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Na contemporaneidade, os assistentes sociais actuais confrontam-se com o facto de trabalhar na incerteza em contextos que requerem certezas (Dominelli, 2004). A complexa natureza do Serviço Social – com a sua base ética e legal, responsabilidade por tomar decisões complexas e avaliação de riscos, alterações sistemáticas da legislação, requerimentos, estruturas e organização – requer que os assistentes sociais se envolvam num desenvolvimento pessoal e profissional contínuo se querem sobreviver, respondendo efectivamente aos utentes e gerir a incerteza que é endémica à profissão (Lishman, 2009). Face às diferentes tendências e desafios presentes neste contexto de complexidade e incerteza, é exigido ao assistente social uma acção criativa e de escolha planeada junto dos indivíduos, sujeitos de direitos e opressões, sustentada numa reflexão e crítica na perspectiva de um modelo de Serviço Social integrado e participativo (Fook e Gardner, 2007; Adams et

al., 2009). Defende Almeida (2013: 17), que “Conhecer e agir sob o paradigma da

«sociedade de risco» exige novas competências pessoais e profissionais.”.

Efectivamente, face a essa complexidade onde o Serviço Social desenvolve a sua intervenção, é imprescindível o estabelecimento de “novos procedimentos operacionais instrumentadores de conhecimentos elaborados dentro dos requisitos teóricos, fundamentados e enriquecidos por essa reconstrução que alimenta um outro agir profissional.” (Setubal, 2002: 17).

Também para Dominelli (2004) e para Fook e Gardner (2007), no cenário histórico e social actual, a base de trabalho do Serviço Social (o tecido social) está em permanente mudança, o que exige ao assistente social a necessidade de negociar permanentemente as complexidades e estruturas contraditórias dos pedidos sociais e expectativas sociais, pessoais e profissionais. É nessa linha de pensamento que Montaño (2006: 150) defende a importância de contrariar o potencial “fatalismo”, ao cristalizar as condições da actualidade como imutáveis, rígidas, perenes, ingressando assim num possibilismo resignado e hipotecando as possibilidades de um horizonte distinto.

É no sentido do enfrentamento desse desiderato que Iamamoto (2007) afirma que o assistente social é desafiado a aliar a pesquisa sobre a realidade, para interpretar as situações particulares da expressão da questão social que intervêm no seu trabalho, conectando os processos sociais macroscópicos que a gera e transforma, ou seja desenvolver um perfil profissional culto, crítico, capaz de formular, recriar e avaliar.

Para esta autora, o exercício da profissão exige competência para propor, negociar os seus projectos e defender o seu campo de trabalho.

“Requer ir além das rotinas institucionais para buscar apreender, no movimento da realidade, as tendências e possibilidades, ali presentes, passíveis de serem apropriadas pelo profissional, desenvolvidas e transformadas em projectos de trabalho” (Iamamoto, 2007: 12).

O seu enfoque está na autonomia teórico-metodológica, ético-política e técnico-operativa, no seu exercício, simultaneamente submetido a um contrato de trabalho, actuando na prestação de serviços sociais que atendem necessidades sociais e realizando práticas socio-educativas. Clara Santos (2008) também identifica os argumentos destes autores, defendendo que face às questões que são colocadas ao assistente social no seu quotidiano, a capacidade reflexiva e o sentido crítico proporcionam não só uma aprendizagem permanente, como o desenvolvimento da profissão no contexto actual, sendo elementos indispensáveis à singularidade da profissão de Serviço Social. “É o ser que não sobreexiste sem o conhecimento, é o conhecimento que só tem razão de ser na efervescência das experiências sociais.” (Setubal, 2002: 15).

O desenvolvimento destas capacidades permitirá superar a visão superficial dos factos, uma vez que “o aparente é apenas uma nuança do real e que esse real para ser compreendido requer que se mergulhe nele de forma incessante e profunda.” (Setubal, 2002: 15). Desta forma, o assistente social não pode parar na prática interventiva, mas encontrar estratégias para o desenvolvimento de um agir profissional mais dinâmico e questionador “e que caminha pari passu com os diferentes movimentos emergentes da sociedade” (ibidem: 14). Exige-se, pois, um tipo de abordagem que substitua o superficialismo, o praticismo41 característicos da assistência social tradicional, por um conhecimento profundo que vá à verdadeira essência das questões, por forma a desvelar a realidade, transcendendo a aparência dos problemas sociais. A proposta de Iamamoto (2008: 21) é que o assistente social decifre a realidade, apreendendo seus movimentos, o que não surge de uma suposta cartola mágica:

“as possibilidades estão dadas na realidade, mas não são automaticamente transformadas em alternativas profissionais. Cabe aos profissionais apropriarem-se dessas possibilidades e, como sujeitos, desenvolvê-las, transformando-as em projectos e frentes de trabalho”.

E acrescenta-se ainda um novo alento proposto por Faleiros (1987: 56): “O quotidiano é inesgotável. O desafio está aberto para sacudir a acomodação, elevar o nosso nível teórico e

comprometer-nos de maneira diferenciada e aberta (...)”. De facto, “os assistentes sociais (...) formam uma categoria que tem ousado sonhar, que tem ousado ter firmeza na luta, que tem ousado resistir aos obstáculos, porque aposta na história, construindo o futuro, no presente.” (Iamamoto, 2008: 80).

É pela consciência de que todos os processos de mudança são lentos, e de que a afirmação da cidadania profissional passa também pelo valor dado à acção investigativa como conducente a um procedimento técnico mais qualificado e a um reconhecimento social da profissão, que

“(...) se torna essencial criar e desenvolver necessidades de pesquisa que demandam a existência de pesquisadores competentes, profissionais comprometidos com a prática de construção de conhecimento e reconhecedores da importância da criação do novo.” (Setubal, 2002: 169).

Como argumenta Carvalho (2016a), o Serviço Social não se pode resignar às dificuldades que lhe são colocadas, procurando, enquanto profissão de futuro, transformá-las em oportunidades de reconstrução da sociedade, fazendo a diferença, de forma crítica, a quatro níveis: i) reconhecimento da dimensão política do Serviço Social; ii) recusa da instrumentalização; iii) envolvimento e promoção de alternativas às políticas sociais; iv) criação de autonomia profissional.

É importante não esquecer que a legitimação do Serviço Social no seu período inicial foi produto da própria legitimação da sociedade industrial. Como situa Mouro (2006), se estamos perante um novo modo societal que já não é o da sociedade industrial, afigura-se como imprescindível um processo de relegitimação42, dado que o Serviço Social se recria nas várias dinâmicas de transformação social implicadas numa sociedade de risco globalizada. A autora argumenta que essa relegitimação passa:

i) pela reconstrução do poder (ou capital) simbólico da profissão, designadamente através das suas múltiplas capacidades de intervenção na realidade, num contexto de competição com outros perfis profissionais e ocupacionais da intervenção social; ii) pela minimização do papel tutelar ou de controlo do Serviço Social, que se tenta

desvincular de um papel meramente legitimador de políticas para procurar ser mais mediador nesse contexto;

iii) pelo reforço do desenvolvimento e reconhecimento das competências profissionais; iv) e pela ampliação do campo de acção/intervenção a todos os cidadãos e a toda a

sociedade, e não apenas a populações-alvo marginais (no sentido da desguetização do

Serviço Social entendido como intervenção exclusivamente com os “pobrezinhos”, ou com populações residuais).

O Serviço Social consubstancia-se, efectivamente, num agir multifacetado numa grande diversidade de contextos sociais e institucionais. Enquanto profissão e enquanto disciplina académica, vê-se confrontado e desafiado com um quadro de profundas exigências.

Na linha do que foi sendo explanado ao longo deste capítulo, e face ao quadro de mudança global da sociedade, Amaro (2012) sugere como agenda do Serviço Social para o século XXI as seguintes propostas/urgências: aprofundamento do debate interno sobre a profissão e a sua posição no mundo; desenvolvimento de maior consistência científica; fortalecimento da assertividade profissional; resistência às tendências ultramodernas e pós-modernas; convivência tranquila com o carácter camaleónico da profissão; ruptura com o ciclo do eterno retorno.

Também Iamamoto (1996) argumenta que o mundo contemporâneo e os novos problemas sociais afectam o Serviço Social, sobretudo a dois níveis: i) ao nível do campo profissional, em que a profissão é chamada a responder a novas problemáticas e a reposicionar-se em termos de projectos societais defendidos; ii) ao nível da carreira profissional, em que os assistentes sociais ficam sujeitos às pressões da competitividade e do individualismo, que fazem apelo a uma actuação cada vez mais técnica e instrumental e cada vez menos política, preconizando e fragmentando as carreiras profissionais.

Deste pressuposto derivam novos requisitos teórico-metodológicos e ético-políticos que são colocados ao Serviço Social por forma a consolidar quer a nível teórico quer a nível prático um novo projecto profissional totalmente comprometido com valores democráticos e de cidadania, que têm como fundo a igualdade, a liberdade e a justiça social (ibidem), como é preconizado pela definição de Serviço Social da FIAS.

No cenário exposto ao longo deste capítulo, perfilhamos a proposta de Dominelli (2004), de que os assistentes sociais se encontram numa situação contraditória, pois por um lado têm de sistematicamente justificar a sua existência enquanto profissionais comprometidos com a promoção da qualidade de vida das pessoas individual e colectivamente, e por outro lado estão submetidos ao novo managerialismo, sendo-lhes exigido que façam mais com menos, prosseguindo critérios de eficácia e eficiência.

Efectivamente, tais pressupostos só serão possíveis se o assistente social se munir de uma sólida competência para compreender os problemas cada vez mais complexos que se lhe apresentam, ou seja, construir um novo pensamento sobre o social, por forma a construir

novos modos de agir (Andrade, 2001). A contemporaneidade exige novas formas de pensar, de articular pensamento, poder e acção (ibidem), reivindicando um esforço adicional de inteligibilidade aos assistentes sociais para que possa desenvolver diagnósticos, aprofundar a sua capacidade de acção, planeando e executando um agir intencional e orientado (Amaro, 2014).

Todavia, o contexto é adverso, pois as tendências que temos vindo a descrever derivam numa limitação efectiva à autonomia e liberdade profissionais “numa circunscrição do espaço profissional ao nível micro e num estreitamento das possibilidades de desenvolver reflexão, de dar contributos éticos e de pôr em prática intervenções holísticas.” (ibidem: 106).

Estas transformações sociais constituem o pano de fundo das exigências colocadas ao Serviço Social, reforçando a necessidade premente de redefinir as suas actuações, pelo que se defende, em consonância com Carvalho e Pinto (2014: 22) que o Serviço Social “na sua vertente de praxis e de saber, terá mais a ganhar com posições pró-activas nas quais reconheça os desafios e os incorpore, de modo a defender os seus princípios e legitimidade” Para desenvolver intervenções inovadoras face às novas demandas sociais, Almeida (2013: 27), propõe:

“Na medida em que a mudança constitui um processo lento e contínuo, exige um posicionamento de abertura em relação aos actores, aos contextos e às práticas, capaz de introduzir uma dinâmica no pensamento e na acção que coloque em causa o adquirido, o invariável e o inerte.”

No contexto social contemporâneo, os processos e técnicas de trabalho tradicionais podem revelar-se inoperantes ou mesmo contraproducentes. Por outro lado,

“(…) as tipologias, categorizações e normativos político-institucionais afiguram-se desadequados ou anacrónicos, apelando a uma reflexão profunda sobre a necessidade de processos renovados de legitimação e de refundação profissional.” (Albuquerque, 2013: 75)

A complexidade crescente que vem sendo exigida a todos os profissionais que actuam no “campo social” multifacetado, globalizado, complexo, exige ao assistente social um posicionamento que advém de “um saber estratégico (…) reflexivo e criticamente assumido como instrumento técnico-político, traduzido em competências e conhecimentos teórico- práticos” (Nunes, 2004: 48).

Figura 3: Serviço Social, profissão e saber disciplinar

Fonte: Elaboração própria, com fundamento em Dominelli (2004), C. dos Santos (2013), Amaro (2009b)

Síntese

Neste capítulo foi possível empreender um breve enquadramento do que considerámos serem as principais tendências societais a nível socio-económico e cultural que afectam directamente o Serviço Social, designadamente: a globalização ou planetarização; as reconfigurações do Estado, bem como das suas funções, com as tendências de privatização, descentralização e delegação de funções sociais numa lógica de mercantilização do estado social; a paradoxal tendência para uma redução do financiamento das políticas sociais a par do crescimento dos pedidos, assistindo-se a um desmantelamento dos direitos sociais (regresso à cultura da caridade em detrimento de uma cultura de direitos); o crescimento da responsabilização dos sujeitos pelos sucessos e insucessos das intervenções que radicam numa lógica de contratualização e contrapartidas (controladas/vigiadas pelos assistentes sociais); e a responsabilidade de o indivíduo encontrar as soluções para os seus problemas. Como argumentámos, os assistentes sociais estão imersos em situações de grande complexidade, precisando responder às contradições presentes no contexto onde operam. Nem sempre esta missão é isenta de desalento e cansaço. É neste sentido que Cláudia dos Santos (2013: 30) defende que

“(…) o agir profissional deve ser antecedido pelo pensar sobre os valores que impregnam as acções do Serviço Social, sobre as respostas que a profissão vem dando às demandas postas e sobre as direcções que orientam tais demandas. Ou seja, é necessário o conhecimento da profissão, de suas condições, possibilidades e determinações. São essas reflexões que orientam alternativas de acções e a escolha pelos instrumentos e técnicas da intervenção.”

Profissão Teorias / Métodos Técnicas Perícia Expertise Princípios e valores / deontologia Serviço Social

Conhecimento disciplinar / científico

Teórico- metodológico Técnico- operativo Ético- político

O Serviço Social não é, nem nunca foi, uma entidade monolítica ou homogénea, mas um todo complexo, gerador e palco de contradições e oposições. É um campo dinâmico, um domínio de tensões, ambiguidades, rupturas e continuidades, em permanente transformação, permeado de uma certa ambiguidade e ambivalência, que tanto actua no controlo, na normalização e disciplina, na adaptação ou na integração, como por outro lado, intervém no sentido da emancipação, da libertação, da capacitação ou da transformação. É provavelmente esta uma das explicações para as relativas (in)definições da profissão, por parte dos seus agentes (profissionais, associações, académicos/investigadores). Enquanto profissão e disciplina académica é constituído, de acordo com o descrito anteriormente, por conhecimentos específicos e sistematizados, cuja legitimidade se constrói em três dimensões: a teórico-metodológica, a profissional-técnica e a ético-política, tendo em atenção a definição da profissão como um complexo dinâmico de valores, teoria e prática, em permanente construção, relacional e contextual.

Para enfrentar estas múltiplas exigências, a supervisão pode constituir-se como um importante mecanismo. De facto, estando o Serviço Social em permanente transformação e sendo essa a matéria-prima da supervisão, podemos afirmar que será imprescindível a construção de novas interpelações sobre as possibilidades de acção nesses cenários complexos e em mudança. Para que tais interpelações aconteçam, um processo de reflexão crítica tem de ser desenvolvido, enquanto gérmen daquilo que se concebe como uma prática reflexiva.

Procuraremos nos próximos capítulos dar conta de como é que a supervisão profissional em Serviço Social pode promover esse processo de reflexividade e se pode constituir na profissão como um meio de questionamento das diferentes formas de olhar e agir nesta complexidade.

CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E CONCEPTUAIS DA