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A AIDS representa o risco que está presente nos “outros”

2. O PROBLEMA DA AIDS NO MUNDO E NO BRASIL

2.5 Estudos sobre as representações sociais da AIDS

2.5.1 A AIDS representa o risco que está presente nos “outros”

Os clássicos trabalhos de Joffe (1998a; 1998b) revelaram como a AIDS tem sido ligada à responsabilidade e à culpa de determinados grupos sociais, entendidos como “outros”, pela disseminação da epidemia. Nestes estudos, a representação social da AIDS é atribuída à “condição estrangeira e ao outro” como responsável pela disseminação da AIDS, o que ocasiona que uns grupos se compreendam como isentos de responsabilidade e outros como condenáveis socialmente por serem perigosos. Nos relatos de pesquisa de Joffe (1998a: 303), “as pessoas com

Aids são julgadas como estando ‘em falta’, ou dignas de acusação, porque contraíram um vírus”. Nas pesquisas, a autora revelou como a AIDS esteve ligada a grupos marginais e a nações estrangeiras. Em sua pesquisa com homens e mulheres heterossexuais brancos e negros e com homossexuais brancos que moram em Londres, revelou que cada grupo atribuiu ao outro a responsabilidade pela epidemia.

Outros estudos demonstraram a relação existente entre a representação social da AIDS e a culpabilização dos outros grupos pela doença. Em outra ocasião, por exemplo, realizei uma pesquisa com dois grupos de profissionais do sexo, sendo um com relação de conjugalidade e outro sem parceria fixa (OLTRAMARI, 2001). Cada grupo identificou o “outro” reciprocamente como mais vulnerável ao HIV. As mulheres que tinham relacionamentos fixos identificaram as atividades profissionais como uma possibilidade de contrair o HIV, enquanto o grupo que não possuía parceria fixa alegou que o maior risco estava naquelas mulheres que mantinham relacionamento de conjugalidade.

Em estudo semelhante, mas desenvolvido com grupo de mulheres casadas e solteiras da grande Florianópolis, Andréa Giacomozzi e Brígido Vizeu Camargo (2003) descobriram que as entrevistadas têm medo de contrair o HIV de outra forma que não a sexual, já que se encontravam com relacionamento fixo. Revelaram que o principal veículo de transmissão da infecção é a sangüínea; mediante tal concepção de contaminação pelo vírus, isolam o risco de seu grupo, já que nenhuma delas necessita de transfusão de sangue ou de hemoderivados. As entrevistadas consideram que os homens têm comportamentos arriscados e que todas as pessoas devem prevenir-se, menos elas, pois confiavam em seus parceiros. Vale ressaltar que as mulheres que não possuíam parceiros fixos no momento da entrevista se acharam mais vulneráveis, portanto usando preservativo em todas as relações sexuais.

Estas pesquisas demonstraram que as práticas sociais estão fortemente relacionadas aos aspectos simbólicos de representações sociais acerca da AIDS partilhadas coletivamente, constituindo, dessa forma, uma realidade social nos quais os comportamentos irão desenvolver- se.

Hèlene Joffe (1998a) ainda afirma que a influência das emoções como medo, ansiedade e impotência diante da AIDS fazem com que esta, seja muito temida dentro do nosso espaço social. Estes fatores participam na formulação de representações sociais da AIDS. A autora afirma que essas emoções às quais se refere são coletivas e estruturadas dentro do conjunto das práticas

cotidianas. Ou seja, “elas são o produto de representações emocionais da doença, que surgiram historicamente, mas que ainda hoje circulam no meio científico, nos meios de comunicação de massa e do pensamento popular” (JOFFE, 1998a: 319).

Podemos perceber que as representações sociais da AIDS estarão em relação direta com os conhecimentos que cada grupo constrói e elabora dentro de suas interações sociais e comunicacionais, as quais são engendradas através mediações simbólicas:

A predisposição das pessoas para endossar certas representações sociais de um acontecimento, e não outras, emerge das experiências da infância ligadas às experiências da vida adulta em constante desenvolvimento, que interagem com imagens mediatizadas pelos meios de comunicação, lendas e brincadeiras populares (JOFFE, 1998a: 317).

Assim como na pesquisa de Joffe (1998a) e de Tronca (2000) citadas anteriormente, Sontag (1989) revelou que, no passado, a sífilis e a lepra foram percebidas como um mal trazido de outro lugar ou de um país estrangeiro. Inúmeros grupos pensam na possibilidade de que a AIDS possa acometer apenas determinados grupos ou pessoas; este pensamento surge como uma maneira de proteção em relação à epidemia. É importante pensar que isto acontece em função de a AIDS estar relacionada a uma doença, a uma peste, que se dissemina pela via sexual e que pode levar a pessoa à morte, muito semelhante à sífilis e ao próprio câncer.

Tal como a sífilis, a Aids é uma doença concebida como um mal que afeta um grupo perigoso de pessoas “diferentes” e que por elas é transmitido, e que ataca os já estigmatizados numa proporção ainda maior do que ocorria antes com o câncer e ocorre agora com a Aids (SONTAG, 1989: 34).

Segundo Jodelet (1999), em períodos de crise o “outro” irá representar o bode expiatório que, invariavelmente, representa o mal. Assim, as pessoas que inicialmente contraíram a AIDS são percebidas no ocidente com comportamentos atrelados ao que poderíamos identificar como “pecado”, com práticas eleitas como ilegítimas tanto socialmente quanto pela natureza, como os homossexuais, profissionais do sexo, usuários de drogas e pessoas negras. Desta forma, a percepção destes grupos como responsáveis pela AIDS é uma forma de preservação da própria identidade de grupo, pois aqueles designados como doentes serão percebidos como possuindo aquilo que Joffe (1998a) definiu como um “coquetel do pecado” em suas condutas. “As pessoas leigas associaram um conjunto de práticas ‘perversas’, incluindo a bestialidade e a promiscuidade

sexual, a certos grupos” (JOFFE, 1998a: 113). A AIDS é, então, percebida, no ocidente, como uma forma de desvio de comportamento.

O pensamento sobre a AIDS vai ser diferente, conforme a representação que cada grupo tem desta síndrome.

As ações que estão presentes nas normas ocidentais, como por exemplo um comportamento imoderado, pode figurar nas representações que os ocidentais possuem da epidemia, ao passo que ações que ofendem as culturas não- ocidentais, tais como intervenções tecnológicas em relação a corpos humanos, podem caracterizar representações de não-ocidentais em tempos de crise (JOFFE, 1998b: 125).

Mas, como descrevemos anteriormente, vale lembrar que as representações sociais podem constituir-se de forma diferente entre grupos específicos. Devemos, portanto pensar em representações sociais da AIDS de forma plural.

Brígido Vizeu Camargo (1998) pesquisou as representações sociais da AIDS que jovens franceses elaboraram através de roteiros de spots publicitários. Esses jovens relacionaram a AIDS a esportes perigosos, como salto com elástico, saltos de parapente, alpinismo, moto-velocidade. Os roteiros condenaram o sexo sem preservativo, considerando-o um erro. Os adolescentes fizeram as seguintes relações com o sexo sem proteção: “a) matar pessoas, b) violar jovens mulheres e c) ter relações sem o preservativo” (CAMARGO, 1998: 169). A AIDS, neste caso, esteve ligada a alguma característica distante dos grupos aos quais os entrevistados faziam parte.

Em pesquisa de Luís Fernando Tura (1998) sobre representações sociais da AIDS com estudantes de 14 a 18 anos da cidade do Rio de Janeiro, ele encontrou dois núcleos figurativos da representação social da AIDS: “doença e morte” e “camisinha e sexo”. Com relação às palavras “morte” e “doença”, estas noções demonstraram o afastamento que a síndrome teve para os entrevistados. A morte foi percebida como um fato distante e localizada em outros grupos que não os seus. Nesta pesquisa, as representações sociais dos grupos não estiveram apontando núcleos figurativos atrelados à prevenção, com exceção daqueles que ligaram a AIDS ao preservativo.

Sobre as noções de preservativo e sexo, as respostas demonstraram um núcleo figurativo que ressaltou características das identidades de gênero, revelando a existência de uma relação entre o cuidado atrelado ao sexo, que apareceu nas respostas das mulheres entrevistadas, e o pouco cuidado com a prevenção quando o assunto foi tratado pelos homens. Os entrevistados

revelaram que, apesar do uso do preservativo ser disseminado, ainda assim está relacionado à desconfiança, pois seu uso tem sido percebido atrelado às doenças sexualmente transmissíveis. Nas entrevistas, há um indicador que, para os jovens entrevistados, existe uma grande diversidade de sentimentos em relação à prevenção à AIDS e as DSTs. Vale dizer que, “no caso da Aids, encontram-se imbricados a sexualidade, a necessidade de afirmação do indivíduo, o afeto, demandas e desejo, em conjunção com normas, valores, informações e outros fatores de diferentes ordens” (TURA, 1998: 123).

Podemos identificar a importância dos cenários culturais da AIDS para a compreensão das representações sociais. A pesquisa de Ribeiro, Castanha, Coutinho e Saldanha (2005) com profissionais e pacientes doentes de AIDS demonstrou que, mesmo passados mais de vinte anos da descoberta da síndrome, ainda se apresentam representações muito próximas daquelas constituídas desde seu início. Para os profissionais, ela apareceu como “[...] doença contagiosa, advinda do sexo promíscuo pelo descuido e o não uso da camisinha” (Idem: 130, grifos dos autores). Os autores argumentam que a AIDS, através da história, adquiriu apelos emocionais muito intensos, principalmente atrelados à punição. Além disso, a pesquisa identificou que os profissionais de saúde evocaram representações sociais da AIDS semelhantes às presentes entre a população em geral.

Entre os universos consensuais observados entre os profissionais da área de humanas e da saúde, ressaltam-se as representações da aids ainda ancoradas nas doenças contagiosas e advindas de práticas sexuais promíscuas. Conforme citado anteriormente, são representações que facilitam o surgimento do processo de culpabilização vivenciadas pelo indivíduo portador do HIV (Idem: 131). Devido ao sucesso no uso dos anti-retrovirais, começam a surgir representações que demarcam oposições a estas elaboradas há mais tempo. Por exemplo, concomitantemente a representações de culpabilização, também aparecem aquelas que relacionam a AIDS à vida, à solidariedade e a tantas outras facetas que a síndrome representa hoje, devido a uma qualidade de vida maior por parte daqueles que a contraíram. Mas é claro que os cenários culturais não podem negligenciar a importância das diferenças atreladas às identidades de gênero.