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1 QUESTÕES HISTÓRICAS E ATUAIS DO DEBATE SOBRE O TEMA DO

1.2 PROCESSOS DE GLOBALIZAÇÃO E REDEFINIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS

Antes de adentrar no “retorno” do tema do desenvolvimentismo, cabe demarcar e fazer um alinhavo, de forma sucinta e mais geral, sobre esse fenômeno da globalização, a fim de inscrever a recomposição e o reposicionamento desse tema do desenvolvimento, em particular na América Latina/Brasil.

Na presente quadra histórica, a sociedade contemporânea vem experimentando, de forma diferente, complexas transformações de ordem multidimensional (social, econômica, política, cultural, espacial e ambiental) e escalar (local, nacional, regional e global) sem precedentes na história da humanidade, exigindo das ciências sociais e humanas novas formulações teórico-conceituais para realizar sua interpretação e ajustar as lentes na intervenção da sociedade em face da crise socioambiental global.

A despeito dessa metamorfose social, Santos (2002) sustenta a tese de que vivemos num período transicional em que o sistema mundial está em transição, trazendo à baila novas dinâmicas e configurações de relações em nível global e local, exigindo novos parâmetros de análise36. Nessa sociedade, marcada hegemonicamente pela dinâmica de globalização do sistema capitalista e colonialista de saber e de poder, para esse autor, esse fenômeno da globalização deve ser entendido como “uma constelação de diferentes processos de globalização e, em última instância, de diferentes e, por vezes, contraditórias globalizações”.

Para ele, o modo de produção geral de globalização desdobra-se em quatro modos de produção, que originam quatro formas de globalização, assumindo as duas primeiras a expressão da globalização hegemônica.

1ª) localismo globalizado: consiste no processo pelo qual determinado fenômeno local é globalizado com sucesso, seja a atividade mundial das multinacionais, a transformação da língua inglesa em língua franca, a globalização do fast food americano ou a adoção mundial das mesmas leis de propriedade intelectual, de patentes ou de telecomunicações promovida agressivamente pelos EUA; 2ª) globalismo localizado: consiste no impacto específico nas condições locais produzido pelas práticas e imperativos transnacionais que decorrem dos localismos globalizados. Para responder a esses imperativos transnacionais, as condições locais são desintegradas, desestruturadas e, eventualmente, reestruturadas sob a forma de inclusão subalterna (SANTOS, 2002, p. 65-66, grifos nossos).

Essa globalização hegemônica teve como expressividade marcante o Consenso de Washington, posto como sua matriz norteadora, por meio do qual, em meados da década de oitenta, os Estados centrais do sistema mundial, entendemos, principalmente, aqui: Estados Unidos e Inglaterra subscreveram e definiram um conjunto de normas e regras que passariam a constituir uma agenda determinante da economia mundial, das políticas de desenvolvimento e crescimento econômico e, particularmente, da função do Estado na economia, tendo papel determinante na formulação e implementação dessas políticas macroeconômicas o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BID), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) e, mais recentemente a Organização Mundial do Comércio (OMC). Por isso, a análise e compreensão desse cenário passa fundamentalmente pelos parâmetros e pressupostos do discurso e da materialidade da lógica e do modelo conhecido como neoliberal37.

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Santos (2002) identifica esse período transicional sob três dimensões: 1) transição no sistema de hierarquias e desigualdades do sistema mundial; 2) transição no formato institucional e na complementaridade entre instituições; 3) transição na escala e na configuração dos conflitos sociais e políticos.

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Em relação a uma abordagem histórica sobre esse assunto do neoliberalismo, consultar Perry Anderson (1995). Esse é um tema em que não vamos nos deter aqui, visto que já é um assunto explorado por meio de uma vasta bibliografia. No desenvolvimento do texto, apresentam-se outras referências acerca do assunto. O

Com base nesse documento, os Estados Centrais e, principalmente as agências financeiras multilaterais e as megaempresas multinacionais (da região Norte) passaram a ditar como parâmetros a serem seguidos rigorosamente pelos Estados da periferia e semiperiferia do capitalismo as seguintes orientações ou exigências:

As economias nacionais devem abrir-se ao mercado mundial e os preços domésticos devem tendencialmente adequar-se aos preços internacionais; deve ser dada prioridade à economia de exportação; as políticas monetárias e fiscais devem ser orientadas para a redução da inflação e da divida pública e para a vigilância sobre a balança de pagamentos; os direitos de propriedade privada devem ser claros e invioláveis; o setor empresarial do Estado deve ser privatizado; a tomada de decisão privada, apoiada por preços estáveis, deve ditar os padrões nacionais de especialização; a mobilidade dos recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulação estatal da economia deve ser mínima; deve reduzir-se o peso das políticas sociais no orçamento do Estado, reduzindo o montante das transferências sociais, eliminando a sua universalidade, e transformando-as em meras medidas compensatórias em relação aos estratos sociais inequivocamente vulnerabilizados pela atuação do mercado (SANTOS, 2002, p. 29).

Com base nessas diretrizes do receituário hegemônico, repõe-se a matriz de desenvolvimento, fundada nos preceitos e nos interesses do livre mercado. Este passa a regular, normatizar e controlar, por meio das agências financeiras multilaterais e das empresas multinacionais, as decisões dos Estados nacionais dominados pelo centro do sistema, tendo em vista a definição de suas políticas macroeconômicas, reduzindo, por conseguinte, drasticamente o papel do Estado na economia e na sua responsabilidade na implementação de políticas sociais, provocando tanto um aprofundamento das desigualdades sociais, econômicas e políticas, quanto uma maior subordinação deles a esses atores hegemônicos do centro do poder político, econômico, cultural, tecnológico e militar, fragilizando e fraturando, assim, as instituições e as relações democráticas38.

Santos (2007b, p. 80) identifica esse cenário hegemônico como a expressão da emergência do fascismo social diante da crise do contrato social da modernidade. Ele “é a nova forma do estado de natureza, e prolifera à sombra do contrato social sob duas formas: pós-contratualismo e o pré-contratualismo”39. Esse fascismo é um “regime social de relações

objetivo aqui é delinear e caracterizar, de forma sintética, o que Boaventura Santos denomina por globalização hegemônica e contra-hegemônica.

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Essa agenda neoliberal é uma clara reação teórica e político-ideológica tanto ao modelo keyneseano de bem- estar social, que alçou voos nos Estados-Nação desenvolvidos europeus com a chamada “idade de ouro” do capitalismo, quanto ao ideário socialista em marcha à época (ANDERSON, 1995).

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Para Santos, “O pós-contratualismo é o processo pelo qual grupos e interesses sociais são excluídos do contrato social sem nenhuma perspectiva de regresso: trabalhadores e membros das classes populares em geral são expulsos do contrato social em virtude da eliminação dos seus direitos econômicos e sociais, tornando-se assim populações descartáveis. O pré-contratualismo consiste no bloqueamento do acesso à

de poder extremamente desiguais, que concedem à parte mais forte poder de veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca”.

Como regime social, o fascismo social pode coexistir com a democracia política liberal. Ele a banaliza a ponto de não ser necessário, nem sequer conveniente, sacrificar a democracia para promover o capitalismo. Trata-se pois de um fascismo pluralista, e por isso de uma forma de fascismo inédita. De fato, creio que talvez estejamos entrando num período em que as sociedades são politicamente democráticas e socialmente fascistas (SANTOS, 2007b, p. 81).

Ao identificar uma pressão da lógica da apropriação/violência sobre a lógica da regulação/emancipação, ele aponta três formas de fascismo social, que refletem mais claramente esse contexto. A primeira delas é o fascismo do apartheid social, que retrata a segregação social dos excluídos por meio de uma cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas.

As zonas selvagens são as zonas do estado de natureza hobbesiano, as zonas de guerra civil interna existentes em muitas megacidades em todo o Sul global. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social, e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defenderem, transformam-se em castelos neofeudais, os enclaves fortificados que caracterizam as novas formas de segregação urbana (cidades privadas ou condomínios fechados) (SANTOS, 2007b, p. 80).

A segunda forma é o fascismo contratual, que se expressa nas relações de poder desiguais, marcada pela precarização das condições de trabalho, privatização dos serviços públicos e pelas violações e perda de direitos, como saúde, educação, moradia etc. Nesses casos, “o contrato social que orientava a produção de serviços públicos no Estado-Providência e no Estado desenvolvimentista é reduzido ao contrato individual do consumo de serviços privatizados” (SANTOS, 2007b, p. 80).

Ocorre nas situações em que a diferença de poder entre as partes do contrato de direito civil (seja ele um contrato de trabalho ou um contrato de fornecimento de bens ou serviços) é de tal ordem que a parte mais fraca, vulnerabilizada por não ter alternativa ao contrato, aceita as condições que lhe são impostas pela parte mais poderosa, por mais onerosas e despóticas que sejam (SANTOS, 2007b, p. 80).

A terceira forma de fascismo social é o fascismo territorial. Esse se caracteriza pela tomada de controle do território do Estado por parte de atores sociais com “forte capital patrimonial”, que cooptam ou violentam as instituições estatais e exercem a regulação social sobre populações do território, alijando sua participação e indo contra seus interesses, transformando patrimônio comum e público em “territórios coloniais privados”.

cidadania a grupos sociais que tinham a expectativa fundamentada de nela ingressar: por exemplo, a juventude urbana dos guetos das megacidades do Norte e do Sul globais” (SANTOS, 2007b, p. 81).

(...) trata-se de novos territórios coloniais privados dentro de Estados que quase sempre estiveram sujeitos ao colonialismo europeu. Sob diferentes formas, a usurpação original de terras como prerrogativa do conquistador e a subseqüente “privatização” das colônias encontram-se presentes na reprodução do fascismo territorial e, mais geralmente, nas relações entre terratenentes e camponeses sem terra (SANTOS, 2007b, p. 81).

E arremata, assinando, a coexistência entre fascismo social e democracia liberal; estado de exceção e normalidade constitucional; sociedade civil e estado de natureza; e governo indireto e primado do direito. Esse quadro constituí o “projeto original da epistemologia e da legalidade modernas”, no qual o colonial passa a constituir dimensão interna do metropolitano (SANTOS, 2007b, p. 83)40.

Para Santos (2003a; 2012e), uma democracia para ser verdadeira deveria ser pós- capitalista. O capitalismo, afirma ele, “não consegue democratizar a relação central da sociedade que é a relação capital – trabalho. O capitalismo não quer tributação e redistribuição social. Existe uma relação de incompatibilidade entre capitalismo e democracia. Portanto, para a construção de democracia radical – de alta-intensidade - é necessário garantir e efetivar as condições da democracia, e não colocar a democracia liberal como garantia para todo resto, que é a ideia reinante da democracia de baixa- intensidade imposta pelo do Banco Mundial.

Para ele, democracia, diferentemente do Modelo de Democracia Liberal, “é toda transformação de relações de poder desigual em relações de autoridade partilhada”, que devem superar a relação estrita de obrigação e regulação vertical entre Estado e Cidadão, ampliando-se e aprofundando-se para sociedade civil, num marco horizontal. Daí ele defender uma democracia de alta-intensidade (SANTOS, 2003a; 2012e).

Ao colocar nesses termos, Santos sugere atinar para um sistema hegemônico de dominação muito mais amplo e complexo, contraditório e tenso, em que somente a crítica ao sistema capitalista global tende a perder de vista o processo de dominação colonial do poder e do saber entre Norte e Sul (e no interior de cada uma dessas Regiões), o qual anda de par com a reprodução capitalista, acabando, por conseguinte, de contribuir, historicamente, para a permanência da invisibilidade de um conjunto diverso de experiências e perspectivas

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Em sua obra a Gramática do Tempo: para uma nova cultura política (2006), Santos apresenta, elem dessas três formas de fascismo que compõem o fascismo societal, outras: uma quarta é o fascismo financeiro, que é a “forma mais virulenta de sociabilidade fascista. É o fascismo que comanda os mercados financeiros de valores e de moedas, a especulação financeira global, um conjunto hoje designado por economia de cassino”. Uma quinta é o fascismo da insegurança, que se refere à “manipulação discricionária da insegurança das pessoas e grupos sociais pela precariedade do trabalho, ou por acidentes ou acontecimentos desestabilizadores, produzindo-lhes elevados níveis de ansiedade e de insegurança quanto ao presente e ao futuro de modo a fazer baixar o horizonte de expectativas e a criar a disponibilidade para suportar grandes encargos para obter reduções mínimas dos riscos e da insegurança” (SANTOS, 2006, p. 335-336).

subalternas, que vêm sofrendo diversas formas de violação de direitos humanos e que podem ajudar a ascender luzes epistemológicas e ações sociais e políticas de contra-hegemonia.

Uma concepção pós-abissal do marxismo (em si mesmo um bom exemplo de pensamento abissal) pretende que a emancipação dos trabalhadores seja conquistada em conjunto com a emancipação de todas as populações descartáveis do Sul global, que são oprimidas mas não diretamente exploradas pelo capitalismo global. Da mesma forma, reivindica que os direitos dos cidadãos não estarão assegurados enquanto os não-cidadãos sofrerem um tratamento sub-humano (SANTOS, 2007b, p. 85).

Daí ele chamar atenção para se olhar para a Região Sul (o outro lado da linha abissal) e construir novos esquemas de interpretação (as Epistemologias do Sul) e visibilizar as experiências invisíveis, a fim de encontrar tanto novos caminhos de compreensão do mundo quanto novas experiências de transformação social do mundo.

À luz do que foi dito anteriormente, ficamos com a ideia de que o pensamento abissal continuará a auto-reproduzir-se — por mais excludentes que sejam as práticas que origina — a menos que se defronte com uma resistência ativa. Assim, a resistência política deve ter como postulado a resistência epistemológica. Como foi dito de início, não existe justiça social global sem justiça cognitiva global. Isso significa que a tarefa crítica que se avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas: ela requer um pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento, um pensamento pós-abissal (SANTOS, 2007b, p. 85).

Ao conceber esse fenômeno da globalização como um fenômeno histórico-social carregado de contradições e conflitos, ele vai identificar, além dessa vertente hegemônica neoliberal, também, experiências e perspectivas contra-hegemônicas de globalização, por meio das lutas dos grupos subalternos, principalmente da região Sul. É nesse horizonte que ele aponta a globalização de resistência, identificada pelo cosmopolitismo subalterno e pelo patrimônio comum da humanidade, que constituem as outras duas formas de globalização, num campo contra-hegemônico (SANTOS, 2002).

A primeira diz respeito à “organização transnacional de resistência de Estados-Nação, regiões, classes ou grupos sociais vitimizados pelas trocas desiguais de que se alimentam os localismos globalizados e globalismos localizados”. Nesse caso, a resistência consiste em “transformar trocas desiguais em trocas de autoridade partilhada, e traduz-se em lutas contra a exclusão, a inclusão subalterna, a dependência, a desintegração, a despromoção” (SANTOS, 2002, p. 67). No tocante a esse cosmopolitismo subalterno, ele explica e adverte:

De certo modo, o cosmopolitismo tem sido privilégio daqueles que podem usufruí-lo. A forma como retomo esse conceito prevê a identificação dos grupos cujas aspirações são negadas ou tornadas invisíveis pelo uso hegemônico do conceito, mas que podem ser beneficiados pelo uso alternativo do conceito (...) pergunto: quem precisa do cosmopolitismo? A resposta é simples: todo aquele que for vítima de intolerância e

discriminação necessita de tolerância; todo aquele a quem seja negada a dignidade humana básica necessita de uma comunidade de seres humanos; todo aquele que seja não-cidadão necessita da cidadania numa dada comunidade ou nação. Em suma, os socialmente excluídos, vítimas da concepção hegemônica de cosmopolitismo, necessitam de um tipo diverso de cosmopolitismo. Assim, o cosmopolitismo subalterno constitui uma variante oposta. Da mesma forma que a globalização neoliberal não reconhece quaisquer formas alternativas de globalização, também o cosmopolitismo sem adjetivos nega a sua própria especificidade. O cosmopolitismo subalterno de oposição é uma forma cultural e política de globalização contra-hegemônica. É o nome dos projetos emancipatórios cujas reivindicações e critérios de inclusão social vão além dos horizontes do capitalismo global (SANTOS, 2007b, p. 84-85, grifos nossos).

Ainda que seu caráter seja visivelmente “embrionário”, Santos defende que o cosmopolitismo subalterno embute “uma promessa real”. Ele diz que para apreendê-lo é necessário realizar aquilo que denomina de sociologia das emergências, que pressupõe uma “amplificação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de sentido referentes tanto à compreensão como à transformação do mundo”. Nesse sentido,

o cosmopolitismo subalterno se manifesta mediante os diversos movimentos e organizações que configuram a globalização contra-hegemônica, lutando contra a exclusão social, econômica, política e cultural gerada pela mais recente encarnação do capitalismo global, conhecida como “globalização neoliberal”. Tendo em mente que a exclusão social sempre é produto de relações de poder desiguais, essas iniciativas são animadas por um ethos redistributivo no sentido mais amplo da expressão – compreendendo a redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos –, e como tal baseado simultaneamente nos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença (SANTOS, 2007, p. 83-84)41.

A segunda forma – o patrimônio comum da humanidade – diz respeito a “lutas transnacionais pela proteção e desmercadorização de recursos, entidades, artefatos, ambientes considerados fundamentais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária” (SANTOS, 2002, p. 70).

Ao enunciar nesses termos, Santos compreende que a globalização, em vez de se encaixar no padrão moderno ocidental de globalização como homogeneização, uniformização e harmonização consensuada, ela é a expressão de um movimento de tensão e conflito entre interesses hegemônicos e subalternos. Não obstante reconheça a produção e construção social

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Santos defende que desde o início deste século, “o Fórum Social Mundial tem sido a expressão mais cabal da globalização contra-hegemônica e do cosmopolitismo subalterno. Entre as entidades que dele participam, os movimentos indígenas são, do meu ponto de vista, aqueles cujas concepções e práticas representam a mais convincente emergência do pensamento pós-abissal, o que é muito auspicioso para a possibilidade de um tal pensamento, já que os povos indígenas são os habitantes paradigmáticos do outro lado da linha, o campo histórico do paradigma ‘apropriação/violência’” (SANTOS, 2007b, p. 83-84).

de um consenso em torno da globalização hegemônica neoliberal, ele adiverte para a tensão e conflito nesse campo pela direção da hegemonia, assim como, também, tensões e disputas no campo subalterno (SANTOS, 2002).

Ao partir desse pressuposto, ele identifica, portanto, que existe uma “globalização dominante ou hegemônica” produzida e conduzida pelo grande capital, principalmente, pelas grandes empresas trans/multinacionais, pelos organismos financeiros multilaterais (os novos atores hegemônicos) e os Estados centrais do capitalismo, na forma neoliberal, que é a expressão da direção hegemônica. No entanto, ele entende que está em curso, também, uma “outra globalização” ou uma “globalização contra-hegemônica” que emerge e é construída pela e no seio das classes e grupos sociais subalternos ou excluídos, no bojo de uma metamorfose, reconfiguração e dinâmica local-global e global-local42.

Essa formulação permite uma aproximação, mesmo considerando suas matrizes teóricas e objetos epistemológicos diferentes, com Milton Santos (2000, p. 18), que assinala a existência de uma globalização como fábula (ideológica), outra como perversidade (como ela é realmente) e outra como possibilidade (uma outra globalização engendrada de baixo para cima), demarcando, assim, a natureza dialética, o caráter dinâmico e contraditório, hegemônico e contra-hegemônico desse fenômeno.

O referido autor, ao apresentar essas três premissas, quer, inicial e criticamente, desconstruir a representação de uma globalização irreal, que é construída histórica, social, cultural e politicamente, e transmitida, ideologicamente para a sociedade como natural e perfeita, como se todos e todas, em tempo-espaço real, pudessem participar em condições iguais da tão propalada e pomposa aldeia global. Ao desvelar ou desnudar o rei da “globalização como fábula”, Milton Santos revela e denuncia a existência de uma “globalização como perversidade”, que se funda na lógica e racionalidade de produção capitalista, em sua versão e fase tecno-informacional e financeira ampliada, global e complexa, geradora e intensificadora das contradições, das desigualdades e da exclusão, que tudo transforma em mercadoria ou fetiche como denominava Karl Marx. Essa globalização como “perversidade” vem gerando a dramaticidade do ser humano e do seu habitat Terra, transformando o território em “território do dinheiro”, da dessocialização e desumanização e, portanto, da perda de sentido da existência humana (SANTOS, 2000).

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Boaventura Santos adverte que o “consenso neoliberal propriamente dito é um conjunto de quatro consensos [globalização econômica, globalização social, globalização política e globalização cultural] (...) dos quais decorrem outros. Este consenso está hoje relativamente fragilizado em virtude de os crescentes conflitos no interior do campo hegemônico e da resistência que tem vindo a ser protagonizada pelo campo subalterno ou contra-hegemônico. Isto é tanto assim que o período atual é já designado por “pós-Consenso de Washington” (SANTOS, 2002, p. 27).

Milton Santos, contudo, com um olhar utópico-crítico, considera que dessa dramaticidade vem emergindo, de maneira não tão transparente, de baixo, um conjunto de forças sociopolíticas populares, que vêm construindo caminhos alternativos e recolocando o valor do ético, do político e do humano no campo da liberdade e da solidariedade, da justiça e da igualdade, da democracia participante, apontando, assim, para além de um campo de