reconfigurando a dinâmica dos conflitos e relações de poder, reflorescendo a utopia em busca de novos horizontes de sociabilidade.

A Assembléia Constituinte, em 1987, torna-se um desses grandes campos de disputa entre as forças sociais e políticas em confronto. Com a redemocratização da sociedade brasileira,em particular normatizada e formalizada na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – cunhada como Constituição Cidadã –, o país constituiu-se como a expressão dialética de continuidades e descontinuidades, transitando para um novo momento histórico de conquista, garantia e ampliação de direitos em suas diversas dimensões e esferas, instaurando um conjunto de novas instituições para firmar e assegurar um campo de relações democráticas (VIANNA, 2006a; VIANNA et al., 2014).

Nesse processo, as forças sociopolíticas democratizantes populares assumem papel fundamental. Contudo, as forças sociopolíticas e econômicas neoconservadoras se

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Compreendemos que a democracia brasileira é inconclusa, hegemonizada por um modelo liberal- representativo, que, em grande medida, a reduz a procedimentos formais, à dimensão política institucional e à garantia da propriedade individual, vinculada fortemente ao livre mercado, reforçando e reproduzindo uma sociedade de privilégio, desigual e injusta: social, econômica, política, cultural, territorial e ambientalmente, caracterizando-se, assim, como uma “democracia de baixa intensidade”, nos termos de Santos (2003a; 2007a; 2012e). Contudo, por ser histórica e inconclusa, essa democracia não está dada, mas sim em processo e dinamizada pelas relações de poder entre classes e grupos sociais que disputam os rumos e projetos de sociedade e do conteúdo do Estado. Nesse sentido, é melhor o termo democratização, posto a ideia de um fenômeno histórico-social que está em processo de construção pelas diversas forças sociais em jogo e circunstanciado historicamente.

rearticulam, para manter e garantir seus privilégios nesse ordenamento jurídico-político, impedindo avanços substanciais e estruturantes, que propiciem impactos e mudanças na estrutura desigual e injusta das relações de propriedade e de poder da sociedade brasileira (COUTINHO, 2008; DAGNINO, 2004b; OLIVEIRA, 2007; VIANNA, 2006a).

Para Vianna (2006a), trata-se de uma transição inconclusa, visto as continuidades, em enorme medida, enraizadas nos interesses dessas forças conservadoras, impedindo o avanço maior da Carta Magna, referendada nos interesses das forças populares democratizantes. Isso evidencia que o ordenamento jurídico-político brasileiro é um campo atravessado por correlações de poder no âmbito da esfera do Estado (sociedade política), que está dialeticamente vinculado aos interesses de classes e frações de classes em disputa na sociedade civil, por meio dos “aparelhos privados de hegemonia”, como defende Gramsci (2011, CC, v.3). O Brasil que emerge, portanto, desse processo de redemocratização ressurge reinventado (OLIVEIRA, 2007) 95, mas, também, herdando traços históricos de autoritarismo social, reproduzidos e alargados pela ditadura (CHAUÍ, 2001; DAGNINO, 2004a).

É relevante salientar, no entanto, que, além desse palco de conflitos mais amplo e visível (Assembléia Constituinte), outros palcos da vida cotidiana menores e menos visíveis ou invisíveis, paralelamente, inscrevem novas dinâmicas e exigem um olhar arguto para o brasil profundo, subterrâneo, a fronteira amazônica, a fim de que se possam identificar novos agentes sociais em cena, outras histórias não contadas e não reveladas, sendo escritas a várias mãos no chão da história, como o exemplo da luta e resistência dos povos da floresta no Acre, os seringueiros liderados por Chico Mendes96. E, também, como veremos no V capítulo dessa pesquisa, a luta e resistência de movimentos e organizações sociais na Transamazônica e dos povos indígenas do Xingu contra a hidrelétrica de Kararaô.

Não obstante a redemocratização tenha sido, em certa medida, frustrada por essa recomposição neoconservadora, levando a uma “democracia de baixa intensidade” (SANTOS, 2003a; 2007a), reforçando a cultura política da transição conciliada por cima, é importante, contudo, ressaltar que a Nova Carta Constitucional representou a ampliação e garantia, em certa medida, de demandas e conquistas pautadas pelas forças democratizantes,

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Francisco de Oliveira identifica que o PT, a CUT e o MST constituíram-se em exemplos, nesse contexto da realidade brasileira, que marcam essa chamada “era da invenção” (OLIVEIRA, 2007).

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Chico Mendes foi assassinado em 22 de dezembro de 1988 a mando de Fazendeiros no Acre. Além desse movimento nascente, é importante destacar o surgimento, na década de 80, do movimento dos garimpeiros de Serra Pelada no sul do Pará, que, longe de ser homogêneo internamente, era bastante tenso e conflitivo, haja vista a liderança e influência que o Major Curió, agente estratégico do regime militar duntante a ditadura e das forças conservadoras na região, exercia sobre segmentos do movimento garimpeiro. Contudo, é importante salientar, também, o desenvolvimento da correlação de forças sociais emergentes com as grandes empresas (Vele do Rio Doce) e o Estado por conta do controle e da exploração do garimpo de Serra Pelada.

trazendo à baila novos atores/atrizes sociais e temas para o terreno da garantia de direito a ter direitos e de uma cidadania como cultura democrática (DAGNINO, 2004a)97, como os povos e comunidades tradicionais, reposicionando o lugar desses povos e grupos sociais invisibilizados na esfera pública para garantirem e ampliarem seus direitos de território e de uso comum e serem reconhecidos (ALMEIDA, 2010a; 2010b; 2011; BENATTI, 2011).

Nesse processo, outros espaços públicos vão sendo gestados, multifacetando e alargando o campo e o horizonte da política, para além de sua lógica, esferas e espaços tradicionais (DAGNINO, 2000; 2004a; 2004b), imprimindo visibilidade para muitos historicamente “invisibilizados” ou recuperando memórias e “mortos”, consoante defende Benjamin (1986), para (re)escrever histórias não contadas, reescrevendo o conceito de História da Sociedade sob novos ângulos e perspectivas.

Em seu Artº 231, a Nova Constituição garante: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (CF, 2011, p. 98). No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias dessa Constituição, em seu Artº 68, dispõe-se: “Aos remanescentes de comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (CF, 2011, p. 112)98.

Ao fazer menção à categoria de populações tradicionais na Constituição, Almeida (2010c) salienta seu reconhecimento e emergência como “agentes sociais”:

A própria categoria “populações tradicionais” tem conhecido aqui deslocamentos no seu significado desde 1988, sendo afastada mais e mais do seu quadro natural e do domínio dos “sujeitos biologizados” e acionada para designar agentes sociais, que assim se autodefinem, isto é, que manifestam consciência de sua própria condição. Ela designa, neste sentido, sujeitos sociais com existência coletiva, incorporado pelo critério político- organizativo uma diversidade de situações correspondentes aos denominados seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, ribeirinhos, castanheiros e pescadores que têm se estruturado igualmente em movimentos sociais (ALMEIDA, 2010c, p. 147).

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Dagnino (2004a, p. 106-107), nesse contexto, ver emergir uma “nova noção de cidadania”, que está assentada em “três elementos inter-relacionados: sua vinculação à experiência dos movimentos sociais; à construção democrática e seu aprofundamento, e o nexo constitutivo entre cultura e política”. Ela destaca, ainda, a “ideia de cidadania como estratégia política”, segundo a qual “significa enfatizar o seu caráter de construção histórica, definida, portanto, por interesses concretos e práticas concretas de luta e pela sua continua transformação”, o que sugere dizer que seu “conteúdo e significado, portanto, serão sempre definidos pela luta política”.

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Sobre essa questão, ver “Constituição vinte anos” de Ferreira, Alves e Carvalho (2009). Nesse texto, os autores apontam os limites e possibilidades da CF depois de 20 anos. A “Reforma Agrária” no Brasil continua assumindo uma grande divida histórica, não obstante a CF tenha avançado na regulamentação do reconhecimento de direitos de outros atores sociais, como os povos e comunidades tradicionais.

Ao se referir a essas conquistas institucionais pelos movimentos sociais e a possibilidade de construção de novas territorialidades, o referido autor adverte:

As dificuldades de efetivação destes dispositivos legais indicam, entretanto, que há tensões relativas ao seu reconhecimento jurídico-formal, sobretudo porque rompem com a invisibilidade social, que historicamente caracterizou estas formas de apropriação dos recursos baseadas principalmente no uso comum e em fatores culturais intrínsecos, e impelem a transformações na estrutura agrária. Em decorrência, tem-se efeitos diretos sobre a reestruturação do mercado formal de terras, bem como pressões para que sejam revistas categorias que compõem os cadastros rurais dos órgãos fundiários oficiais e os recenseamentos agropecuários (ALMEIDA, 2010c, p. 138).

Isso ajudou a abrir um novo debate no tocante aos processos de ocupação, uso e sentido do território e dos recursos naturais para a produção e reprodução social, cultural, econômica, de forma sustentável, desses povos e comunidades tradicionais no país, em particular na região amazônica. Isso propiciou a produção de novas dinâmicas socioterritoriais e ambientais, assinalando a possibilidade de efetivação de novas formas e políticas de ocupação e desenvolvimento frente à dinâmica hegemônica de expansão de acumulação do capital (nacional e transnacional) para essas terras e territórios de “ocupações tradicionais”99, que vem se fazendo com forte anuência do Estado brasileiro, o que tem implicado a expropriação e violação de direitos, a concentração fundiária, a desestruturação de modos de vida e impactos socioambientais, desembocando na reconfiguração e redefinição da cartografia dos conflitos socioespaciais e ambientais na região e no país (ALMEIDA, 2010a; 2010b; 2011; BENATTI, 2011; BERMANN; HERNÁNDEZ, 2010)100.

Além desses dois artigos, essa Carta Constitucional, ao se referir ao “meio ambiente” em seu Artº 225, normatiza: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. (CONSTITUIÇÃO..., 2011, p. 95). No âmbito dos princípios gerais da atividade econômica, em seu Artº 170, IV “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de

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Um dos exemplos dessas conquistas e políticas foram as chamadas Reservas Extrativistas (RESEX), que têm como marco inaugural a reserva dos povos da floresta (seringueiros) no Acre, através de suas lutas e organizações sociais e políticas, que teve como uma de suas lideranças Chico Mendes.

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Em 07/02/2007, por meio do Decreto Presidencial nº 6040, foi instituída a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Esse Decreto considera: “Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitido pela tradição”.

elaboração e prestação” (Idem, p. 79). Isso expressa o caráter transversal que a questão ambiental passa a ganhar nessa Carta (SANTILLI, 2005).

Ao fazer referência a essas garantias constitucionais, Santilli (2005) destaca a importância do princípio da equidade inter (futuras gerações) e intra-generacional (todas as pessoas das presentes gerações de acessar os recursos naturais equitativamente) e o princípio da transparência, participação pública e acesso à informação ambiental. Ela destaca que o acesso aos bens ambientais (naturais e culturais) deve ser equitativo e baseado nos princípios da inclusão e da justiça social. Além desses princípios, ela adverte, ainda, que a função social só é cumprida quando a propriedade atende, simultaneamente, os requisitos de aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Ao se referir à Constituição e à nova concepção de patrimônio cultural, Santilli (2005) identifica grande avanço no conceito jurídico de “patrimônio cultural” e multiculturalismo, incluindo tanto os bens culturais materiais como os bens imateriais. Concebidos individualmente ou em conjunto, constituem-se como portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Nesse âmbito, às minorias étnicas são asseguradas uma orientação multicultural e pluriétnica: direitos territoriais especiais (coletivos) de povos indígenas e quilombolas. Ela vê nessa Constituição uma nova síntese socioambiental.

No contexto liberalizante da “Nova República” e de imposição de um capitalismo associado-industrializante, intimamente articulado, dependente e subordinado ao mercado e ao capital financeiro global, esses marcos regulatórios e conquistas populares passam a sofrer forte pressão e uma desfiguração jurídico-política, por meio da (Contra)Reforma do Estado no Brasil, para atender ao seu novo processo de modernização gerencialista e sua inserção no mercado globalizado via agenda da livre-iniciativa: estabilidade econômica, austeridade fiscal e controle da inflação, abertura econômica, privatizações e flexibilização das leis trabalhistas, em busca da retomada do crescimento econômico e do desenvolvimento. Aí reside um retrocesso no processo de constituição da “Nova República”, da democratização e da participação da sociedade civil na esfera pública (CHAUÍ, 2001; COUTINHO, 2008; DAGNINO, 2004b; OLIVEIRA, 1999a; 2003b; 2007; VIANNA, 2006c)101.

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Oliveira (2007) aponta para um deslocamento de uma “era da invenção”, para uma “era da indeterminação”, em que ele chama atenção para a compreensão da “financeirização do capital” e da mudança no “terreno do conflito”. Vianna (2006c) assinala a tensão e conflito entre democratização social e “‘República’ neoliberal”.

Associado a esse cenário nacional em metamorfose, o panorama geopolítico mundial reflete, também, profundas mudanças com a crise do bloco socialista e com a hegemonia do bloco capitalista, com a redefinição de seu processo de organização, produção e acumulação de forma flexível e financeira e multiescalar, relativizando o tempo e espaço e provocando mudanças no mundo do trabalho (HARVEY, 2010). A Era da Mundialização ou da Globalização não pode ser desconsiderada, posto o lugar da Amazônia nessa geopolítica da dinâmica de acumulação capitalista e da crise climática que passa a ganhar mais força na academia, nas instituições públicas e privadas e na opinião pública, influenciando, como já vimos, na emergência do debate do “desenvolvimento sustentável”.

Isso reinsere a fronteira amazônica na “nova onda” e rede de ocupação, exploração e expropriação de seus territórios e recursos naturais, para atender a dinâmica de acumulação do capital global. A matriz discursiva oficial passou a jogar com novas terminologias e conceitos, mas a política de ocupação e desenvolvimento reproduziu o lugar da região como periferia da semiperiferia do capitalismo global, direcionado pelos grandes atores transnacionais.

Esse rastreamento passou pelo Programa Avança Brasil, criado, em 1996, geopolítica e estrategicamente para restabelecer, com base numa racionalidade capitalista, processos de modernização na Amazônia, por intermédio do planejamento e ordenamento territorial, a fim de atender interesses econômico-empresariais, fundamentalmente exógenos, extra-regional. Para tanto, dentro desse programa, foi elaborado o Plano Plurianual (PPA), que representaria o slogan Brasil em Ação. O PPA foi elaborado pelo Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão, com apoio do BNDES, que estabelecia as grandes matrizes e diretrizes políticas para o “novo” ordenamento e desenvolvimento territorial do país e da Amazônia na temporalidade de 1996-1999, 2000-2003.

Castro (2001), ao fazer menção ao Plano Plurianual (PPA), que expressa a engenharia de implementação do Programa Avança Brasil, identifica e evidencia sua matriz racionalista de mercado, introduzida e legitimada via reforma do Estado e seu fundamento pautado no interesse do grande capital, que passa a jogar com o discurso apelativo da relação entre inclusão social e meio ambiente.

O Plano Plurianual 1996-1999, Brasil em Ação, foi apresentado ao público no final de agosto de 1996 pelo Presidente da República. É um documento que exprime no fundo a perspectiva da reforma do Estado, enquadrando suas ações por meio de técnicas de gerenciamento, visando a melhoria da qualidade e da gestão dos projetos. No dizer do próprio Ministro de Estado do Planejamento e orçamento, Antônio Kandir, o PPA corresponde a um software de gerenciamento e acompanhamento de empreendimentos. A

linguagem, portanto, é emprestada da cultura empresarial, da lógica do mercado, cujas relações entre empresa e cliente configuram-se como prestação de serviços. O documento traz um novo conceito de organização das ações públicas e de gerenciamento de projetos, aproximando-se da dinâmica administrativa regulada pelo mercado. O porta-voz do governo informa que ele está montado sobre três pilares: a área social, a infra- estrutura e o meio ambiente. Identifica-se aqui um apelo ideológico, associando problema social com meio ambiente. Imagem certamente, com efeito, midiática, para fazer face ao desgaste do governo e à descrença na capacidade das políticas públicas de encontrar saídas para o emprego e para a exclusão social, restabelecendo o poder de compras de segmentos crescentes que se encontram fora do mercado de trabalho e do acesso aos serviços (CASTRO, 2001, p. 20).

Assentado num forte discurso ideológico da emergência de um novo paradigma e, por conseguinte, crítico e refutante do modelo desenvolvimentista – em especial do entulho varguista e do regime militar para a Brasil/Amazônia –, o governo Fernando Henrique passou a priorizar as grandes obras de infraestrutura, as macropolíticas, os macroprojetos políticos para a região com base nos preceitos da eficiência, produtividade e competitividade, imprimindo uma ação do Estado na região determinada e subordinada pelo movimento de racionalização do livre mercado. Castro (2001), ao analisar o conjunto dessas grandes matrizes e diretrizes políticas do modelo de gestão do governo Fernando Henrique Cardoso para a região amazônica, explica que:

Inicialmente, funda-se [esse novo paradigma] na concepção de alargamento de fronteiras nacionais, de aumento da capacidade competitiva, com vistas a funcionar com uma equação favorável à maximização do valor dos produtos nacionais. As novas fronteiras priorizadas são, evidentemente, os 11 países da América do Sul com os quais o Brasil faz fronteira geográfica, excetuando-se somente Equador e Chile. Os conceitos de eficiência, produtividade e competitividade estão no centro, mas movidos pela dinâmica de mercados em integração, a exemplo do Mercosul. Os Investimentos em programas de infra-estrutura de grande porte representam o maior esforço e, ao mesmo tempo, são de onde se esperam os maiores resultados para dinamizar o mercado. Um elemento desse tripé é a sustentabilidade ambiental, que no plano discursivo, se ajusta à agenda comum dos países na atualidade, portanto, também sem grandes novidades, nem conceituais nem paradigmáticas (CASTRO, 2001, p. 16).

Exemplo dessa macropolítica e da geopolítica econômica de promoção, intensificação e ampliação da territorialização do capital na Amazônia foram os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento (ENIDs), que fizeram parte da agenda política do Plano Plurianual de 1996-1999 e 2000-2003, que reproduziram uma lógica e política de desenvolvimento seletiva, hierárquica, excludente e degradante sob uma forte imposição do Estado para promover os interesses e a expansão do grande capital nacional e multi/transnacional na região. Estabeleceram-se, com isso, os eixos de desenvolvimento, de

acordo com a demanda e interesse da lógica do mercado, que no regime militar ganhou a forma de pólos de desenvolvimento.

Os Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento, proposta presente no Plano Plurianual, de 1996-1999, constituem os focos de intervenção macro do Estado. Seguem um perfil de intervenção consagrado em décadas anteriores, seja por meio da noção de pólos de desenvolvimento, de regionalização ou de grandes projetos geopoliticamente referenciados. De certa forma, esses grandes projetos desenvolvimentistas, como bem sabemos, têm um papel desestruturador de relações sociais e econômica e geram impactos importantes sobre os eco-sócio-sistemas. Os Eixos previstos para o Plano 2000-2003 consideraram quatro variáveis e seus indicadores, e até aí não há realmente muita diferença em relação ao planejamento estratégico dos anos 60 e 70, como se pode observar: a rede multimodal de transporte, a hierarquia funcional das cidades, a identificação dos centros dinâmicos e os ecossistemas (CASTRO, 2001, p. 21).

Trindade Júnior (2005) concebe essa perspectiva de Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento, presentes no PPA, dentro de uma matriz tecnocrático-racionalista de gestão e de ordenamento territorial da região.

(...) uma primeira matriz de gestão está relacionada ao modelo tecnocrático- racionalista de gestão, que, de certa maneira, foi herdado do governo autoritário, consolidando práticas socioespaciais bem conhecidas: exclusão, reforço à segregação e funcionalidade basicamente capitalista do espaço (TRINDADE JÚNIOR, 2005, p. 161).

Ao fazer referência a esses Eixos, no plano da região amazônica, Trindade Júnior