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2 O LUGAR DA FRONTEIRA AMAZÔNICA BRASILEIRA NA AGENDA

2.4 PROBLEMATIZAÇÕES A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA CONTRA-

Em face desse cenário, o que as lutas e resistências dos movimentos sociais da região/país têm a revelar diante desse processo e dinâmica de expansão socioespacial do capitalismo com forte papel do Estado sob esse viés do neodesenvolvimentismo?

Nesse processo de mudanças e de crises, os movimentos sociais têm mudado, redefinindo-se. Uns, inclusive, passam a perder visibilidade ou somem, outros, ao contrário, emergem, ganhando a cena pública, inovando a agenda ou repertório, colocando a público questões novas e velhas, mas usando novos métodos e apontando novos adversários no campo do enfretamento e dos protestos. Outros, bem mais recentes, lutam para ganhar visibilidade. Tudo isso pode expressar um pouco da metamorfose por que vêm passando os movimentos sociais, suas lutas e resistências, tencionando e interpelando os paradigmas epistemológicos e teóricos a reverem suas lentes e ajustarem seus graus de mirada analítica da realidade brasileira, a fim de interpretar um “novo” tempo histórico, marcado por mudanças e conservações, continuidades e descontinuidades.

Nesse sentido, a temática dos movimentos sociais tem ocupado a atenção de um conjunto de pesquisadores (as), sob ângulos e perspectivas diferentes, dadas as mudanças em curso no país e no mundo, sobretudo a partir de seu processo de redemocratização e de globalização, assumindo implicações em várias dimensões – multidimensional – (social, econômica, política, cultural, ambiental, tecno-informacional) e em várias escalas – multiescalar – (local, territorial, nacional e global), ensejando, assim, a emergência de novos atores coletivos na trama da cena pública da sociedade brasileira (DAGNINO, 2000; 2004a; GOHN, 2004; 2008; SCHERER-WARREN, 2007), em especial no espaço rural e outros territórios (BRINGEL, 2011; MEDEIROS, 1995; SANTOS, 2003b; 2006; 2007b), que passam a instaurar novas formas e meios de protestos, novas demandas, trazendo à baila problemáticas invisibilizadas historicamente, desperdiçadas e excluídas pelo paradigma hegemônico.

Com isso, gestam-se novas dinâmicas, contradições e tensões, em especial em torno do tema do desenvolvimento, que se expressa mais recentemente com o modelo dominante em torno dos grandes projetos e empreendimentos, dentre eles as grandes hidrelétricas, por meio dos quais, vêm se gerando sérios problemas sociais e ambientais, mas também resistências e conflitos, com o protagonismo de velhos e novos atores sociais.

Nesse processo de mudanças, exige-se um olhar teórico renovado, que sinalize para a problematização de “velhos” conceitos e a elaboração de novos, a fim de se compreender a

complexidade tomada pelos movimentos sociais na sociedade contemporânea e suas implicações nos projetos de desenvolvimento em disputa no país. Longe de mobilizarem única e estruturalmente a polarização de classes (as lutas de classes) numa trama nacional/global e urbano-industrial, complexificam o cenário trazendo à tona uma diversidade de outros sujeitos e dinâmicas, saberes, tempos, territórios e temas, que interpelam o nacional-universal e a própria dimensão das lutas de classes, repondo a relação particular- geral (local-global), subjetividade-objetividade, material-simbólico sob outros termos, reconfigurando a cartografia dos conflitos, das lutas e resistências sociais (SANTOS, 2003b; 2006; 2007a).

Como consequência desses rearranjos, a política e as relações de poder se redefinem, se ampliam e se complexificam para além das relações sociais de produção, dominação e conflito capital x trabalho (ênfase dada pela tradição marxista) e das instituições formais e tradicionais do Estado (relevo posto pela tradição liberal) (SANTOS, 2003a; 2012e). Isso implica captar a política e o poder, as resistências e as lutas pelos direitos e pela cidadania para além das instituições, de seus agentes e das organizações partidárias tradicionais, dos espaços públicos formais. Significa atinar para as práticas sociais e culturais de luta dos movimentos e evidenciar a emergência e gestação de espaços públicos alternativos, onde se produzem significados, sentidos e práticas de contestação e desestabilização da cultura e da ordem dominantes, e engendram um novo jeito de fazer e exercer a política, a cidadania; de reinventar a esfera pública e a democracia na sociedade brasileira (DAGNINO, 2000; 2004a; SANTOS, 2003a; SCHERER-WARREN, 2007).

Dagnino (2004a, p. 106-107) ver emergir, de forma não cabal, uma “nova noção de cidadania”, que está assentada em “três elementos inter-relacionados: sua vinculação à experiência dos movimentos sociais; à construção democrática e seu aprofundamento, e o nexo constitutivo entre cultura e política”. Ao se referir a essa noção de cidadania, sustenta:

O fato de que ela organiza uma estratégia de construção democrática, de transformação social, que afirma um nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da política. Incorporando características da sociedade contemporânea, como o papel das subjetividades, a emergência de sujeitos sociais de novo tipo, a ampliação do espaço da política, essa é uma estratégia que reconhece e enfatiza o caráter intrínseco e constitutivo da transformação cultural para a construção democrática. Nesse sentido, a construção da cidadania aponta para a construção e difusão de uma cultura democrática (DAGNINO, 2004a, p. 104).

Nesses termos, para a referida autora, a democracia implica a construção de uma “sociedade democrática”, não se tringindo e reduzindo, portanto, a um regime político, como sustenta a tradição liberal.

A consideração dessa dimensão implica desde logo uma redefinição daquilo que é normalmente visto como o terreno da política e das relações de poder a serem transformadas. E, fundamentalmente, significa uma ampliação e aprofundamento da concepção de democracia, de modo a incluir o conjunto de práticas sociais e culturais, uma concepção de democracia que transcende o nível institucional formal e se debruça sobre o conjunto das relações sociais permeadas pelo autoritarismo social e não apenas pela exclusão política no sentido estrito. Nossa referência aqui, portanto, é, mais do que um regime político democrático, uma sociedade democrática (DAGNINO, 2004a, p. 105).

Dagnino (2004a, p. 106-107) destaca, ainda, a “ideia de cidadania como estratégia política”, segundo a qual “significa enfatizar o seu caráter de construção histórica, definida, portanto, por interesses concretos e práticas concretas de luta e pela sua continua transformação”, o que sugere dizer que seu “conteúdo e significado, portanto, serão sempre definidos pela luta política”.

A história concebida de forma dinâmica, movida por contradições, tensões e conflitos, em diferentes intensidades, tempos e espaços, para se conquistar a dignidade humana e a liberdade, possibilita uma visão angular diferente e relevante para interpretar a sociedade e seus fenômenos em mudança. E, nesse transcorrer da história, os movimentos sociais, enquanto fenômenos sócio-históricos, têm assumido, dado os condicionantes dos tempos- espaços históricos, um campo de estudo importante no processo de resistência e de construção de caminhos alternativos de sociabilidade, de conquistas de direitos e de alargamento da cidadania e da democracia no país, de sinalização e defesa de outros padrões e processos de desenvolvimento e formas de sociabilidade.

Nesse movimento de reinvenção da política e de reconstrução da história, atores coletivos emergentes inovam tanto o modo de lutar e de reivindicar, como a agenda de reivindicações por direitos (gênero, meio ambiente, étnico-racial, geracional, territorial etc.), apontando “novas” formas de opressão, dominação e exclusão e questionando antigas formas de contestação; apontando novos problemas e novas soluções, alcançando as subjetividades e práticas sociais e culturais um terreno de estudo importante na análise teórica e no campo da política (DAGNINO, 2000; 2004a; SANTOS, 2003a; 2003b; 2006)127.

A tese do “deslocamento” das análises e dos conflitos nos movimentos sociais, focalizados nas relações sociais de produção - de classe -, para a cultura, a identidade, a linguagem, o local, o cotidiano, as diferenças, vem sendo sustentada por teóricos do chamado

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Gonh (2008; 2010) adverte: se as ações coletivas expressas nos movimentos sociais das décadas de 70 e 80 indicavam um descentramento, um viés muito mais coletivo no sentido da universalidade – lutar por “direito a ter direitos” –, nesse cenário mais recente, ganha força o “autocentramento”, a subjetividade, atores sociais que passam a reivindicar e lutar pelos direitos de reconhecimento específicos, perdendo espaço e fôlego os movimentos e o debate em torno da defesa da transformação social e do universal.

Paradigma dos Novos Movimentos Sociais (NMS), tangenciando horizontes teórico- metodológicos e conceituais distintos e, também, divergentes quanto ao posicionamento (GOHN, 2004). As teses do descrédito da classe, da perda do adversário, da utopia de um projeto histórico, do descentramento do poder e do sujeito constituem-se, em grande medida e de forma diferenciada, algumas das matrizes analíticas centrais postas em destaque e em debate por esse paradigma128.

Esse cenário tem permitido a pesquisadores das ciências sociais a identificar a necessidade de novas abordagens sobre os movimentos sociais emergentes e sua relação com antigos movimentos e lutas sociais. Ao se referir à luta da classe trabalhadora contra a opressão imposta pelo sistema hegemônico capitalista, Santos (2003c) entende e considera que essa luta, não obstante sua carga de importância e legitimidade, centrava-se numa forma de opressão secundarizando e invisibilizando uma “constelação de outras formas de opressão”. Com isso, adverte esse autor:

A face que lhes era mais próxima, e que era sem dúvida importante, no entanto, provavelmente nunca poderá ser suficientemente desmascarada e essa opressão vencida, se não se vencerem outras formas de opressão que existem em constelação com ela. A opressão existe em constelação de opressões e, portanto, eu penso que é fundamental que elas estejam articuladas (SANTOS, 2003c, p. 14).

Nessa perspectiva, esse autor considera relevante fazer a crítica à razão indolente, o paradigma epistemológico hegemônico, para trazer à baila “experiências sociais” invisíveis e possíveis portadoras de novos projetos de contra-hegemonia e emancipação social. Isso implica descolonizar a ciência e, ao mesmo tempo, construir novos paradigmas epistemológico, social e político.

Em primeiro lugar, a experiência social em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Em segundo lugar, esta riqueza social está a ser desperdiçada. É deste desperdício que se nutrem as ideias que proclamam que não há alternativa, que a história chegou ao fim e outras semelhantes. Em terceiro lugar, para combater o desperdício da experiência, para tornar viáveis as iniciativas e os movimentos alternativos e para lhes dar credibilidade, de pouco serve recorrer à ciência social tal como a conhecemos. No fim das contas, essa ciência é responsável por esconder ou desacreditar as alternativas. Para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade (SANTOS, 2006, p. 95).

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Para Gohn (2004, p.124), além de uma diferenciação existente entre os NMS da Europa e os da América Latina, ela assinala que em “ambos os casos o que há de novo realmente é uma nova forma de fazer política e a politização de novos temas”.

Como um contraponto crítico ao paradigma hegemônico, Santos (2006) defende a Sociologia das ausências. Para ele, tal abordagem busca trazer à baila as experiências sociais disponíveis que historicamente foram e vêm sendo ocultadas, invisibilizadas ou riscadas da história pela razão indolente, alargando, assim, o presente e contraindo o futuro; aumentando, multiplicando e diversificando as experiências sociais no mundo. Para esse empreendimento, ele defende as chamadas “Ecologias”, dentre essas, destaca: a Ecologia de saberes; a Ecologia das temporalidades; a Ecologia dos reconhecimentos; a Ecologia das trans-escalas e a Ecologia das produtividades. Em todas, é possível identificar a tônica no plural.

No tocante à Sociologia das emergências, o autor diz que esta, ao reconhecer as experiências sociais, trabalha com a ordem do possível, buscando identificar as expectativas múltiplas e diversas gestadas por tais experiências, que alargam o presente e contraem o futuro – ampliam os horizontes das utopias ou possibilidades outras de contra-hegemonia ao projeto hegemônico capitalista e colonialista vigentes (SANTOS, 2006, p. 120-121). No que concerne a essas duas sociologias, o referido autor explica:

Enquanto a sociologia das ausências expande o domínio das experiências sociais já disponíveis, a sociologia das emergências expande o domínio das expectativas sociais possíveis. As duas sociologias estão estreitamente associadas, visto que quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no mundo mais experiências são possíveis no futuro. Quanto mais ampla for a realidade credível, mais vasto é o campo dos sinais ou pistas credíveis e dos futuros possíveis e concretos. Quanto maior for a multiplicidade e diversidade das experiências disponíveis e possíveis (conhecimentos e agentes), maior será a expansão do presente e a contração do futuro. Na sociologia das ausências, essa multiplicação e diversificação ocorre pela via da ecologia de saberes, dos tempos, das diferenças, das escalas e das produções, ao passo que a sociologia das emergências as revela por via da multiplicação simbólica das pistas ou sinais (SANTOS, 2006, p. 120-121).

Para Santos (2003c, p. 13-14), por outro lado, o enfrentamento a essa constelação de opressão e de exclusão não pode se fazer de forma particularista, fragmentada e localista, correndo-se o grande risco de se incorrer ao oposto: particularizar e superficializar a luta, o enfrentamento, que deve ser local e global e que alcança várias dimensões, posto que esse superficialismo pode ampliar e fortalecer o risco de uma cultura do testemunho, marca de um Multiculturalismo Conservador, a qual pode levar a um novo apartheid cultural.

[...] que nós não caiamos na armadilha de aceitar que reconhecimento vá ao ponto de estabelecer critérios de autenticidade, o que faz com que as culturas passem a ser apenas culturas de testemunho. E, portanto, sobre as mulheres, sobre o movimento das mulheres, só possam falar mulheres e sobre a discriminação contra os negros, só possam falar negros. A ideia da autenticidade de testemunho é, no meu entender, uma das formas que pode levar a um desenvolvimento de um novo apartheid cultural e que podia ser realizado através de um radicalismo excessivo, porque permitiria criar

igualdade, mas em separação. [...] não queremos que a igualdade se realize em separação, porque com separação não há igualdade, há apartheids (SANTOS, 2003c, p. 13-14)129.

Para tanto, Santos (2003c, p. 14) sustenta a defesa da “Teoria da Tradução”, que visa articular os diversos sujeitos de forma plural, transversal, combinando as várias lutas, as particularidades - a política das diferenças - com os grandes problemas postos pela modernidade: as desigualdades socioeconômicas e políticas, por meio de uma política da igualdade; articula e combina a dimensão intelectual e a política. Essa Teoria da Tradução está diretamente vinculada à Ecologia de Saberes, para fortalecer os movimentos sociais na construção e condução da globalização contra-hegemônica, para promoção da justiça global, que é cognitiva e político-cultural, social, econômica e ecológica.

A possibilidade de criar a inteligibilidade entre os grupos, entre o movimento dos sem-terra e o movimento das mulheres e o movimento dos negros, entre o movimento dos negros e do meio ambiente e o movimento dos indígenas, permite que criemos redes de inteligibilidade. Eu acho que essa é a ideia de tradução e de articulação intelectual e política. Ela tem que ser intelectual e política para que se veja melhor as lições aprendidas em uma luta, que seja possível transferi-las para outras, que as dificuldades de uma sejam vistas por outras lutas e que juntando forças seja possível ser mais eficaz (SANTOS, 2003c, p. 14).

Isso implica ampliar a práxis da luta, de uma cultura de movimento social em si, para uma cultura política de inter-movimentos intercultural, de inter-conhecimento e de auto- educação, a fim de possibilitar a produção coletiva do conhecimento, a diversidade epistemológica e a inteligibilidade contra-hegemônica para fazer a transformação social emancipatória. Santos (2003c, p. 12), ao fazer alusão à perspectiva do Multiculturalismo Emancipatório, faz referência à relação entre igualdade e diferença, que denomina de política de igualdade e política de diferença, que apontam tanto para essa elevação cultural-política inter-movimento, quanto para a contraposição ao Multiculturalismo Conservado. Essa perspectiva é antiessencialista e concebe que as culturas se movem por conflitos, demarcando que a diferença é permanente e transitória e que sua luta se combina e se articula com a luta pela igualdade socioeconômica.

O multiculturalismo emancipatório que estamos a tentar a buscar é um multiculturalismo decididamente pós-colonial, neste sentido amplo.

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Santos (2003c, p. 12) assinala que a primeira forma de multiculturalismo conservador é colonial, por meio da qual o colonizador reconhece a essência de outras culturas, mas sempre subordinando-as à cultura dominante. Por isso, esse multiculturalismo consiste: “primeiro, em admitir a existência de outras culturas apenas como inferiores. Segundo, a cultura eurocêntrica branca nunca é étnica – étnicos são os não brancos, em princípio, e, portanto, não admite a etnicidade, o particularismo da cultura branca dominante. Terceiro, não admite a incompletude dessa cultura. Essa é uma cultura que em si mesma contém tudo o que melhor foi dito e pensado no mundo em geral. E, como tal, tem o direito a esta universalidade”.

Portanto, assenta fundamentalmente numa política, numa tensão dinâmica, mais complexa, entre a política de igualdade e a política da diferença; isso é o que ele tem de novo em relação às lutas da modernidade ocidental do século XX, lutas progressistas, operárias e outras que assentaram muito no princípio da igualdade. Há a ideia de que, sendo todos iguais, é fundamental que se dê uma redistribuição social, nomeadamente ao nível econômico, e é através da redistribuição que assumimos a igualdade como princípio e como prática. Naturalmente que este princípio não reconheceu a diferença como tal. A política de igualdade, baseada na luta contra as diferenciações de classe, deixou na sombra outras formas de discriminação étnica, de orientação sexual ou de diferença sexual, etária e muitas outras. É a emergência das lutas contra estas formas de discriminação que veio a trazer a política da diferença. E a política da diferença não se resolve progressisticamente pela redistribuição: resolve-se por reconhecimento (SANTOS, 2003c, p. 12).

Nesse sentido, uma possível leitura e compreensão do movimento social emancipatório do campo e da cidade precisa tanto reconhecer e afirmar as diferenças culturais e identitárias, que passam necessariamente pela compreensão da dignidade humana, dos direitos desses grupos sociais excluídos de se auto-representarem, de serem sujeitos de autonomia, de terem seus padrões culturais e identitários assegurados na teia mais ampla e diversa da sociedade; como a luta e a reivindicação pela igualdade socioeconômica, pela redistribuição de bens e riquezas.

Numa abordagem neomarxista, Harvey (2006, p. 102-103) aponta as possibilidades de identificação de caminhos de resistência e alternativa ou de contra-hegemonia a essa lógica hegemônica de globalização da sociedade capitalista. Isso se expressa nos interstícios do desenvolvimento geográfico desigual. Para ele, não obstante seu caráter fortemente “particularista”, esses “interstícios ocultam um verdadeiro fermento de oposição”. É importante, destaca Harvey (2006), que nem todo movimento que se intitula de oposição, anticapitalista, é pró-socialista, pois alguns movimentos de oposição expressam uma bandeira nacionalista excludente e populista, conservadora.

Em vista desse risco, Harvey (2006, p. 103) sugere “o trabalho de síntese das múltiplas lutas”. Ele assinala que uma das forças históricas do marxismo tem sido seu compromisso com a “síntese de diversas lutas cujas metas são múltiplas e divergentes num movimento anticapitalista mais universal”.

O trabalho de síntese das múltiplas lutas hoje existentes tem de ser permanente, pois os campos e terrenos em que essas lutas se travam, e as questões a que respondem, estão em perpétua mudança, acompanhando as alterações da dinâmica capitalista e das condições globais associadas (HARVEY, 2006, p. 103).

Ao lançar mão da contribuição de Raymond Williams, ele assinala que a política está sempre intrinsecamente presente em “modos de vida” e “estruturas de sentimento” peculiares a lugares e comunidades. O universalismo a que o socialismo aspira tem, portanto, de ser construído por meio da negociação entre diferentes exigências, preocupações e aspirações vinculadas a lugares específicos. Tem de ser elaborado por meio do que Williams denominou “particularismo militante” (HARVEY, 2006, p. 85).

Ao se remeter a Williams, enfatizando sua frase: “defesa e promoção de certos interesses particulares, adequadamente unificados”, como modo de fornecer bases ao “interesse geral”, Harvey (2006) assinala que essa é a “tarefa essencial a ser empreendida” no movimento de oposição anticapitalista. Num horizonte para uma construção contra- hegemônica, o referido autor adverte:

O mínimo que o movimento socialista tem a fazer é concentrar-se na construção de uma sociedade alternativa socialmente justa e ecologicamente sensível. Mas para alcançar esse fim é necessário que ele aceite como dadas as atuais condições da globalização e o coro crescente de exigências de sua reforma e de seu controle. Tem sobretudo de aprender a cavalgar as fortes ondas do desenvolvimento geográfico desigual que tornam tão precária e difícil a organização popular e das bases. Se é preciso que os trabalhadores de todos os países se unam para combater a globalização da burguesia, eles devem encontrar maneiras de ser tão flexíveis no espaço – em termos tanto da teoria como da prática política – quanto a classe capitalista tem mostrado ser (HARVEY, 2006, p. 102).

Ao sustentar essa perspectiva, pode-se identificar uma inflexão teórica na abordagem de Harvey, pois ele rompe com uma abordagem de triunfalismo teleológico de classe, quer seja o fim da história e triunfo da classe burguesa no presente cenário, quer seja o triunfalismo