• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2. Uma questão filosófica: a ciência progride?

2.5. Protestos de moderados down to earth

2.5.2. Alan Chalmers

“Nos tempos modernos a ciência é muito respeitada”: essa é a frase de abertura de um livro introdutório de filosofia da ciência, What is this thing called science?, publicado originalmente em 1976 e que fez muito sucesso, tornando-se um best seller. Seu autor, Alan Chalmers, mais tarde ponderaria: “quinze anos dando aula numa faculdade de artes, bem como a inclinação para algumas formas da filosofia e sociologia contemporânea, me proporcionaram uma ideia da quantidade de ressalvas de que essa afirmativa necessita” (CHALMERS, 1994, p. 11). Chalmers escreve Science and Its Fabrication procurando rejeitar tanto o que chama de filosofia ortodoxa da ciência, quanto o relativismo epistemológico esposado por sociólogos radicais. Era o ano de 1990 e já se faziam ouvir os disparos das science wars.

O filósofo australiano reconhece que muitas das críticas à ciência produzidas pela sociologia da ciência e outros nichos de reflexão intelectual são benvindas e mostra aguda sensibilidade quanto à necessidade de que seja discutido o papel político e socioeconômico da ciência, de maneira que objetivos como o de produzir mais conhecimento científico não sejam vistos como absolutos e necessariamente superiores a, por exemplo, o de utilizar de maneira mais justa e equitativa o conhecimento científico e suas benesses materiais. Para Chalmers, a

ciência não está de maneira alguma desconectada das influências políticas, sociais, econômicas e culturais. Mas, esclarece, nem deveria ser necessário que assim fosse para que as ciências naturais fossem bem-sucedidas na realização de suas metas. Além disso, Chalmers identifica os problemas mais espinhosos da epistemologia e reconhece neles barreiras intransponíveis para o cumprimento das exageradas expectativas da filosofia da ciência da primeira metade do século XX. Nada disso, porém, justificaria o ceticismo e o sentimento anticientífico da pós-modernidade, nem autorizaria as conclusões relativistas dos construtivistas sociais e outros críticos da ciência.

A pilastra central de Science and Its Fabrication é a concepção de meta da

ciência, que Chalmers define genericamente como produzir generalizações teóricas aplicáveis ao mundo. Em substituição a um utópico método universal de obtenção de tais

generalizações, Chalmers propõe exigências gerais razoavelmente modestas para que a ciência atinja a sua meta – a principal delas é “que as candidatas a leis e teorias científicas sejam justificadas pelo confronto rigoroso delas com o mundo, de modo a tentar estabelecer sua superioridade em relação a outras concorrentes” (CHALMERS, 1994, p. 57-8).

O confronto das teorias com o mundo é um dos problemas clássicos da epistemologia e a noção de que as observações e experimentações nunca acontecem independentemente das teorizações é uma das formulações mais influentes nas discussões filosóficas sobre a produção de conhecimento científico. O nó do problema é que o caráter teórico-dependente dos dados empíricos é geralmente interpretado pelos céticos como justificativa suficiente para encarar o processo de teorização como mera expressão de opiniões e para negar ao teste empírico um caráter racional, como se fosse possível dizer qualquer coisa sobre o funcionamento da natureza. Como Chomsky diz com muita simplicidade, nature is tough, e é precisamente com a consciência disso que Chalmers rejeita as formulações mais radicais do construtivismo social, que se passam por crítica da ciência ao mesmo tempo em que obliquamente propõem uma tese forte sobre o caráter do conhecimento da natureza.

“[O] experimento não implica simplesmente falar sobre o mundo, mas, na prática, agir sobre ele”, diz Chalmers (CHALMERS, 1994, p. 97). Agir sobre o mundo está tão distante de inventar o mundo quanto de desvendar o mundo. Embora caricaturais, ambas as expressões capturam tanto a ingenuidade do idealismo linguístico e suas variantes (o mundo é criado pela linguagem, pela cultura, pela sociedade etc.), quanto daqueles exageradamente entusiasmados com o privilégio epistemológico da ciência (e sua suposta capacidade de

deixar a natureza falar). Com muito bom senso, Chalmers não vê um logos na natureza, mas

não deixa de reconhecer – acompanhando a tradição moderna desde a revolução científica – que podemos interrogá-la, ainda que ela não se deixe apreender facilmente. Enfim, o problema da dependência teórica da observação não apaga o mundo do processo de construção do conhecimento, nem autoriza julgá-lo pouco importante. Chalmers sintetiza esse posicionamento de forma inequívoca:

os resultados dos experimentos são antes determinados pela maneira como é o mundo, em vez de pelas teorias que informam seu projeto ou interpretação, ou pela crença do experimentador nessas teorias. Embora os detalhes de um arranjo experimental, assim como o significado associado aos resultados, dependam do julgamento do experimentador orientado pela teoria, uma vez ativada a aparelhagem, é a natureza do mundo que determina o posicionamento de um ponteiro numa escala, os cliques do contador geiger, os relâmpagos numa tela e assim por diante. [...] O fato de serem os resultados experimentais determinados pela maneira como o mundo funciona e não pelos pontos de vistas teóricos dos experimentadores é que proporciona a possibilidade de testar-se a teoria em relação ao mundo. Isso não quer dizer que se obtenha com facilidade resultados significativos, também não é uma negação de que o significado dos resultados experimentais seja às vezes ambíguo e nem uma exigência de que os resultados experimentais e as conclusões deles extraídas sejam infalíveis. (CHALMERS, 1994, p. 97-8)

Chalmers pode parecer excessivamente conservador se essa passagem for lida fora de contexto. Se de um lado há a consciência da falibilidade dos aparatos cognitivos (naturais e artificiais) dos seres humanos aplicados nas ciências, e do outro o relativismo epistemológico e outras variantes céticas, entre ambos há um caminho curto. Chalmers não trilhou esse caminho. Seu alvo, como ele mesmo diz, são as correntes que negam a capacidade científica de teste das teorias em embate com o mundo, não o falibilismo. Na visão moderada antipositivista de Chalmers, as estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais fornecem motivações e constraints importantes para o que podemos e queremos dizer sobre o mundo e qual aspecto do mundo desejamos apreender e manipular. Segundo a mesma visão moderada, que também é anti-relativista, o mundo permanece um constraint fundamental, algo “que não respeita os desejos e anseios do observador e capaz de fornecer evidência decisiva contra hipóteses inventadas”, para lembrar a definição do próprio Kuhn, alguém que via o mundo como de alguma forma dependente da mente. Em suma, o mundo não é colocado entre aspas, assim como não é de todo removido das disputas teóricas ou do processo de justificação das teorias.