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1 QUESTÕES HISTÓRICAS E ATUAIS DO DEBATE SOBRE O TEMA DO

1.6 O CONCEITO DE TERRITÓRIO: ESCAVANDO PISTAS

Rogério Haesbaert (2004), em seu inovador estudo, analisa o território de forma relacional e integradora, considerando suas várias dimensões (econômica, social e política, simbólico-cultural e ecológica) e várias escalas (local, regional, nacional e global). Daí, sua referência à ideia de território multidimensional e multiescalar e de multiterritórios, onde estão expressos os territórios alternativos construídos pelos sujeitos, que compõem os chamados aglomerados de exclusão. Essa perspectiva possibilita uma ruptura com abordagens dicotômicas e dualistas.

O Território, visto por muitos numa perspectiva política ou mesmo cultural, é enfocado aqui numa perspectiva geográfica, intrinsecamente integradora,

que vê a territorialização como o processo de domínio (político-econômico) e/ou de apropriação (simbólico-cultural) do espaço pelos grupos humanos. Cada um de nós necessita, como um “recurso” básico, territorializar-se. Não nos moldes de um “espaço-vital” darwinista-ratzeliano, que impõe o solo como um determinante da vida humana, mas num sentido muito mais múltiplo e relacional, mergulhado na diversidade e na dinâmica temporal do mundo (HAESBAERT, 2004, p. 16).

Para Gonçalves e Haesbaert (2006), o território é concebido numa perspectiva social, que integra tanto a sua dimensão concreta, político-econômica, mais tradicional, quanto a sua dimensão simbólica, cultural-identitária. Com isso, focalizam a nova des-ordem mundial com base nessas múltiplas dimensões.

Raffestin (apud HAESBAERT, 2004), por sua vez, procura diferenciar as noções de território e de espaço, sendo este compreendido como dimensão maior, mais ampla, que precede o território, de onde este se origina por meio de “uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível”, o qual passa a “territorializar o espaço”, material e/ou simbolicamente a partir dessa “apropriação do espaço”. Nesse sentido, para Raffestin, território é

(...) um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por conseqüência, revela relações marcadas de poder. (...) o território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção a partir do espaço. Ora, a produção por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder (Raffestin, 1993, apud HAESBAERT, 2004, p. 81).

O autor deixa evidente, a partir desses postulados e assertivas, o entendimento do território como produção humana, sociocultural e política, oriunda da transformação e apropriação do espaço, via práxis do trabalho dos atores sociopolíticos, que é marcada, fundamentalmente por “relações de poder”, ou seja, o território constitui-se e é constituído enquanto “campo de relação de poder”. Nesse sentido, a categoria poder assume papel preponderante na definição do território, pois é entendida de forma relacional, permeando e atravessando o conjunto de todas as relações sociais do tecido societário. É possível, portanto, identificar nessa concepção uma relação entre as dimensões material (econômica), política e simbólico-cultural, apontando para a compreensão “relacional de território” (HAESBAERT, 2004).

Raffestin explica que:

O espaço e o tempo são suportes, portanto condições, mas também trunfos. Eis por que Lefebvre tem toda razão quando diz que “o espaço é político”. Em todo caso, espaço e tempo são suportes, mas é raro que não sejam também recursos e, portanto, trunfos. O território é um trunfo particular, recurso e entrave, continente e conteúdo, tudo ao mesmo tempo. O território é o espaço por excelência, o campo de ação dos trunfos (Raffestin, 1993, apud HAESBAERT, 2004, p. 81).

Haesbaert, a despeito disso explica, que:

O fato de ser um trunfo procede, em primeiro lugar, segundo Raffestin, da constatação de que o espaço é finito. “Noção banal”, sem dúvida, mas cuja consideração é relativamente recente, ligada àquilo que os politólogos denominam “cercadura [clôture] do espaço”. Compondo-se de “duas faces”, “expressão” material e “conteúdo” significativo, simbólico, o espaço é um “espaço relacional, inventado pelos homens” (Raffestin, 1993, apud HAESBAERT, 2004, p. 82).

Isso faz de Raffestin um autor que contribui, decisivamente, para recolocar o conceito de território em outro patamar, rompendo com acepções unidimensionais, dicotômicas e neutras, que estão na base de várias áreas de conhecimento.

Quanto a Milton Santos (2000; 2002; 2004), seu conceito de território considera movimentos de continuidades e descontinuidades do tempo-espaço informacional contemporâneo. Em face do novo cenário globalitário, Santos (2002; 2004) relativiza a busca rígida pela “distinção entre espaço e território”, demarcando a relevância de conceber o território usado e o diálogo permanente da sociedade com esse território como produto das relações histórico-sociais.

É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto de análise social. Trata-se de uma forma impura, um híbrido, uma noção que, por isso mesmo, carece de constante revisão histórica. O que ele tem de permanente é ser o nosso quadro da vida. Seu entendimento, pois, é fundamental para afastar o risco de alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de renúncia ao futuro. [...] o território usado são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado (SANTOS, 2002, p. 15-16).

Ao partir dessa premissa, esse autor recoloca e reafirma a importância da ação humana e social, a partir de seu trabalho transformador e dinamizador da sociedade, sem que isso prescinda da “herança social” e do “presente social”. Em forma de advertência, assevera:

De fato, cada momento da ação social inclui a Terra e os homens sobre os quais tal ação se realiza. E essa ação seria outra se os outros fossem o território e o seu uso. Mas não estamos acostumados a esse raciocínio e pensamos a história como se fosse uma relação direta dos homens com a Terra, sem a intermediação das heranças sociais e materiais e do presente social (SANTOS, 2004, p. 27).

Ao fazer referência ao alargamento do pensamento e do conceito de território tomado nas últimas obras de Milton Santos, Haesbaert (2004) diz:

A grande ênfase à “funcionalização” e ao conteúdo técnico dos territórios permite incorporar a leitura de território feita por santos numa perspectiva econômica. Devemos reconhecer, entretanto, o rico processo de ampliação e complexificação do conceito, verificado especialmente nos seus últimos trabalhos, além do fato extremamente relevante, de o autor nos alertar para que nunca vejamos a des-re-territorialização apenas na sua perspectiva

político-cultural, incluindo de forma indissociável os processos econômicos, especialmente a dinâmica capitalista do “meio técnico-científico- informacional” (HAESBAERT, 2004, p. 61).

Porto-Gonçalves entende, também, que o pensamento de Santos, contribui para fazer reaparecer a tensão constitutiva (criativa) entre o material e o simbólico, entre a linguagem e certos elementos constantes, que se repetem, da nossa experiência sensorial. O referido autor diz que Santos insiste nessa indivisibilidade entre o material e o simbólico, explicando que o espaço geográfico

é um misto, um hibrido, formado da união indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações. Os sistemas de objetos, o espaço-materialidade, formam configurações territoriais, onde a ação dos sujeitos, ação racional ou não, vem instalar-se para criar um espaço” “...O espaço geográfico deve ser considerado como algo que participa igualmente da condição social e física, um misto, um hibrido. Nesse sentido, não há significações independentes dos objetos (Santos, 1996, apud PORTO-GONÇALVES, 2001, p. 231).

Porto-Gonçalves (2001), com isso, defende a indissociabilidade entre sociedade-e- epaço. Por isso, defende a tese de que o “ser social é indissociável do estar”.

Ora, é preciso considerar que cada sociedade é, antes de tudo, um modo próprio de estar-junto (proxemia) o que implica, sempre, que toda sociedade ao se instituir enquanto tal o faz construindo o seu-espaço não cabendo, pois, uma separação entre o social e o geográfico. (...). O ser social é indissociável do estar. [...] A sociedade no seu devir histórico não é a-geográfica (PORTO-GONÇALVES, 2001, p. 229).

Isso implica situar o pensamento e o conceito de Santos (2004) num campo de base materialista, mas que não se fecha e se prende a ele, demonstrando trabalhar de forma integrada e relacional com as demais dimensões. Com base nesses pressupostos, Milton Santos assinala que o território ganha novo significado e dimensão nesse processo histórico de globalização hegemônica.

Quer dizer, há lugares mais apropriados para aumentar os lucros de alguns, em detrimento de outros. (...) Então, os lugares tornaram-se um dado essencial do processo produtivo, em todas as suas instâncias, e passam a ter um papel que não tinham antes. A globalização revaloriza os lugares e os lugares – de acordo com o que podem oferecer às empresas – potencializam a globalização que está aí, privilegiando a competitividade (SANTOS, 2004, p. 22).

Isso tem produzido, nesse processo contraditório de territorialização, desterritorialização e reterritorialização do capital, conforme Milton Santos (2000), tanto as chamadas “zonas luminosas” quanto as “zonas opacas”, inscrevendo, assim, territórios marcados por hierarquizações e desigualdades, reproduzindo, assim, o típico paradigma, segundo Harvey, do desenvolvimento geográfico desigual, que combina e articula a

acumulação flexível e acumulação por espoliação, conformando a hegemonia assentada na relação dialética entre a lógica capitalista de acumulação (lógica capitalista de poder) e a lógica política do Estado (lógica territorial de poder). Contudo, essa expansão da fronteira, comandada por esse modelo neodesenvolvimentista, vem se dando sob fortes e agudas contestações e protestos, lutas e resistências plurais protagonizadas por povos, movimentos e organizações sociais do campo e da cidade, que denunciam violações de direitos e reivindicam outros usos, sentidos e significados para o território e recursos naturais diferente e contrastante dessa racionalidade e modelo de desenvolvimento hegemônicos.

À luz dessa pista, essa fronteira é concebida como um terreno de correlações de poder e de saber, crivada de disputas pelo uso, apropriação e significação do território e da natureza, para produção e reprodução social de modos de existir e sentir, de se relacionar com a natureza, ou seja, um campo de disputas por padrões e processos de se produzir material e simbolicamente. É essa pista que procuramos seguir para demarcar que esse modelo neodesenvolvimentista é a expressão da (te-des-re) territorialização hegemônica, mas que as lutas e resistências a esse paradigma podem expressar experiências contra-hegemônicas de novas territorialidades, isto é, de outras formas de sociabilidade, produzidas a partir desse brasil profundo e por múltiplos sujeitos.

Sob esse prisma, também, é que procuramos situar e resignificar a questão rural, demarcando um contraponto ao seu tratamento de forma reducionista e consevador. Wanderley (2009a; 2009b) entende que o mundo rural é um espaço de vida, que se define enquanto um espaço singular e um ator coletivo, que está em constante mudança social, refazendo-se historicamente num processo de tensão e conflito. Assim, o espaço rural não é um espaço vazio, mas sim um espaço social, de trabalho e de reprodução social. Contudo, para ela, a lógica dominante capitalista do agronegócio e do latifúndio tende a levar e produzir ruralidades de espaços vazios no campo, o que demarca lógicas, processos e dinâmicas tensas e conflitivas entre ruralidades de produção e reprodução social e ambiental na sociedade e, por consequência, de desenvolvimento. Ao partir dessa premissa, ela contesta a lógica de desenvolvimento dominante que vem pautando as políticas públicas no país.

Na sociedade brasileira, a concepção de desenvolvimento aparece associada e até confundida com a idéia de urbanização. Nesse sentido, desenvolver um município ou uma região significa urbanizá-la como se o “rural” fosse algo negativo a ser superado, precisamente, pelos processos de desenvolvimento. Como é sabido, o IBGE define nos municípios uma sede (espaço urbano, independentemente da dimensão da população e da intensidade dos serviços que oferece) e o seu entorno (zona rural, com uma população rarefeita, dispersa e dependente dos serviços da sede urbana). (...) O rural supõe, por definição, a dispersão da sua população, a ausência do poder público no seu

espaço, a ausência dos bens e serviços naturalmente concentrados na área urbana. Em conseqüência o rural está sempre referido à cidade como sua periferia espacial precária, dela dependendo política, econômica e socialmente (WANDERLEY, 2009b, p. 1-2)80.

Ao se contrapor a essa acepção dualista e dicotômica, Wanderlei concebe esse espaço rural apresentando uma dupla face conflitiva, de isolamento e precariedade e de modos de vida próprios, interligados à cidade, ao urbano, numa relação de interdependência e pejado de tensões.

O meio rural possui, assim, uma dupla face: por um lado é fragilizado pelo isolamento, pela precariedade com que tem acesso aos bens e serviços oferecidos pela sociedade e pelos efeitos desagregadores do êxodo. Por outro lado, e apesar da primeira face, é um meio rural povoado, cujos habitantes são portadores de uma cultura que dinamiza as relações sociais locais e de uma grande capacidade de resistência aos efeitos desagregadores aos quais estão constantemente confrontados (WANDERLEY, 2009b, p. 2).

Ao buscar uma definição para o mundo rural, ela afirma:

Para mim, o mundo rural é um espaço de vida, isto é, um lugar onde se vive, onde tem gente! No Brasil, cerca de 30 milhões de pessoas vivem no meio rural. É um lugar de onde se vê o mundo e de onde se vive o mundo. Partindo dessa concepção, afirmamos o pressuposto que o rural não é algo a ser superado pela urbanização, mas é uma qualidade que decorre da sua dupla face ambiental e social. Sua qualidade está associada à importância da natureza no espaço rural e às formas de vida social nele predominantes, fundadas nos laços de proximidade e na sua capacidade de integração. Como tal, é uma qualidade que interessa não só a seus habitantes, mas ao conjunto da sociedade, devendo ser preservada e positivamente valorizada (WANDERLEY, 2009b, p. 2).

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No que tange à questão do fim ou não das sociedades camponesas/rurais na sociedade contemporânea, em face desses processos sociais globais de mudança: urbanização, industrialização e modernização da agricultura, Wanderley (2009a, p. 204-205) assinala que há pelo menos dois pontos de vista distintos, que informam duas abordagens conflitantes sobre esses processos e, que, em grande medida, vêm pautando e orientando o debate acadêmico e político na atualidade. “Um primeiro, que percebeu neles [nos processos de industrialização e urbanização] o desaparecimento completo das sociedades rurais/camponesas; a agricultura se tornaria, nesse caso, um mero campo de aplicação do capital, à semelhança de qualquer outro setor possível de investimento; sob esta ótica, assistir-se-ia à progressiva decomposição do campesinato e a constituição das classes sociais do capitalismo no campo; o camponês teria se tornado um agricultor – referido, não mais a um modo de vida, mas a uma profissão especifica – e um cidadão como qualquer outro. Mais recentemente, afirma-se uma ruptura completa do “agricultor familiar moderno”, em relação à sua história camponesa, analisando-o como resultado da iniciativa do próprio Estado. Mas há um outro olhar sobre estes mesmos processos. Sob esta outra perspectiva, as profundas transformações resultantes dos processos sociais mais globais – a urbanização, a industrialização, a modernização da agricultura – não se traduziram por nenhuma “uniformização” da sociedade, que provocasse o fim das particularidades de certos espaços ou certos grupos sociais. A modernização, em seu sentido amplo, redefine, sem anular, as questões referentes à relação campo- cidade, ao lugar do agricultor na sociedade, à importância social, cultural e política da sociedade local, etc. O agricultor moderno, particularmente, o agricultor familiar, predominante nos países ditos “avançados”, pelo fato mesmo de ser familiar, guarda laços profundos – de ordem social e simbólica – com a tradição “camponesa” que recebeu de seus antepassados”.

Ao partir desse pressuposto, ela defende o desenvolvimento rural, concebendo e alargando o entendimento e significado de rural para além do reducionismo agrícola, tomando-o em suas multidimensões e complexidades da totalidade social.

O desenvolvimento rural, portanto, ao contrario de ser a superação do rural, é precisamente o desenvolvimento das qualidades do rural. Essa concepção nos leva a compreender o meio rural não apenas como lugar da produção agrícola. Também no Brasil, outras funções são atribuídas ao espaço rural: um espaço residencial, de consumo para as populações urbanas, especialmente através das residências secundárias e dos programas de turismo rural e agroecológico, e um espaço de valorização patrimonial, patrimônio ambiental e cultural. Naturalmente, não se trata de um mundo isolado. Ele sempre é referido ao conjunto da sociedade (WANDERLEY, 2009b, p. 3).

Ao colocar nesses termos, Wanderley procura forjar uma interpretação da sociedade brasileira, em particular e a partir da dinâmica e dos processos de ruralidades em suas várias dimensões (social, econômica, política, cultural, territorial e ambiental) e, por conseguinte, de desenvolvimento de país, reconhecendo a importância do debate do desenvolvimento rural. Para isso, considerando o protagonismo de suas próprias populações e de seus modos de vida. Todavia, com o processo de expansão da fronteira agrícola e o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro, por meio do agronegócio, tem-se aprofundado a dinâmica de acumulação de capital, assumindo o Estado a figura do grande estimulador e investidor desse setor hegemônico para a modernização da agricultura brasileira. Esse setor vem ocupando posição de destaque na agenda do governo federal e forte participação no PIB do país, através da exportação de commodities, demarcando o processo de reprimarização da economia ou neoextrativismo e reinscrevendo o seu direcionamento econômico, político e cultural (a oligarquia passada não morreu, mas se refez, se ampliou, metamorfoseou-se e se renovou em articulação com novos setores e atores nacionais e globais), sob o discurso do “desenvolvimento, modernização e progresso do Brasil”, em especial do “campo” (DELGADO, 2010; DELGADO, 2009; 2010a; 2010b; ALMEIDA, 2010b; 2011)81.

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Guilhereme Delgado (2010) evidencia uma das grandes contradições da economia política brasileira e de seu modelo de desenvolvimento ao optar pela especialização primária e reforço do pacto social conservador com o agronegócio, como grande força econômica e política desse modelo hegemônico.

2 O LUGAR DA FRONTEIRA AMAZÔNICA BRASILEIRA NA AGENDA