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Neste debate sobre as transformações da modernidade, mobilizamos aqui também a proposta de Bauman (2001a) que conceptualiza esta forma de analisar as mudanças sociais e humanas de maneira fluida e contínua como “sociedade líquida”. O autor utiliza este termo, em vez de “pós-modernidade”, uma vez que considera que esse se tornou muito mais uma ideologia do que um tipo de condição humana e em contraposição à modernidade sólida que seria a modernidade propriamente dita (da época da guerra fria e das guerras mundiais) (Bauman in Pallares-Burke, 2004). Ou seja, fala de modernidade líquida por relação à pós-modernidade onde tudo é temporário e volátil, e de modernidade sólida, por relação à sociedade moderna anterior, onde tudo era “para sempre” (Bauman, 2001a).

Segundo Bauman (2001a; 2007), passámos duma modernidade pesada, própria do período industrial, na qual se deu a união entre o capital e o trabalho com pouca mobilidade dos dois factores (o tempo do “trabalho para a vida”), para uma modernidade líquida ou leve, transitando do longo prazo para o curto prazo, da certeza e estabilidade para a flexibilidade, incerteza e precariedade. Assim, a modernidade líquida é o período da fluidez e da desregulação, em particular dos factores de produção económica, pois ao contrário do período industrial, o factor capital é agora extremamente móvel face ao trabalho, o que vulnerabiliza este último, menos móvel. Estas transformações, que reforçam o carácter efémero da realidade, atravessam a sociedade contemporânea em todas as esferas: a vida pública e privada, os relacionamentos humanos, o mundo do trabalho, o Estado e as instituições sociais.

A modernidade líquida é eminentemente um ambiente de múltiplas escolhas, o que implica também, apesar de uma maior liberdade dos indivíduos, maiores e novas angústias e ansiedades. Não existem valores sociais, mas individuais, assistindo-se, efectivamente, à dissolução dos pontos de referência e estabilidade que caracterizavam a modernidade sólida e que asseguravam uma certa direcção para a construção individual da vida. Desta forma, o que na modernidade era considerado uma missão da colectividade, da sociedade, foi agora transferido para o indivíduo (Bauman, 2001a).

Bauman (2001a; 2007) considera que as sociedades contemporâneas são sociedades da ambivalência, onde falha a função nomeadora, característica da modernidade anterior. Esta ambivalência significa uma desordem da categorização dos fenómenos, a par da ansiedade e da indecisão, isto é, uma incerteza da nomeação e da ordenação do mundo. Esta conjuntura tem como consequências a incapacidade de prever ou de calcular o futuro e sobretudo de

reutilizar as aprendizagens passadas. A liquidez da sociedade dá-se pela sua incapacidade de tomar forma fixa. Ela transforma-se diariamente, tomando as formas que o mercado a obriga a tomar, não permitindo a elaboração de projectos de vida. Assim, a modernidade actual parece constituir-se como um mundo de incertezas, de aceitação e incorporação da ambivalência, acolhendo a pluralidade e a contingência (Bauman, 2007), o que exige adaptabilidade e flexibilidade dos indivíduos e instituições sociais. “Podemos pensar a modernidade como um tempo em que se reflete a ordem – a ordem do mundo, do habitat humano, do eu humano e da conexão entre os três” (ibidem: 16).

O acutilante desafio que Bauman (2001b) nos coloca é o de compreender qual a possibilidade de resgatar a acção colectiva pela justiça social, numa época em que a sociedade está mais individualizada e privatizada, onde o espaço público se torna cada vez mais esvaído das funções de tradução das questões individuais em colectivas e os indivíduos ficam cada vez mais sujeitos à necessidade de encontrarem uma solução biográfica para problemas que estão relacionados com o tecido social mais global. Este cenário de incerteza e de multiplicidade de escolhas gera processos de individualização, fruto das dinâmicas da modernidade actual. “A crescente precariedade e insegurança ontológica (…) colocam o indivíduo sozinho perante a responsabilidade das suas escolhas cujas consequências, por vezes, não abarca totalmente.” (Amaro, 2014: 98).

É este processo de crescente vulnerabilidade dos indivíduos em contexto de incerteza e enfraquecimento e rompimento de laços sociais que Castel (1997) designa de desafiliação que se consubstancia a precariedade, a insegurança e a perda do sentimento de pertença à colectividade, desagregando-se, assim, os laços sociais. Para este autor as sociedades modernas constroem-se sobre o alicerce da insegurança uma vez que não encontram em si a capacidade de assegurar protecção aos indivíduos (devido à erosão dos sistemas de protecção social), reproduzindo-se com isso a vulnerabilidade das massas, a segregação e a desafiliação e pondo em risco a coesão social22.

Almeida (2013: 15) considera que neste período de múltiplas “transformações sociais, económicas e políticas, inscritas e simultaneamente decorrentes da quebra do compromisso social entre o Estado e os Cidadãos”, se estreita a margem de manobra para a configuração de alternativas, tendo em conta as dificuldades económicas existentes quer a nível individual, quer familiar, quer ao nível dos sistemas de protecção social.

22 Para o autor o conceito de coesão social é referido como o ponto de partida para a inscrição dos indivíduos na estrutura social ou em determinado sistema.

Também Soulet (2005) considera que a individualização aludida tem importantes implicações para a acção do Serviço Social, nomeadamente na tendência para a individualização na análise, compreensão e intervenção nos problemas sociais como problemas dos indivíduos. De acordo com este autor, esta tendência manifesta-se sobretudo em quatro dimensões da intervenção: i) a contratualização fundamentada no empowerment (individual); o acompanhamento individualizado e suporte do indivíduo, através de um relacionamento de ajuda; o trabalho de construção identitária (trabalho mais “individual” do que “social”); e a generalização das contraprestações.

Amaro (2012: 54) constata que

“Hoje, com muito maior saliência do que no passado, na senda, aliás, das ideias de activação e contratualização, é pedido aos sujeitos que assumam um papel muito mais activo, e por vezes também solitário, na construção das suas biografias e na consecução das suas acções. Este processo de individualização se, por um lado, é emancipador do indivíduo, por outro, é extremamente exigente e credor de uma ideia segundo a qual as capacidades individuais dão por si só resposta a problemas que, muitas vezes têm causas estruturais (desemprego, infoexclusão, desafiliação, etc.)”

Esta tendência para a focalização da acção na redução dos riscos sociais e em alegados grupos de risco evidencia a responsabilização dos sujeitos pelos sucessos e insucessos da intervenção, que é contratualizada numa lógica de contrapartidas (Branco, 2009).